“Afinidade eletiva” e a suspeição de um juiz

19/05/2018

1- “Afinidade eletiva”:

Em ensaio publicado originalmente em francês em 2004, o sociólogo Michael Löwy[1] observa que o termo “afinidade eletiva” (Wahlverwandtschaft) tem uma longa história, bem anterior aos escritos de Max Weber. Trata-se de um roteiro complexo “que vai da alquimia à literatura romântica (Goethe) e desta às ciências sociais”.

De acordo com Michael Löwy, o termo “attractionis electivae” apareceu pela primeira vez na obra do químico sueco Torbern Olof Bergman. Seu livro, “De attractionibus electivis” (Uppsala, 1775), foi traduzido para o francês com o título “Traité des affinités chimiques” ou “attractions électives” (1788). Na tradução alemã – Frankfurt, “Verlag Tabor”, 1782-1790 –, a fórmula “atração eletiva” se torna, enfim, “Wahlverwandtschaft”, ou seja, afinidade eletiva.

Segundo Löwy, é provavelmente dessa versão alemã de Bergman que Johann Wolfgang von Goethe extraiu o título de seu romance “Die Wahlverwandtschaften” (1809) [2], em que ele trata da questão de uma obra de química estudada por um dos personagens “há cerca de uma dezena de anos”. O termo, aqui, torna-se uma metáfora para designar o movimento passional pelo qual um homem e uma mulher são atraídos um pelo outro – ainda que isso signifique a separação de seus companheiros anteriores –, a partir da afinidade íntima entre suas almas.

A transposição, feita por Goethe, do conceito químico para o terreno social da espiritualidade e do amor foi, em si mesma, ainda mais fácil, especialmente porque em diversos alquimistas, como Boerhave, o termo já estava densamente carregado de metáforas sentimentais e eróticas. Para Goethe, há uma afinidade quando dois seres ou elementos “procuram um ao outro, atraem-se, apoderam-se um do outro e, em seguida, em meio a essa união íntima, ressurgem de forma renovada e imprevista”. A semelhança com a fórmula de Boerhave – dois elementos que “se procuram, unem-se e se encontram” – é impressionante, o que sugere o fato de Goethe também ter conhecido a obra do alquimista holandês e até mesmo se inspirado nela.[3]

Em relação ao conceito de “afinidade eletiva” em Max Weber, Löwy salienta, no citado ensaio, que Weber utiliza o conceito somente três vezes em A ética protestante e o espíritodo capitalismo, mas ele aparece, também, em outros escritos, geralmente no campo da Sociologia das Religiões. Embora Weber não tenha definido o conceito, o próprio Michael Löwy propõe uma definição com base no uso weberiano do termo: “afinidade eletiva é o processo pelo qual duas formas culturais – religiosas, intelectuais, políticas ou econômicas – entram, a partir de determinadas analogias significativas, determinados parentescos íntimos ou afinidades de sentido, em relação de atração e influência recíprocas, seleção e reforço mútuos e convergência ativa. Sem se colocar no lugar de outros paradigmas analíticos, explicativos ou compreensivos, a afinidade eletiva pode constituir uma nova perspectiva, até agora pouco explorada, no campo da Sociologia da Cultura”.[4]

2- As relações de um juiz:

A foto na entrega do prêmio melhores do ano da revista IstoÉ (06/12/2016), do juiz Federal Sérgio Moro - titular da 13ª Vara Federal de Curitiba e comandante da famigerada Operação “Lava Jato” - com o ex-governador e senador da República Aécio Neves, tendo o presidente da República em plano inferior, virilizou nas redes sociais. Na referida foto o juiz Federal aparece rindo e bem íntimo do senador por Minas Gerais.

Menos de dois anos depois a história se repete com outro personagem – coincidência (ou não) - do PSDB.  Trata-se da foto do ex-prefeito de São Paulo João Doria novamente com o juiz Federal Sergio Moro.  O fato ocorreu na última terça-feira (15/5), em Nova York, num jantar oferecido pela Câmara de Comércio Brasil-Estados Unidos. Na ocasião o juiz - paladino da moralidade - recebeu o título de “Personalidade do Ano”.

Ao discursar o juiz Sergio Moro disse ter refletido sobre a conveniência de aceitar o convite. Segundo Moro,Judiciário e juízes devem atuar com modéstia, de maneira cuidadosa e humilde”. Disse o magistrado para uma plateia majoritariamente composta de empresários e banqueiros.

O insuspeito e competente jornalista Kennedy Alencar observa que: “Para o juiz que colocou o petista (LULA) na cadeia, é mais um exemplo de suas afinidades eletivas. Nem foi a primeira pose ao lado de um tucano. Sem surpresa. Doria estava na dele e no ambiente dele. O magistrado só foi imprudente, dirão, porque, afinal, ele pode tudo”.[5] (grifamos)

Ainda, de acordo, com analista político, Kennedy Alencar, Pior mesmo foi o discurso de Moro, uma análise política rasa sobre corrupção e democracia, uma mistura de lição de moral com falsa modéstia, um chamado aos empresários para que não caiam nas garras desses políticos malvados e corruptos”.

3- Conclusão:

Em evento “símbolo da cafonice e do complexo de vira-latas da elite brasileira” o juiz condutor da “Lava Jato” deixa uma vez mais transparecer suas “afinidades eletivas” e mais do que isso, sua suspeição para julgar aqueles que foram elegidos por uma elite, a que ele tão bem representa, como “inimigo”.

As “relações perigosas” entre um juiz e políticos de determinado partido – vários deles acusados de corrupção – comprometem, por si só, a imparcialidade do julgador.

É evidente que o juiz, como qualquer outro ser humano, tem suas preferências ideológicas e políticas e não há problema algum nisso. O problema reside no fato do juiz se comprometer publicamente com determinado partido e com alguns políticos, deixando que isso influencie e contamine suas decisões.

Está assentado que a neutralidade do magistrado, como de qualquer indivíduo, é um mito[6], mas a imparcialidade - direito e garantia fundamental - deve ser assegurada às partes. O juiz que deixou para trás a imparcialidade e a independência perdeu a condição de julgar, para o bem ou para o mal.

O que diriam os opositores do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do Partido dos Trabalhadores (PT) – em hipótese absurda e fictícia – caso o juiz Federal Sergio Moro fosse fotografado em evento no Sindicato dos Metalúrgicos, com um boné do MST e ao lado de Gleisi Hoffmann?

Certamente o juiz Federal Sergio Moro seria execrado por todos aqueles que posaram ao seu lado e abominado pelos que o homenagearam. A “elite do atraso[7] não suportaria as “afinidades eletivas” entre o seu “herói” e os “bandidos”.

O Juiz deve agir com serenidade e equilíbrio, não deixar que sua vaidade obstrua seu discernimento, necessita ser imparcial, zelar pelo respeito às leis, jurar respeito à Constituição da República, não ser baixo com os grandes e nem arrogante com os miseráveis (Rui Barbosa). Quando o Juiz se traveste de herói e de salvador da pátria ele esquece de seu mister. Ele olvida que é humano e, portanto, falível.

Notas e Referências:

[1] Em ensaio publicado em francês: Löwy, Michael. Le concept d’affinité élective chez Max Weber. Archives de Sciences Sociales des Religions, Paris, n. 127, p. 93-103, 2004. Versão on-line disponível desde 25 de junho de 2007, em: <http://assr.revues.org/1055>.

[2] Em português “As Afinidades Eletivas”. “A partir do princípio químico pelo qual dois elementos agregados se separam para unir-se a dois novos elementos, Goethe constrói neste romance uma alegoria para demonstrar a determinação das forças da natureza sobre as relações no casamento e na sociedade”. (GOETH, Johann Wolfgang von. As afinidades eletivas. Tradução de Erlon José Paschoal. São Paulo: Nova Alexandria, 2008).

[3] OLIVEIRA, Lucas Amaral de; FERREIRA, Mariana Toledo. Sobre o conceito de “afinidade eletiva” em Max Weber, Michael Löwy. Plural (São Paulo. Online), São Paulo, v. 17, n. 2, p. 129-142, dec. 2010. ISSN 2176-8099. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/plural/article/view/74543/78152>. Acesso em: 17 may 2018. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2010.74543.

[4] OLIVEIRA, Lucas Amaral de; FERREIRA, Mariana Toledo. Sobre o conceito de “afinidade eletiva” em Max Weber, Michael Löwy. Plural (São Paulo. Online), São Paulo, v. 17, n. 2, p. 129-142, dec. 2010. ISSN 2176-8099. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/plural/article/view/74543/78152>. Acesso em: 17 may 2018. doi:http://dx.doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2010.74543.

[5] Disponível em:< http://www.blogdokennedy.com.br/afinidades-eletivas/

[6] CASARA, Rubens R. R. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015.

[7] Ver obra de Jessé Souza. A elite do atraso: da escravidão à lava jato. Rio de Janeiro: Leya, 2017.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Abuso-autoridade-Gilmar Mendes-Sergio-Moro-Renan-Lula-Marques-Agência-PT-47 // Foto de: Lula Marques/Agência PT // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/partidodostrabalhadores/31356963925

Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/2.0/legalcode

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura