ANÁLISE CRÍTICA DA (POSSÍVEL) SUPRESSÃO DOS REQUISITOS ESSENCIAIS PARA PROPOSITURA DE AÇÃO PENAL E A COGNIÇÃO JUDICIAL FRENTE À TEORIA DA ASSERÇÃO. O QUE NOS ENSINAM A DOUTRINA E A JURISPRUDÊNCIA?

08/11/2019

NOTAS SOBRE OS ENSINAMENTOS DOUTRINÁRIOS QUANTO ÀS CONDIÇÕES ESSENCIAIS PARA PROPOSITURA E EXTINÇÃO DE AÇÃO NO BRASIL

Os requisitos para propositura de ação inicialmente foram previstos de maneira tríplice, no âmbito do processo civil, são eles: a possibilidade jurídica do pedido, a legitimidade das partes (ad causam) e o interesse processual. Na análise do caso concreto, caso não vislumbre o magistrado a existência de algum desses requisitos, deve promover a extinção do processo[2].

Ademais, embora o pensamento doutrinário majoritário sustente haver separações rígidas entre o âmbito processual cível e penal, há de se reconhecer certa interseção entre ambos, principalmente no que tange às condições das ações penais, mediante certo esforço hermenêutico. Nessa senda, esclarece-nos Aury Lopes Jr. (2018) que há certa problemática na tentativa de adequar as condições do procedimento cível - legitimidade, interesse de agir e possibilidade jurídica do pedido - ao procedimento penal; tal esforço hermenêutico é intitulado pelo autor de “verdadeira ginástica de conceitos”. Apesar de sustentar o autor ser inaplicável a equivalência entre as condições da ação no processo civil no processo penal, asseverando existir tão somente dois pressupostos no âmbito penal, a saber legitimidade e interesse, aqui, opta-se por tratar como semelhantes, com fulcro na teoria geral do processo, em razão do recorte temático que se dará mais a frente.

Nessa toada, ainda sobre as condições para exercício do direito de ação, amadurecido é o debate no âmbito cível, no sentido de se perceber que a doutrina não é unânime em relacionar quais seriam os requisitos essenciais para seu exercício. Visando à qualidade científica deste artigo, entendemos por ser relevante apresentar os principais posicionamentos[3], em breve síntese, vejamos:

AUTOR

ANO

CONDIÇÕES ESSENCIAIS

Julio Fabbrini Mirabete

2007

Possibilidade Jurídica do pedido; interesse de agir; legitimação para agir; justa causa.

Ada Pellegrini Grinover

2014

Legitimidade ad causam; interesse de agir; possibilidade jurídica do pedido.

Fernando da C. Tourinho Filho.

2013

Legitimidade ad causam; interesse de agir; possibilidade jurídica do pedido.

Afrânio Silva Jardim

-

Legitimidade ad causam; interesse de agir; possibilidade jurídica do pedido; justa causa e a originalidade.

Guilherme Nucci

2016

Legitimidade ad causam; interesse de agir; possibilidade jurídica do pedido.

Figura 1 - Quadro comparativo compilando principais posicionamentos doutrinários.

Por sua vez, tratando-se dos requisitos para extinção da ação prematura[4], especificamente no âmbito do processo penal, esta ocorrerá em situação de “manifesta ilegitimidade da parte ou falta de condição exigida pela lei para o exercício da ação penal”. Anote-se a modificação sofrida com o advento da promulgação da Lei nº 11.719 de 2008, nossa atual legislação, que de maneira explícita estabeleceu no Art. 395 que: “A denúncia ou queixa será rejeitada quando: I - for manifestamente inepta; II - faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal; ou III - faltar justa causa para o exercício da ação penal”.

Não obstante, no que pertine ao processo cível, temos extenso rol que elenca as hipóteses em que a cognição judicial deverá ser manifesta para impedir a continuidade do processo, dado ao não preenchimento dos requisitos fundamentais, conforme determina o art. 330 da Lei nº 13105/15.

Após tais considerações, convém esclarecer que neste trabalho cinge-se tão somente em analisar a ausência de justa causa para o exercício da ação penal. Registre-se que a doutrina brasileira não é unânime em reconhecer a justa causa como uma condição da ação, acreditando alguns[5] que está integraria por decorrência lógica o interesse de agir ou seria fruto de requisito ao desenvolvimento da demanda, como uma síntese das condições da ação[6].

Não obstante, ressalte-se que neste trabalho adotou-se pela primeira corrente, na qual se confere status de condição essencial para propositura de ação.

Sendo assim, valendo-se dos ensinamentos de Nestor Távora (2015), esclarece-se que justa causa é o pressuposto que valida o exercício da ação, lastreando a inicial com elementos probatórios mínimos, que indiquem indícios de autoria, de materialidade delitiva e da constatação da ocorrência de infração penal.

Cumpre ainda registrar que a mera instauração do processo não pressupõe que de fato haverá necessária condenação do acusado, uma vez que tanto na Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, quanto na Declaração Universal dos Direitos do Homem é reconhecido que "Todo homem acusado de um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente, até que a sua culpabilidade tenha sido provada, de acordo com a lei, em julgamento público, no qual lhe tenham sido asseguradas todas as garantias necessárias a sua defesa".

É importante esclarecer, entretanto, que embora a instauração do processo atente contra o “status dignitatis”, a presunção de inocência, por maioria dos votos do Plenário do Supremo Tribunal Federal, limita-se tão somente a condenação em primeira instância, uma vez que artigo 283, do Código de Processo Penal não impede o início da execução da pena após condenação em segunda instância (do que discorda, mas que não é objeto do presente ensaio)[7] [8].

Por decorrência lógica, é necessário que os Tribunais, ao receberem ações para exercer juízos de admissibilidade, realizem minuciosa observância aos requisitos condicionantes à propositura da ação, uma vez que tal exercício não pode ser fruto arbitrariedades, afrontando os preceitos constitucionais, que norteiam o processo judicial.

Sendo assim, não se deve admitir a supressão de tais princípios – o devido processo legal, o contraditório e a ampla defesa – uma vez que dentro da ótica constitucional tais peceitos são essenciais para a validade do resultado que se deseja alcançar. Em outras palavras, mais importante que o resultado auferido ao final do processo, é caminho percorrido pelos litigantes e demais sujeitos processuais durante toda a trajetória processual.

Não reconhecer tal máxima implicaria em criarem-se juízos de exceções, dignos de narrativas Kafkianas[9]. Portanto, a atuação dos órgãos de acusação, tal qual o Ministério Público, devem estar adstritas ao disposto em nossa Magna Carta, conforme nos ensina Alberto S. Franco (2004): “o art. 129, I, CF estabeleceu, de forma inconclusa que, entre as funções institucionais do Ministério Público, se insere como mais relevante de todas de todas a de promover, privativamente, a ação penal pública, na forma da lei”.

Questiona-se: Qual procedimento adotar, quando o órgão de acusação oferecer uma denúncia sem lastro mínimo probatório? E se o magistrado dado ao grande fluxo de processos receber tal denúncia? Qual o momento adequado para sua verificação? Haveria distinção na verificação dos requisitos da ação em razão de quem a promove?

A relevância de tal problemática pauta-se em sua presença recorrente no âmbito dos tribunais; em rápida pesquisa, em um dos mais famosos buscadores[10] voltados para o direito, encontra-se pouco mais de 220.768 (duzentos e vinte mil e setecentos e sessenta e oito) resultados. Registre-se que tais resultados não se limitam somente ao ramo do direito penal e processual, abarcando diversos outros ramos.

Ainda sobre o direito de ação no direito penal, cumpre também registrar que, via de regra, tal prerrogativa fica a cargo do Ministério Público. Em caráter excepcional, decorrente de lei, pode o particular promover a denúncia. Nesse sentido, a doutrina reconhece outros tipos de ações, quais sejam: ação penal incondicionada, condicionada à representação e privada.

A primeira é de titularidade do órgão de acusação, conforme anteriormente mencionado, e, não se sujeita a manifestação de vontade da vítima ou de terceiros para seu efetivo exercício. Já a segunda, qual seja, ação penal condicionada também é titularizada pelo Parquet, sua atuação estará condicionada à manifestação de vontade da vítima ou do seu representante legal. Por último, apresenta-se a ação penal de natureza privada, que é transferida ao particular, para que atue em nome próprio, na tutela de direito alheio a sociedade[11].

De maneira mais específica é possível ainda subdividir a ação penal de iniciativa privada, podendo ser de iniciativa privada propriamente dita, de natureza personalíssima ou ainda como subsidiária da pública[12].

 

DOS DIÁLOGOS ENTRE DOUTRINA E JURISPRUDÊNCIA

Exteriorização  do pressuposto da  justa causa na peça acusatória.

A presença da justa causa possui certo grau de complexidade em sua identificação. Isso decorre, em parte, dada a sua natureza terminológica vaga pelo emprego da palavra “causa”, conforme nos ensina Madeira (2017) valendo-se das lições de Maria Thereza Rocha de Assis Moura (2001), em seu livro Justa Causa para ação penal – Doutrina e Jurisprudência.

Destaca o autor que tal terminologia possui dupla perspectiva: uma de natureza positiva, que se fundamenta na possibilidade de acusar baseando-se mínima probabilidade da acusação; já a segunda, decorre de natureza negativa, na qual a falta de um dos elementos de natureza positiva torna inviável o ajuizamento da ação, e, por conseguinte a sua aceitabilidade por parte do magistrado que irá apreciar a demanda.

Em razão disso, é necessário reconhecer-se que a justa causa, para o processo penal, é um elemento basilar, uma vez que os Tribunais Superiores vêm reconhecendo que sua ausência em peça acusatória pode ensejar o trancamento da ação penal.

A configuração da ausência de justa causa para o processo penal, fundamentada em absolvição no processo administrativo, cujo resultado é o arquivamento, por outro lado, comporta temperamentos.

É que, embora seja firme o entendimento da nossa Suprema Corte de que “são independentes as instâncias penal e administrativa, só repercutindo aquela nesta quando se manifesta pela inexistência material do fato ou pela negativa de autoria”[13].

É sabido, de que uma investigação iniciada ainda na esfera administrativa, pode ensejar uma ação na esfera penal. Em outras palavras, isso acarreta dizer que, embora seja reconhecido o caráter autônomo das instâncias, poderá ocorrer interação entre elas.

Registre-se que cada instância possui um conjunto de prerrogativas e garantias, que norteiam o equilíbrio lógico do sistema jurídico. A título de exemplificação tem-se que o Direito Penal é um mecanismo de “ultima ratio”, sendo assim, sua utilização deve ser fragmentária e não pode ocorrer sem que se demonstre que os outros meios de coerção falharam. Isto se dá principalmente em razão de sua natureza mais rígida, devendo a propositura de ação ser promovida com uma fundamentação mais contundente e com amplitude probatória (presente a justa causa).

Para que não haja dúvida da possibilidade de interação entre as instâncias, ilustra-se o caso que se segue. Trata-se de uma ação penal promovida tão somente em razão de ofício emitido pelo Banco Central do Brasil, denotando a prática de crime decorrente de débito. 

Nesse caso, a pretensão do órgão de acusação e guardião da ordem jurídica foi rechaçada, em sede de habeas corpus, quando a própria prova basilar se desfez dentro do contexto fático. Isto porque, após apuração do próprio Banco Central do Brasil, em sede de procedimento administrativo apropriado, entendeu-se pela ocorrência de dívida sobre a qual recaiu repactuação comercial, retirando do Processo Penal a justa causa (nexo de causalidade e ausência de dolo), apontada pela parte autora. Vejamos:

HABEAS CORPUS". PENAL. PROCESSO PENAL. CRIME CONTRA O SISTEMA FINANCEIRO NACIONAL. REPRESENTAÇÃO. DENÚNCIA. PROCESSO ADMINISTRATIVO. ARQUIVAMENTO. AÇÃO PENAL. FALTA DE JUSTA CAUSA.

Denúncia por crime contra o Sistema Financeiro Nacional oferecida com base exclusiva na representação do BANCO CENTRAL. Posterior decisão do BANCO determinando o arquivamento do processo administrativo, que motivou a representação. A instituição bancária constatou que a dívida, caracterizadora do ilícito, foi objeto de repactuação nos autos de execução judicial. O Conselho de Recursos do Sistema Financeiro Nacional referendou essa decisão. O Ministério Público, antes do oferecimento da denúncia, deveria ter promovido a adequada investigação criminal. Precisava, no mínimo, apurar a existência do nexo causal e do elemento subjetivo do tipo. E não basear-se apenas na representação do BANCO CENTRAL. Com a decisão do BANCO, ocorreu a falta de justa causa para prosseguir com a ação penal, por evidente atipicidade do fato. Não é, portanto, a independência das instâncias administrativa e penal que está em questão. HABEAS deferido.

(HC 81324, Relator (a):  Min. Nelson Jobim, segunda turma, julgado em 12/03/2002, DJ 23-08-2002)

Conforme destacou o Ministro Nelson Jobim, responsável pela relatoria da ação heróica, que teve seu voto acompanhado por unanimidade, “a jurisprudência do Tribunal é no sentido de não reconhecer o trancamento da ação penal sem que exista fato evidentemente atípico”. No entanto, o referido julgado deixou evidente que acusação do Ministério Público se baseou tão somente em ofício inicial do Banco Central.

Ratificando tal entendimento temos os ensinamentos de Roberto Luis Luchi Demo[14] que explica o direito como uno, isto é, um sistema de prescrições jurídicas coerentes e harmônicas, as quais estão relacionadas entre si, e, portanto, não faria sentido a realidade material repercutir de modo disforme. Nesta mesma linha também aponta Diogo de Figueiredo Moreira[15]. A ideia de independência entre as esferas não deveria acarretar soluções incoerentes, paradoxais, o que seria possível de ocorrer caso houvesse notória incompatibilidade entre decisões das três esferas[16].

Cumpre ainda destacar em razão da tendência de uniformização da jurisprudência e o fomento da consolidação do sistema de precedentes, os demais Tribunais vêm ratificando o exposto, conforme se verifica na ementa abaixo:

PROCESSUAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. ART. 1º, I, LEI 8.137/1990. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. AUSÊNCIA DE JUSTA CAUSA. ILEGALIDADE RECONHECIDA. RECURSO PROVIDO.

  1. O trancamento da ação penal em sede de habeas corpus, por ser medida excepcional, somente é cabível quando restar demonstrada, de maneira inequívoca, a atipicidade da conduta, a absoluta falta de provas da materialidade do crime e de indícios de autoria, ou a existência de causa extintiva da punibilidade.
  2. Tendo sido reconhecido pelo Tribunal a quo, em favor de corréu, o constrangimento ilegal da ação penal em seu desfavor a despeito dele não mais participar da gestão da empresa quando da prática dos fatos delituosos, outubro de 2000, impõe-se a extensão dos efeitos da decisão ao recorrente que se encontra na mesma situação fática nos termos do art. 580, CPP.
  3. Recurso em habeas corpus provido, para reconhecer a ausência de justa causa da ação penal nº 001041191.2010.4.01.3200, em desfavor do recorrente, determinando o seu trancamento, o que não impede nova denúncia penal caso lastreada em novo acervo probatório.

(RHC 35.876/AM, Rel. Ministro Nefi Cordeiro, sexta turma, julgado em 06/09/2016, DJe 16/09/2016)

 

Interseção entre lei e teoria: peça acusatória supostamente genérica e a teoria da asserção.

Segundo a Teoria da asserção[17], o órgão judicial ao apreciar as condições da ação, o faz à vista do que fora alegado pelo autor, sem analisar o mérito, abstratamente, admitindo-se, em caráter provisório, a veracidade do que fora alegado. Por conseguinte, em outro momento, qual seja, durante a instrução probatória, apura-se concretamente o que fora alegado pelo autor na petição inicial.

Tal teoria é reconhecida pela jurisprudência, a exemplo, apresentamos as recentíssimas decisões dos Tribunais:

APELAÇÃO. IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA. PROGRAMA EDUCAÇÃO INTEGRAL. CONTRATAÇÃO DIRETA. SERVIÇO DE COZINHEIRO. JULGAMENTO EXTRA PETITA. LEGITIMIDADE PASSIVA.

I - Não configura julgamento extra petita a condenação dos réus em artigo distinto da lei de improbidade administrativa porque os réus se defendem dos fatos que lhe são imputados. Compete ao julgador a adequação dos fatos jurídicos à norma.

II - Conforme os fatos narrados na inicial - teoria da asserção - o apelante-réu praticou atos no procedimento administrativo que fundamentou a contratação direta, por isso tem legitimidade para figurar no polo passivo da ação civil pública por improbidade administrativa.

III - O autor não se desincumbiu do ônus da prova quanto à existência de dolo ou culpa na conduta dos réus.

IV - Apelação dos réus provida, e apelação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios prejudicada.

(TJ-DF 20090110049123 DF 0043259-61.2009.8.07.0001, Relator: Vera Andrighi, Data de Julgamento: 28/02/2018, sexta turma, Publicado no DJE : 06/03/2018. p.: 497/504)

Tal teoria possui íntima ligação com que a doutrina e jurisprudência usualmente intitulam de denúncia genérica, conforme se verifica no caso ementado abaixo: 

PENAL E PROCESSO PENAL. RECURSO EM HABEAS CORPUS. CRIME DE PECULATO. DESVIO DE VERBAS FEDERAIS. PROGRAMA PROJOVEM. ONG SEMEAR. AQUISIÇÃO DE ITENS SUPERFATURADOS. ATRIBUIÇÃO DE RESPONSABILIDADE AOS SÓCIOS DA EMPRESA QUE OS VENDEU. NEXO CAUSAL NÃO DESCRITO. DENÚNCIA INEPTA. IMPUTAÇÃO GENÉRICA. RECURSO EM HABEAS CORPUS PROVIDO.

  1. A denúncia, apesar de descrever a conduta delitiva consistente na compra superfaturada realizada pela ONG SEMEAR, com dinheiro público, não descreve eventual liame existente com os recorrentes. Não se observa, portanto, nem mesmo de passagem, o nexo causal entre o comportamento dos recorrentes e o fato delituoso. A acusação limitou-se a vinculá-los ao crime porque eram sócios da empresa em que foram comprados os itens superfaturados. Como é cediço, mesmo a denúncia geral deve conter elementos mínimos que preservem o direito do acusado de conhecer o conteúdo da imputação contra si. A mera atribuição de uma qualidade não é forma adequada para se conferir determinada prática delitiva a quem quer que seja. Caso contrário, abre-se margem para formulação de denúncia genérica e, por via de consequência, para reprovável responsabilidade penal objetiva.
  2. Recurso em habeas corpus provido, para reconhecer a inépcia da denúncia com relação aos recorrentes, sem prejuízo de oferecimento de nova inicial acusatória, desde que observados os requisitos do art. 41 do Código de Processo Penal.

(RHC 74.176/RJ, da minha relatoria, QUINTA TURMA, julgado em 22/11/2016, DJe 02/12/2016).

HABEAS CORPUS. PENAL. PROCESSO PENAL. 2. DENÚNCIA GENÉRICA. CRIME SOCIETÁRIO. ART. 1º, INCISO I, DA LEI 8.137/1990 (CRIMES CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA, ECONÔMICA E CONTRA AS RELAÇÕES DE CONSUMO).

É fundamental que o mínimo de individualização da conduta esteja contido na denúncia para permitir o recebimento. Caso que apresenta peculiaridades, que demonstram que um esforço de identificação da contribuição dos envolvidos para o suposto crime seria particularmente relevante. Ordem concedida, para extinguir a ação penal, por inépcia da denúncia.

(HC 127415, Relator(a):  Min. GILMAR MENDES, Segunda Turma, julgado em 13/09/2016, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-206 DIVULG 26-09-2016 PUBLIC 27-09-2016)

Conforme se vislumbra no julgado acima, de Relatoria do Ministro Gilmar Mendes, a promoção de peça acusatória sem o estabelecimento de lastro probatório mínimo enseja na inépcia material da denúncia, e, consequente rejeição, por ausência de justa causa.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De pronto, ratifica-se o entendimento de que a justa causa é o lastro probatório mínimo calcado na prova da materialidade e indícios de autoria. Em razão disso, não é possível vislumbrar um devido processo legal diante de eventual supressão (lê-se como ausência do requisito da justa causa).

Defende-se, por conseguinte, que mesmo a teoria da asserção não pode ser um “cheque em branco” capaz de possibilitar o recebimento de denúncias genéricas, pois, se assim o fosse, ensejaria em afronta direta ao devido processo legal, ao contraditório e a ampla defesa, princípios esses constitucionais, de natureza basilar e comuns a teoria geral do processo.

De outro turno, quanto aos demais questionamentos elaborados ao longo desse ensaio, oferece-se como síntese conclusiva que, caso o órgão de acusação promova denúncia sem lastro mínimo probatório, é dever legal dos demais sujeitos processuais manifestar oposição sempre que visualizarem tal incoerência, independente do momento processual, expressando-se de maneira inequívoca pelo não recebimento ou mesmo desrecebimento, para fins de absolvição sumária,[18] de tal denúncia.

 Tratando-se do órgão judicial, mais especificamente da cognoscibilidade do magistrado, esse ao apreciar as condições da ação, deve voltar-se tão somente aos aspectos processuais, afastando-se em caráter temporário do mérito em si, e, voltando-se para os requisitos essenciais, que ratificam ou não necessidade de propositura de ação, apresentados ao longo desse ensaio.

Por derradeiro, é imprescindível que tal verificação ocorra no início do processo, ou seja, ainda na fase de conhecimento, todavia, caso não ocorra, têm-se até a sentença sua pertinência em verificar, pouco importando se a denúncia foi promovida pelo órgão de acusação específico, ou pelo particular em substituição à Parquet.

 

Notas e Referências

BORGES, Edilson Barbugiani. Ensaio sobre a obra "Como se faz um processo", de Francesco Carnelutti e noções do sistema processual brasileiro. Brasília: Conteúdo Jurídico, 2014. Disponível em: <http://bit.ly/2KqNbyj>. Acesso em 7 fev. de 2018.

BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Civil. Disponível em: <http://bit.ly/2WQznyZ>. Acesso em 7 fev. de 2018.

BRASIL. Presidência da República. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://bit.ly/2FnM3rk>. Acesso em 7 fev. de 2018.

CARNELUTTI, Francesco. Como se faz um processo. São Paulo: Minelli, 2002.

DANTAS, Ivo. Constituição e Processo. 3ª ed. Curitiba: Editora Juruá, 2016.

DANTAS, Ivo. Teoria do estado contemporâneo. 3ª ed. Curitiba: Juruá, 2016.

DEZEM, Guilherme Madeira. Curso de processo penal. 3ª ed. São Paulo: RT, 2017.

KAFKA, Franz: Obras escolhidas. 1. Ed. – Porto Alegre, RS: L&PM, 2013.

LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. ed. - São Paulo: Saraiva, 2018.

MENDES, Gilmar Ferreira. Curso de Direito Constitucional / Gilmar Ferreira Mendes e Paulo Gustavo Gonet Branco - 9. ed. rev. e atual. São Paulo: Saraiva, 2014.

TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. Curso de direito processual penal. – Salvador: JusPODIVM, 2015

[1] Cf. http://bit.ly/2XlB3oj.

[2] Redação dada pelo art. 267, inc. VI da lei Nº 5.869, de 11 de janeiro de 1973.

[3] Levantamento realizado por Guilherme Madeira Dezem em 2017.

 

[4] Complementa-se: por decorrência lógica básica toda provocação ao judiciário almeja uma prestação jurisdicional resolutiva, seja ela na hipótese negativa ou positiva, todavia, em determinados casos a prestação ocorrerá, mas sem adentrar a resolução do conflito propriamente dito. Nesse sentido, por faltar algum pressuposto essencial nomeamos de prematura, visto que não cumpriu a finalidade almejada. Por cautela, esclarece que mesmo nessa hipótese ocorreu a prestação jurisdicional.

[5] MADEIRA apud CINTRA, Antônio Carlos de Araújo. GRINOVER, Ada Pellegrini. 2014, p.. 278 – 281; DINAMARCO, Cândido Rangel. GRECO FILHO, Vicente. 2002, p. 97; DIDIER JR., Fredie. 2005, p. 296.

[6] MADEIRA apud NUCCI, Guilherme de Souza. 2016, p. 153 - 160.

[7] Entendimento proferido durante julgamento das liminares pleiteadas nas Ações Declaratórias de Constitucionalidade (ADCs) 43 e 44, em 1/9/2016, onde era versava-se sobre a concessão de liminar para afastar execução da pena antes do trânsito em julgado.

[8] No magistério do Prof. Dr. Ivo Dantas, especificamente em palestra proferida em 31 de maio de 2019, Curitiba/PR, sobre seus estudos na área de teoria do processo e história das Constituição, há de se reconhecer o fenômeno do Tempo Constitucional, que pode ser compreendido, em brevíssima síntese, como o lapso temporal de influência na Constituição (ou não influência), trazido como fundamento filosófico constitucional, de natureza variada. Com base nisso, sustentamos que a interpretação da Constituição, realizada pelo Supremo Tribunal Federal, tal como na questão da presunção de inocência decidida em plenário, também decorre de um Tempo Constitucional próprio, se não de natureza precedente tal como concebido, em uma interpretação teleológica de natureza ulterior. 

[9] Referência ao livro O Processo de Franz Kafka, onde o réu é julgado sem conhecer aos fatos delituosos a ele imputados.

[10] Jus Brasil. Consulta realizada em 7 de mar. de 2018.

[11] TÁVORA, Nestor; ALENCAR, Rosmar Rodrigues. 2015, p. 215 - 227.

[12] MADEIRA, Guilherme. 2017, p. 225.

[13] STF – TP – MS 22.438 – Rel. Min. Moreira Alves – RTJ 166/171.

[14] DEMO, Luis Luchi, 2004.

[15] MOREIRA NETO, Diogo de Figueiredo, 2005, p. 323.

[16] Sobre o diálogo entre as esferas, merece menção os estudos sobre precedentes administrativo e sua possível força vinculante dada a acurada análise especilizada dos órgãos de escalões de menor hierarquia, de natureza administrativa. Embora ainda incipiente o reconhecimento, é forte o lastro que sustenta  possibilidade de um juiz julgar com base em precedente administrativo, mesmo não estando obrigatoriamente vinculado ao procedente, pois a autovinculação, em regra, decorre de uma entidade da Administração Pública em relação aos seus próprios precedentes. Sobre o tema, recomenda-se a leitura do v. 3 da Coleção Grandes Temas do Novo CPC - Precedentes, coordenadores, Fredie Didier Jr. ... [et al.], Salvador: Juspodivm, 2016.

[17] Também conhecida por “prospettazione”, atual entendimento do STJ.

[18] Expressão utilizada por Andrey Borges de Mendonça na sua obra - Nova Reforma do Código de Processo Penal: comentada artigo por artigo - São Paulo: Método, 2008.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura