Ainda sobre a cadeia de custódia da prova

14/08/2015

Por Marcos Eberhardt - 14/08/2015

O STJ enfrentou o tema na Operação Negócio da China. No caso, em sede de Habeas Corpus, os acusados trouxeram à baila duas complexidades ao redor da preservação das fontes de prova: (a) o conteúdo das interceptações telemáticas foi extraviado no âmbito da Polícia Judiciária e (b) os arquivos de áudio das interceptações telefônicas, ao serem requeridos pela defesa, não continham todas as ligações telefônicas interceptadas. Ao conceder a ordem para determinar o desentranhamento das provas produzidas nas interceptações telefônica e telemática, por constituirem provas ilícitas, a Relatora Min. Assusete Magalhães advertiu que “(...) constitui constrangimento ilegal a seleção do material produzido nas interceptações autorizadas, realizada pela Polícia Judiciária, tal como ocorreu, subtraindo-se, do Juízo e das partes, o exame da pertinência das provas colhidas (...)  Decorre da garantia da ampla defesa o direito do acusado à disponibilização da integralidade de mídia, contendo o inteiro teor dos áudios e diálogos interceptados.”[1]

A decisão remete a uma das questões mais tormentosas no âmbito do processo penal e que diz respeito à preservação da fiabilidade de todos os atos que compõe a cadeia de custódia da prova como registro documentado de toda a cronologia da posse, movimentação, localização e armazenamento do material probatório. Em apertada síntese, a importância da cadeia de custódia está diretamente endereçada à integridade da prova. Isso porque, segundo PRADO: “O rastreamento das fontes de prova será uma tarefa impossível se parcela dos elementos probatórios colhidos de forma encadeada vier a ser destruída. Sem esse rastreamento, a identificação do vínculo eventualmente existente entre uma prova aparentemente lícita e outra, anterior, ilícita, de que a primeira é derivada, dificilmente será revelado. Os suportes técnicos, pois, têm uma importância para o processo penal que transcende a simples condição de ferramentas de apoio à polícia para execução de ordens judiciais” [2]

A eventual quebra da cadeia de custódia importa, portanto, na ilicitude da prova a que se refere aquele conjunto de atos. Deverá o magistrado, portanto, reconhecer a sua ilicitude e determinar o consequente desentranhamento dos autos. Sem dúvida, será necessário que se pronuncie também acerca da extensão da ilicitude quanto a eventuais provas derivadas.

Mas não é só isso. A preservação da fonte da prova não diz respeito apenas à integridade da cadeia de custódia (como enuncia o art. 245, § 6°, do CPP quando fala da apreensão da coisa, por exemplo), mas à impossibilidade de utilização da prova pela defesa ou acusação e, portanto, refere-se ao comprometimento do contraditório. Ao exemplo, trazendo o caso das interceptações telefônicas, o acesso à íntegra das mídias é que permitirá a impugnação da versão acusatória quando a denúncia tiver sustentação nos diálogos.

Recentemente o STJ voltou a enfrentar o tema. Trata-se da Operação Ouro Verde, deflagrada pela Polícia Federal no RS para investigar ilícitos decorrentes da evasão de divisas. Nas diligências policiais, houve a apreensão do notebook cujo disco rígido continha os arquivos em que estavam descritas as supostas operações da organização, peça-chave para o oferecimento da denúncia. Ocorre que antes do espelhamento do HD e formação do código de segurança (códigos hash), a autoridade policial confessadamente rompeu o lacre e acessou diretamente o disco rígido, referindo, no entanto, que não alterou os arquivos. Segundo a sentença “houve alteração de arquivos na mídia apreendida. Essa alteração ocorreu após a apreensão, enquanto a mídia estava na guarda policial, pericial e judicial. (...) Todo esse contexto deixa claro que houve falhas na preservação do material apreendido. Aparentemente, os próprios arquivos que contêm os bancos de dados foram alterados, visto que são datados das 11h08 do dia apreensão, a qual teria ocorrido ao raiar do dia.” (3) Mesmo diante disso, a decisão foi pela licitude da prova e sua consequente manutenção nos autos, o que foi confirmado em grau recursal no TRF-4.[3]

Ao se pronunciar, o STJ, muito embora tenha ratificado a existência de falhas na preservação das mídias, entendeu que “no sistema processual penal brasileiro vigora o princípio do livre convencimento motivado, em que o magistrado forma sua convicção valorando as provas conforme o seu entendimento”. Mas não é só. Em voto-vista, o Min. Rogério Schietti Cruz, referindo-se ao contido no art. 245, § 6°, do CPP, revelou que “o dispositivo invocado nada fala dos procedimentos a serem adotados enquanto custodiado o material, como descrito pela defesa, motivo pelo qual entendo, inclusive, que não houve indicação do artigo de lei adequado para o alcance da pretensão.”[4]

Em apertada síntese a Corte Superior, neste caso, não analisou, como deveria, a quebra da cadeia de custódia de material que serviu como fonte de prova para outras diligências e para o oferecimento da denúncia. Deixou de enfrentar um tema caro ao processo penal, já que envolve diretamente direitos fundamentais do acusado (agora condenado).

Olvidou-se o STJ que o principal efeito da preservação da cadeia de custódia, amparada sim no art. 245, § 6°, do CPP, é que o vestígio e, no caso em análise, a fonte de prova, não sofra rupturas durante a investigação, permanecendo, portanto, autêntica. E por qual motivo isso deveria acontecer? Porque a cadeia de custódia assegura a impossibilidade de que o vestígio, ou a prova, tenha sido manipulado ou alterado. [5]

Nesta altura, o leitor deve estar se perguntando: Teorias de prova penal apenas para anular um processo? Teorias plantadas com o objetivo de encobrir a criminalidade e fortalecer a impunidade? Não, apenas as regras do jogo processual, garantias dirigidas a todos os envolvidos no processo penal.


Notas e Referências:

[1] STJ, HC nº 160662/RJ, 6ª Turma, j. 18/02/2014.

[2] PRADO, Geraldo. Prova penal e sistema de controle epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p.79.

[3] TRF4, ACR nº 5008191-88.2010.404.7100, 8ª Turma, Rel. Leandro Paulsen, j. 16/09/2014.

[4] STJ, REsp nº 1435421/RS, 6ª Turma, Rel. Maria Thereza de Assis Moura.

[5] DELGADO, Esteban Mestre. La cadena de custodia de los elementos probatorios obtenidos de dispositivos informáticos y electrónicos. In: FIGUEROA NAVARRO, Carmen. La cadena de custodia en el proceso penal. Carmen Figueroa Navarro (Directora). Universidad de Alcalá, Madrid, 2015. p.73.


marcosMarcos Eberhardt é Mestre em Ciências Criminais pelo PPG/PUCRS, professor da Faculdade de Direito da PUCRS e da Especialização em Direito Penal Empresarial, Conselho da OABRS, Advogado Criminal e pesquisador na área do processo penal e prova penal.

   


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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