Julgo relevante que o público leitor deste site conheça, dentro do possível, aqueles que estão produzindo textos sistematicamente em suas “colunas”. Como dizia o amigo Amilton Bueno de Carvalho, é preciso que saibamos o “local de fala do expositor”. Somos inevitavelmente influenciados pelo meio social no qual estamos inseridos, sem prejuízo dos fatores endógenos. Como disse um filósofo mexicano, “eu sou eu e as minhas circunstâncias”.
Neste sentido, quero deixar claro, como explicitei em trabalho publicado neste site, que minha formação intelectual está inserida no pensamento de esquerda. Entretanto, acho que, no momento atual, o máximo que podemos almejar é uma sociedade onde todos tenham as necessidades básicas atendidas e respeitada a sua dignidade de pessoa humana, criando-se condições para que todos tenham as mesmas oportunidades, tudo em busca do bem comum (justiça social). Em outras palavras: socialismo com liberdade, conforme tentou Allende, no Chile.
Desta forma, não tenho formação liberal. Não sou liberal na política, na economia e no processo penal. Por outro lado, longe de mim uma visão autoritária do sistema processual. Sempre procurei uma posição de equilíbrio, pois não é valioso punir a qualquer preço.
Entendo que o processo penal é o instrumento civilizado e adequado para a aplicação da lei penal (inclusive as suas normas não incriminadoras). Nada obstante, há valores mais relevantes, cunhados pelo processo civilizatório, que limitam a atividade persecutória do Estado. O Estado Democrático de Direito não admite a desobediência aos princípios que informam o “devido processo legal”.
Por tudo isso, peço licença para transcrever abaixo o que dissemos quando agradecemos a vários juristas pátrios e estrangeiros, que escreveram judiciosos trabalhos para a segunda edição de livro publicado em nossa homenagem. Naquela oportunidade, escrevemos:
“Sinceramente, sinceramente mesmo, acho que não mereço tamanha homenagem. Certo que longa tem sido a minha trajetória: cinco anos de advocacia, 31 anos no Ministério Público e trinta e quatro anos no magistério superior. Entretanto, julgo não merecer nenhum destaque especial, salvo se invertermos a ordem natural das coisas e acharmos que a seriedade e dignidade devam ser premiadas. Nada fiz além do que se espera de um homem normal, obstinado pela ideia de justiça social.
Desta forma, preciso deixar registrada a grande felicidade de ver tantos relevantes juristas, contribuindo neste projeto idealizado pelos amigos Pierre Souto Maior e Marcelo Lessa, a quem rendo indelével gratidão. A todos que, com suas valiosas contribuições doutrinárias, vincularam seus nomes ao meu, vai o meu emocionado agradecimento.
Paulatinamente, estou me despedindo das minhas atividades ligadas ao “mundo do direito”, um pouco pela exaustão, um pouco pela decepção, que retrato no texto de despedida dos colegas do Ministério Público, quando de minha aposentadoria, in verbis:
“Colegas, tomando conhecimento das carinhosas manifestações em relação à minha aposentadoria, através da minha filha Júlia, venho expressamente agradecer tais gestos de apreço, não podendo responder a cada um individualmente. Foram 31 anos de pleno exercício das minhas funções de membro do Ministério Público, antecedidos por 5 anos de advocacia na área cível. Ao chegar aos 60 anos de idade, concluí que era chegada a hora de dedicar os meus 15 anos restantes de "vida útil" (se tanto) a outros afazeres prazeirosos. Confesso que tal decisão veio fortalecida pela minha total decepção com a forma pelos quais os julgamentos são realizados pela maioria das Câmaras Criminais do nosso Tribunal de Justiça. Assisti e consegui impedir que processos de 3 ou 4 volumes fossem julgados em cerca de 20 segundos. Mal dava tempo para localizar a cópia do parecer da Procuradoria de Justiça para a nossa sustentação oral. Ao invés de relatório do processo, desembargadores se limitam a ler a ementa de seu voto e os demais o acompanham sem conhecimento do que estão julgando. Mesmo assim, já dado o voto, eu fazia a sustentação oral, contra a má vontade de todos. Ao menos lia as razões do colega de primeiro grau. Briguei (literalmente) muito e o desgaste foi inevitável. Diante de nosso inconformismo, sessões chegaram a ser interrompidas. Ao final, percebi que alguns desembargadores já não mais me ouviam, não prestando atenção à minha sustentação oral, em um total desrespeito. Nada obstante, não esmoreci até o último dia, tendo a sessão terminado por volta das 11:oo horas da noite. Saí como entrei: de cabeça erguida. É preciso que haja uma mudança radical na forma de atuar dos Procuradores de Justiça, com a criação de órgãos de atuação específica com legitimação para interpor recursos especiais e extraordinários. Mas isto é tema para outros embates. Aqui, gostaria de dizer que "a luta" continua e a minha aposentadoria não significa acomodação e resignação. Não vou advogar, mas procurarei outros "locais de fala" para continuar lutando em prol de prestação jurisdicional mais qualificada e, principalmente, em prol da necessária e indispensável justiça social, pressuposto de tudo o mais. Continuo achando que, dentre os meios institucionais, o Ministério Público tem muito a contribuir para o melhoramento de nossa sociedade. Ao me despedir do Ministério Público, sinto a grande satisfação de ter cumprido, fielmente, uma promessa que fiz a mim mesmo quando nele ingressei: jamais atendi, ainda que indiretamente, a qualquer "pedido" para beneficiar uma parte em algum processo. Como advogado, sempre ficava indignado com o conhecido tráfico de influência em nosso meio jurídico. Cumpri integralmente este "voto de dignidade" e saio ileso. Peço a vocês que ficam que não esmoreçam nunca, resistam sempre à pressão do sistema. Se algum dia precisarem deste velho colega, tenham a certeza de que podem me chamar que "eu caio dentro". Não tenham medo de nada, ou melhor, só tenham medo de ter medo. Felicidades para vocês. Afranio Silva Jardim."
Ademais, acabei dando razão ao saudoso professor Calmon de Passos: através do sistema jurídico não se logra mudança substancial na sociedade. É uma ingenuidade pensar que o operadores jurídicos sejam salutarmente subversivos. O conservador princípio da segurança jurídica sempre acaba prevalecendo sobre o princípio de justiça. A luta por justiça social tem que ser travada em outras trincheiras. Nelas, sempre estarei.
Por derradeiro, quero concluir esta breve nota de agradecimento aos meus ilustre colegas, citando o poema do mexicano Amado Nervo, magistralmente musicado pelo compositor e cantor Pablo Milanés, sob o título EN PAZ:
Muy cerca de mi ocaso, yo te bendigo, Vida, porque nunca me diste ni esperanza fallida, ni trabajos injustos, ni pena inmerecida; porque veo al final de mi rudo camino que yo fui el arquitecto de mi propio destino; que si extraje la miel o la hiel de las cosas, fue porque en ellas puse hiel o mieles sabrosas: cuando planté rosales coseché siempre rosas.
Cierto, a mis lozanías va a seguir el invierno: ¡mas tú no me dijiste que mayo fuese eterno!
Hallé sin duda largas las noches de mis penas; mas no me prometiste tan sólo noches buenas; y en cambio tuve algunas santamente serenas...
Amé, fui amado, el sol acarició mi faz. ¡Vida, nada me debes! ¡Vida, estamos en paz!
Com a chilena Violeta Parra, termino dizendo: “GRACIAS A LA VIDA”, OBRIGADO A VOCÊS.”
Passados alguns meses da publicação desta obra, ocorreu um drama pessoal absoluta e eternamente doloroso: minha filha Eliete Costa Silva Jardim morreu, três dias após uma cirurgia não muito relevante. Por isso, altero o final da poesia para: “Vida, nada me devias. Vida, estávamos em paz”.
Ela escreveu um artigo para o mencionado livro, mas não teve tempo para vê-lo publicado, deixando um casal de filhos pequenos. Tal excelente e original estudo está publicado aqui no site do Empório do Direito. Após esta tragédia, ainda traumatizado, estou em constante questionamento sobre tudo que diz respeito à nossa existência e nosso sistema de valores. A todo momento, em quase tudo que faço, a sua grata imagem está presente. Nesta coluna, neste sentido, Eliete estará comigo ...
Peço desculpas pelo caráter intimista destas linhas, mas foram inevitáveis.
Enfim, por obra do amigo Alexandre Morais da Rosa, estou aqui e espero não decepcioná-los ...
Afranio Silva Jardim - inverno de 2016
Imagem Ilustrativa do Post: Books in Chetham’s Library // Foto de: Pete Birkinshaw // Sem alterações
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