Agora que fiz B.O eu estou protegida?

17/08/2016

Por Angelo Moreno Cintra Fragelli – 17/08/2016

Em 29/05/1983, na cidade de Fortaleza/CE, uma mulher foi vítima de brutal violência provocada pelo seu marido, tendo este lhe desferido um tiro de arma de fogo pelas costas.

Esta mesma senhora, que graças aos cuidados médicos não veio a falecer, retornava ao lar semanas mais tarde.

A sofrida vítima esteve à beira da morte mais uma vez, quando o mesmo agressor tentou eletrocutá-la enquanto esta se banhava. Mais uma vez aquela mulher escapava da morte. [1]

Sem entrarmos em maiores detalhes sobre a investigação dos crimes e tramitação do processo, o que não é o foco desta conversa, informo que o caso em questão chegou a ser tratado em nível internacional, envolvendo, dentre outros organismos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a OEA (Organização dos Estados Americanos), tendo esta, em 2001, baseado neste caso, emitido relatório no qual RECOMENDOU ao Brasil uma série de providências quanto ao tratamento legal dado à violência contra a mulher. [2]

Eis aqui o berço da tão falada "Lei Maria da Penha", a qual foi assim batizada em homenagem à vítima referida nos primeiros parágrafos, Maria da Penha Maia Fernandes.

A citada lei (L. 11.340) entrou em vigor em agosto de 2006 e trouxe inegáveis avanços em relação à proteção jurídica conferida à mulher vítima de violência doméstica/familiar. [3]

De fato, o Brasil apresenta dados/números assustadores em relação às mais diversas formas de violência contra a mulher, o que demonstra a premente  necessidade de mecanismos eficientes e diferenciados de proteção a estas.

De acordo com o levantamento realizado pela Secretaria Especial de Políticas Públicas para as mulheres, subordinada ao Ministério da Justiça, 51,18% (1.901) dos registros em 2016 corresponderam à violência física; 28,43% (1.056), à violência psicológica; 7,51% (279), ao cárcere privado; 7,16% (266), à violência moral; 3,34% (124), à violência sexual; 2,29% (85), à violência patrimonial; e 0,08% (03), ao tráfico de pessoas.

Do total de relatos de violência em 2016, 50,94% (1.892) foram encaminhados para autoridades policiais e Ministério Público, a pedido das denunciantes. [4]

No tocante aos avanços protecionistas trazidos pela citada lei, estão as chamadas medidas protetivas de urgência, destacando-se, dentre estas, o afastamento do agressor do lar e a proibição deste de manter contato com a vítima.

Desde o princípio, restou clarividente que o espírito da lei (mens legis) era no sentido de conferir maior e diferenciada proteção a mulher vítima de violência domestica/familiar. Todavia, a prática acabou evidenciando graves problemas quanto  a sua efetiva implementação.

Dentre os problemas verificados no tocante a proteção da mulher, destaca-se a falta de fiscalização quanto ao cumprimento das medidas eventualmente deferidas ä vítima pelo próprio estado e a implementação imediata destas em casos (geralmente graves), onde imperiosa se afigura natural celeridade.

É exatamente com relação a esta ultima problemática que passaremos a tecer comentários após exposição de caso fictício que, no entanto, retrata realidade perturbadora.

Sábado, meia noite, o marido chega em casa após um dia todo de bebedeira, e, descontente com a comida que encontra em casa, logo desfere safanões na companheira seguido de ameaças e injúrias. Os filhos, um de 3 anos e outro de 7 começam a chorar e também acabam apanhando.

Um vizinho liga para a polícia que acaba encaminhando a mulher e as crianças a uma delegacia de polícia. O agressor não foi conduzido, pois fugiu antes da chegada dos policiais, não oportunizando prisão em flagrante.

Após ser atendida pelo Delegado plantonista, este questiona: -A senhora quer alguma medida de proteção prevista em lei. - Sim, doutor, eu gostaria que ele saísse da casa e que não chegasse mais perto de mim e dos meus filhos, pois não tenho para onde ir com essas crianças e estou com muito medo.

E continua... - Agora que eu fiz o B.O e pedi as medidas protetivas, eu já estou protegida, "né", doutor?

O Delegado, angustiado com a situação tem que informar àquela senhora que o seu pedido de SOCORRO, que a lei da o nome de medida protetiva, somente será analisado pelo Juiz após 48 (quarenta e oito) horas e que apenas pode ajudá-la retirar os seus pertences do lar.

A vítima, sem acreditar no que ouve, questiona: - Doutor, eu e minhas crianças apanhamos dele e EU que preciso sair de casa? Já são 2:00 da manhã doutor! Eu não tenho para onde ir!

O Delegado, com a nítida sensação de impotência, pois pouco pode fazer para efetivamente protegê-la naquele momento, apenas sugere que esta durma na casa de algum parente e que, caso necessite, um policial pode acompanhá-la à sua residência para retirar o que for necessário.

A vítima então sai da Delegacia sem ter onde dormir, pois, nos moldes atuais, necessita aguardar o mínimo de 48 (quarenta e oito) horas para que um Juiz determine que o seu algoz saia da residência ou que dela não se aproxime.

Diante desta aberração situacional-jurídica que somente os envolvidos neste cenário conseguem parecer compreender com exatidão, tramita no Congresso Nacional o PLC 07/2016, de autoria do deputado Sérgio Vidal (PDT-ES), já aprovado na câmara e em adiantada tramitação no Senado, o qual modifica a "Lei Maria da Penha", concedendo ao Delegado de Polícia a Autoridade para que este possa, de imediato, conceder á vitima a proteção especificada em lei. [5]

Com efeito, a pretensa mudança faz com que o pedido de SOCORRO da vítima possa ser atendido imediatamente, podendo a própria Autoridade Policial, a partir deste momento, retirar o agressor do lar e impedir, desde logo, que este se aproxime daquela.

É bom que se frise, que o mesmo projeto aduz que as medidas determinadas pelo Delegado de Polícia podem ser revistas pelo Juiz no prazo de 24 horas, momento em que estas serão ratificadas ou extintas. De toda a sorte, a mulher vítima, neste cenário, permanece guarnecida de direitos pelo Estado até lá.

Contudo, a solução exposta, apesar de ostentar status de medida milagrosa, tem gerado controvérsias.

Sem nos imiscuirmos com profundidade jurídica em relação aos argumentos contrários às (novas) medidas propostas, temos que saber discernir aqueles que se ligam a fundamentos lógico-jurídicos (ligados ao debate relacionado à constitucionalidade da medida), a discursos falaciosos (propalados por aqueles que pouco conhecem ou tem contato com a prática) e corporativistas (crítica geral à medida sob quaisquer fundamentos, os quais são dissociados completamente do compromisso com a solução do problema, e baseados em fins escusos ligados ao fortalecimento/enfraquecimento de determinada classe de profissionais). [6]   

Nesta seara, quer nos parecer que discussões corporativistas e/ou lutas de classes profissionais devem, doravante, ser deixadas de lado para que se consiga efetivamente conferir proteção efetiva à mulher e que estas não precisem aguardar sabe-se lá onde ou em que situação de miséria emocional, uma decisão a ser proferida após dois, três, cinco dias, meses, que seja, a depender da celeridade do Poder Judiciário.

Assim. Imperiosa a mudança legislativa exposta no projeto a fim de que a mulher goze, a partir do momento em que se identifica como vítima, de eficiente proteção

Não deixemos de ser esperançosos quanto a chegada do dia em que TODAS as mulheres possam gozar de efetivos mecanismos de proteção, que, como dito, traduz o real espirito da lei, e não  somente aquelas que brilham nas telinhas da TV.  [7]


Notas e Referências:

[1] FERNANDES Maria da Penha Maia, Sobrevivi, posso contar, Fortaleza, 1994, páginas 29-30 [2] http://www.cidh.org/annualrep/2000port/12051.htm#_ftnref4; www.cidh.oas.org [3]  www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/.../lei/l11340.htm [4] ] http://www.spm.gov.br [5] http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/125364 [6] www.conamp.org.br/images/notas.../NT_05_PLC%2007_16.pdf [7]http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2016/07/fui-vitima-de-agressao-covarde-diz-luiza-brunet-sobre-ex-companheiro.htmlhttp://www.terra.com.br/istoegente/edicoes/478/artigo113737-1.htm

angelo-moreno-cintra-fragelliAngelo Moreno Cintra Fragelli é Delegado Regional de Polícia Civil/SC; Especialista em Ciências penais pela Universidade do Sul de Santa Catarina; Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade do Sul de Santa Catarina;  Professor da Academia da Policia Civil de Santa Catarina (ACADEPOL); Professor da Academia dos Peritos Criminais de Santa Catarina (ACAPE); professor Universitário; Professor em diversos cursos preparatórios para concursos públicos..


Imagem Ilustrativa do Post: INTIMATE STRANGERS ... // Foto de: Bill Strain // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/billstrain/4192591796/

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura