Alguns conceitos são essenciais para a compreensão do mundo, porque ligados às ideias fundamentais ou categorias pelas quais captamos intelectualmente a realidade.
Sistemas filosóficos distintos possuem conceitos ou categorias simbólicas diferentes, de modo que a utilização de determinados termos em um discurso depende da inserção de seu significado dentro do contexto, não podendo palavras de um sistema de pensamento serem usadas indistintamente em outro.
A palavra alma está incluída nessa hipótese, pois sua significação depende de uma determinada posição filosófica ou teológica. Assim, no novo dicionário Aurélio da língua portuguesa, em sua 4.ª edição, por exemplo, o vocábulo alma possui 26 (vinte e seis) significações “1. Princípio de vida. 2. Filos. Entidade a que se atribuem, por necessidade de um princípio de unificação, as características essenciais à vida (do nível orgânico às manifestações mais diferenciadas da sensibilidade) e ao pensamento, e que se define em oposição ao corpo (embora não necessariamente a matéria) e, às vezes, a espírito, estando associadas à consideração da ideia de alma as questões da imortalidade, da personalidade, da individualidade, da consciência, etc., com todas as implicações morais, religiosas e metafísicas que elas suscitam (…). 3. Princípio espiritual do homem concebido como separável do corpo e imortal (…). 12. Pessoa, indivíduo”.
Teologicamente, portanto, alma pode ter vários sentidos, dentre os quais merecem ser destacados três: um segundo o qual a alma é uma entidade imaterial e imortal que se une ao corpo em vida, do corpo se separando após a morte, segundo uma concepção dualista do mundo; outra entendendo que a alma é uma questão psicológica, decorrente dos estados neurais da pessoa, sendo uma ilusão ou criação da mente que se extingue com a morte, conforme a vertente filosófica e teológica materialista; e outra decorrente da tradição hebraica, segundo a qual alma é a própria pessoa.
Para entender essa última concepção, em contraposição com a primeira, vale assistir ao vídeo “Estudo da palavra: Nephesh - ‘Alma’” produzido por “The Bible Project”, com legenda em português (https://www.youtube.com/watch?v=g_igCcWAMAM). Ficam recomendados, a propósito, todos os vídeos de “The Bible Project”, uma vez que já assisti a vários, ainda que nem todos tenham legenda em português, salientando-se que o projeto explica a Bíblia segundo uma perspectiva Cristã, com certa neutralidade teológica, dentro das possibilidades de uma atividade qualquer que possa ser neutra, sustentando que a Bíblia é uma história única que leva a Jesus.
Segundo o vídeo, a palavra nephesh constante do Antigo Testamento foi traduzida, de forma infeliz, como alma, porque o termo alma é carregado de bagagem da filosofia grega, uma vez que no sistema de pensamento helênico a alma seria uma essência não física e imortal da pessoa, que está presa ao corpo, do qual é liberada após a morte, como na ideia do “fantasma dentro da máquina”.
“–– Não é outra coisa (a morte) senão a separação da alma do corpo, não é? Estar morto é bem isto: de um lado, separado da alma, o corpo isola-se em si mesmo; do outro, a alma, por sua vez, separada do corpo, é isolada em si mesma? Ou a morte será outra coisa?
–– Não, é isso mesmo, disse ele.” (Platão. Fédon. Trad. Miguel Ruas. São Paulo: Editora Martins Claret, 2005, p. 27).
Tem-se, pois, na filosofia platônica uma concepção dualista do mundo, com duas realidades, dos corpos e das ideias, sendo fato histórico que Agostinho de Hipona viveu em um tempo sob forte influência filosófica do neoplatonismo, tendo, então, desenvolvido sua proposta teológica com as categorias das duas cidades, também podendo-se inferir que o dualismo cartesiano, e suas duas substâncias, possui ligação com filosofia platônica.
Platão entendia que a alma, “apresentando-se em um corpo, faz com que ele seja vivo” (Idem, p. 90), sendo imortal e indestrutível, indo ao Hades após a morte do corpo.
A separação entre alma e corpo sustenta, por sua vez, o desenvolvimento da ideia da reencarnação, metempsicose ou transmigração das almas, que é divergente do ensinamento bíblico pelo qual “é um fato que os homens devem morrer uma só vez, depois do que vem um julgamento” (Hb 9, 27).
Outrossim, tal concepção grega não tem correspondência com a ideia hebraica de nephesh, palavra que, para a Bíblia, pode significar “garganta” ou a pessoa inteira. Na Bíblia, a pessoa não tem uma alma, ela é uma alma, nephesh, um ser vivo e físico que respira, em um corpo.
O conceito de alma, destarte, é um para os gregos e outro conforme o entendimento bíblico do mundo. Resumindo, para os materialistas alma é um conceito fruto do excesso de conexões neurais, da imaginação de um cérebro ocioso, mera criação da imaginação humana; dentro de uma filosofia dualista, alma é o princípio que dá vida ao corpo, do qual se separa após a morte deste; enquanto para o hebreu a alma é a própria pessoa em sua integridade, incluindo seus sentimentos e sua realidade física, havendo uma unidade entre corpo e alma.
Portanto, o conceito de ressurreição é diferente daqueloutro de reencarnação, no sentido de retorno físico da pessoa integral em um corpo físico renovado, havendo, nesse aspecto, um significativo hiato ontológico entre a Teologia bíblica e a grega, sem prejuízo de uma proximidade prática entre tais visões de mundo, “na realidade, agora que a alma se revelou imortal, não há nenhuma saída para seus males, nenhuma outra salvação, senão a de se tornar a melhor possível e a mais sábia” (Platão. Obra citada, p. 93).
Ainda que Platão sustente tal ideia para que a alma chegue ao Hades em boas condições, sem se prejudicar, referido entendimento tem pertinência com o entendimento bíblico segundo o qual devemos buscar a santidade, tornando-nos a melhor e mais sábia alma possível, conforme o modelo de Deus: “Sede santos, porque eu, Iahweh vosso Deus, sou santo” (Lv 19, 2)
Nesse sentido, o mandamento de Moisés, ensinamento repetido por Jesus, deve ser corretamente interpretado dentro do contexto bíblico e suas categorias fundamentais da realidade:
“Ouve, ó Israel, Iahweh nosso Deus é o único Iahweh! Portanto, amarás a Iahweh teu Deus com todo o teu coração, com toda a tua alma e com toda a tua força” (Dt 6, 4-5).
Amar a Deus com toda a alma, ou nephesh, significa dedicar toda a existência física ao Criador, incluindo todos os pensamentos, palavras e ações, todos os movimentos internos e externos da pessoa devem ser santos, puros, adotados para realizar o Bem, e oferecer todo o ser, com todas as suas capacidades e limitações, para amar, e servir, a Deus e ao próximo como a si mesmo.
Na tradição bíblica, assim, existe uma unidade inseparável entre corpo e alma, entre o mundo e Deus, sendo ilusória a ideia de distinção entre a realidade física e a espiritual, dada a ligação direta entre o que fazemos no corpo e o julgamento na eternidade, pelo que o corpo integra a eternidade e a alma é una com o corpo.
Por isso, devemos ampliar nossa alma, para manter a unidade com o mundo, tornando-nos mahatamas, grandes almas, almas coletivas, que têm comportamento solidário, sendo “luzes no mundo, mensageiros da Palavra de vida”, porque as grandes almas cuidam dos outros com amor.
“Portanto, pelo conforto que há em Cristo, pela consolação que há no Amor, pela comunhão no Espírito, por toda ternura e compaixão, levai à plenitude a minha alegria, pondo-vos acordes no mesmo sentimento, no mesmo amor, numa só alma, num só pensamento, nada fazendo por competição e vanglória, mas com humildade, julgando cada um os outros superiores a si mesmo, nem cuidando cada um só do que é seu, mas também do que é dos outros” (Fl 2, 1-4).
Imagem Ilustrativa do Post: God... Are you there? // Foto de: Roberto García Ruiz // Sem alterações
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