Afinal, qual o alcance da garantia da presunção de inocência no processo penal brasileiro?

08/04/2018

A garantia[1] da presunção de inocência (ou da não culpabilidade) está expressamente consagrada no ordenamento jurídico brasileiro (art. 5º, LVII da CF/1988)[2]. Tal garantia integra o Direito Constitucional ocidental desde as primeiras declarações de direitos fundamentais,[3] sendo o princípio reitor do processo penal acusatório.[4] Questão que se discute de forma contínua é qual seja seu alcance na persecução penal, e se é compatível com a presunção de inocência determinar a prisão de um acusado, para início de execução de pena, em caráter provisório, antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória.

A redação original do CPP, no artigo 393, inciso I[5], dizia ser efeito da sentença condenatória recorrível ser o acusado preso, salvo nos crimes afiançáveis. Logo, com a condenação de primeiro grau já se expedia o mandado de prisão. Somente em 1973 com o advento da lei 5.941/73[6] é que se passou a admitir que o réu primário e com bons antecedentes pudesse apelar em liberdade.

Mesmo após a promulgação da CF/1988, no julgamento do HC 68.726 em 1991, a interpretação do STF ao art. 5º, LVII, foi de que “a presunção de inocência não impede a prisão decorrente de acórdão que, em apelação, confirmou a sentença penal condenatória.” Logo, passou a exigir-se ao menos decisão de segundo grau para autorizar a prisão.

Apenas em 2009, com a decisão nos autos do HC nº 84.078, passou-se a dar máxima eficácia à garantia da presunção de inocência, no sentido de que “a prisão decorrente de condenação pressupõe o trânsito em julgado da sentença.” A decisão mencionada foi essencial para a elaboração da redação do caput do novo art. 283 do CPP[7] advindo da reforma de 2011 (lei 12.403), que passou a estar em plena consonância com a redação do art. 5º, LVII da CF.

O imbróglio a respeito do alcance da garantia da presunção de inocência na persecução penal se concretiza no julgamento do HC nº 126.292 (confirmado com a apreciação liminar das ADC’s n. 43 e 44) em 2016. Na oportunidade, por 7 votos a 4, os ministros do STF retomaram o entendimento de que “a presunção de inocência não impede a prisão decorrente de acórdão que, em apelação, confirmou a sentença penal condenatória.”

De plano, há que se admitir que a tese sustentada - observando o art. 5º, LVII da CF em plena harmonia com art. 283 caput do CPP - é uma tese baseada em fundamentos morais.[8] Basta uma simples leitura da decisão, na qual alguns dos Ministros justificam seus votos usando de argumentos pragmáticos e consequencialistas.[9] O Min. Teori Zavascki entendeu que “o tema relacionado com a execução provisória de sentenças penais condenatórias envolve reflexão sobre (...) busca de um necessário equilíbrio entre esse princípio e a efetividade da função jurisdicional penal, que deve atender a valores caros não apenas aos acusados, mas também à sociedade, diante da realidade de nosso intricado e complexo sistema de justiça criminal”. No mesmo sentido, o Min. Roberto Barroso entendeu que possibilitar a execução provisória de pena contribuirá para a “quebra do paradigma de impunidade”. O min. Luiz Fux, por sua vez, justifica-se argumentando que “se há algo inequívoco hoje, é que a sociedade não aceita essa presunção de inocência de uma pessoa condenada que não para de recorrer.”.

“Fundamentar” de tal forma incorre em violação a garantia da jurisdicionalidade (art. 5º, XXXVII), eis que a atuação do juiz num estado democrático de direito não é política, mas constitucional, consubstanciada na função de proteção dos direitos fundamentais, ainda que, para tanto, tenha que adotar uma posição contrária à opinião da maioria.[10] Em outras palavras, no caso em análise: disseram como deve ser o Direito Penal. E não como ele é a partir do que o parlamento votou. [11]

Como argumento de reforço, “fundamentaram” a razão de ser da execução provisória da pena partindo da simples leitura de legislações estrangeiras.[12] De fato, algumas Constituições modernas não estabelecem o alcance da garantia da presunção de inocência na persecução penal. Entretanto não é razoável, nem justo que se argumente deste modo trazendo à colação direito estrangeiro tão diferente do nosso.[13]

O constituinte de 1988 seguiu os modelos italianos e português, associando a presunção de inocência ao trânsito em julgado da condenação penal. Importa saber do direito estrangeiro mas este não é essencial para a leitura do que dispõe o art. 5º, LVII. A interpretação do STF deve ser de acordo com a Constituição Brasileira! Ademais, cabe citar que Brasil, Itália e Portugal não são exceções ao associar presunção de inocência ao trânsito em julgado da sentença penal condenatória. [14]

A grave omissão do acórdão reside no não enfrentamento da (in)constitucionalidade do art. 283 do CPP. Como simplesmente não aplicar o art. 283 sem declarar previamente sua inconstitucionalidade? [15]

O diploma legal supracitado assegura que “ninguém poderá ser preso senão (...) em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado.” Entretanto, a decisão paradigmática sequer menciona o dispositivo ou enfrenta sua constitucionalidade.

Interessante é que a partir da própria jurisprudência do Min. Teori Zavascki (relator da v. decisão), enquanto Ministro do STJ, no voto na Rcl. 2.645, extrai-se que não se admite que seja negada aplicação pura e simplesmente a preceito normativo “sem antes declarar formalmente a sua inconstitucionalidade[16]. Desta forma é possível que se reconheça que o conteúdo do art. 283 do CPP continua válido.

Portanto, de duas, uma: ou o acórdão viola direta e frontalmente o disposto no caput do art. 283 do CPP, ou o referido dispositivo é inconstitucional e assim precisa ser expressamente declarado,[17] o que não ocorreu até a presente data.

Para piorar o imbróglio, em 22.03.2018, o STF no julgamento do HC 152.752, impetrado em defesa do ex-presidente Lula, confirmou a jurisprudência fixada em 2016, de que “a presunção de inocência não impede a prisão decorrente de acórdão que, em apelação, confirmou a sentença penal condenatória.” Novamente, não houve o enfrentamento dos ministros favoráveis à execução provisória de pena, a eventual (in)constitucionalidade do art. 283 do CPP. Além disso, extrai-se dos votos favoráveis os mesmos “fundamentos” de ordem moral contidos no bojo do HC nº126.292.

Eventual reposicionamento do STF estava sujeito aos votos da Min. Rosa Weber e do Min. Gilmar Mendes. A ministra, nos autos do HC nº126.292, votou contra a possibilidade de execução provisória de pena. [18] Entretanto, a partir do precedente criado pela maioria da corte, colocou a posição institucional acima do seu entendimento pessoal – como vinha fazendo em julgados anteriores. Por outro lado, o Min. Gilmar Mendes reafirmou o posicionamento que vinha defendendo acerca da matéria,[19] passando a acompanhar a posição do Min. Dias Toffoli, o qual entende que a execução da pena com decisão de segundo grau deve aguardar o julgamento do recurso especial pelo STJ.

“Seguir a lei pode ser duro, mas é a lei”[20]. E a missão conferida ao STF no art. 102 caput da CF[21] foi a de guarda da constituição. Da nossa lei maior. Seria pois, dever institucional da corte fazer prevalecer o primado dos direitos e garantias fundamentais de qualquer cidadão. Presencia-se, entretanto, um esvaziamento progressivo da garantia da presunção de inocência, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição. [22]

O STF foi exposto. Como disse O Min. Marco Aurélio durante o julgamento, se referindo a Min. presidente do STF, Carmen Lúcia: “Que isso fique nos anais do tribunal: vence a estratégia, o fato de Vossa Excelência não ter colocado em pauta as declaratórias de constitucionalidade.”    

Tivessem sido julgadas o mérito das ADC’s 43 e 44 o cenário possivelmente seria outro. Cumpre frisar que o entendimento pessoal da Min. Rosa Weber é contra a execução provisória de pena. E postas em pauta as ADC’s, ao que tudo indica, não vincularia seu voto ao posicionamento da instituição. Por enquanto, vence o utilitarismo.

 

[1]  Segundo José Afonso da Silva, a presunção de inocência é uma garantia de direito, que garante o direito de liberdade pessoal, liberdade de ir e vir, porque impede a prisão a prisão do acusado enquanto perdure. Mas é também um direito na medida em que toda garantia se inclui entre os direitos fundamentais AFONSO DA SILVA, José. Parecer Presunção de Inocência. Consulente Luiz Inácio Lula da Silva. Parecer apresentado nos autos do HC nº 152.752. In < https://www.jota.info/wp-content/uploads/2018/04/versao-2parecer-prof-jose-afonso-da-silva-minpdf-teste-ilovepdf-compressed-1.pdf>. Acesso em: 03.04.2018. P 21.

[2] Art. 5º, LVII, CF. Ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória;

[3] A garantia da presunção de inocência está prevista nos seguintes diplomas de direitos humanos: a Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão (1798), a Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU (1948), a Convenção Europeia de Direitos Humanos (1950), o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos da ONU (1966), a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969).

LOPES JR, Aury. BADARÓ, Gustavo. Presunção de Inocência: do conceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Consulente: Maria Cláudia de Seixas. Parecer apresentado nos autos do HC nº126.292/STF.In<http://emporiododireito.com.br/wpcontent/uploads/2016/06/Parecer_Presuncao_de_Inocencia_Do_concei.pdf >. Acesso em 28.03.2018.

[4]  LOPES JR., Aury. Direito processual penal. Aury Lopes Jr. -11. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2014. P. 95.

[5] Art. 393, I CPP (revogado). São efeitos da sentença condenatória recorrível: - ser o réu preso ou conservado na prisão, assim nas infrações inafiançáveis, como nas afiançáveis enquanto não prestar fiança.

[6] Art. 594 (revogado). O réu não poderá apelar sem recolher-se à prisão, ou prestar fiança, salvo se for primário e de bons antecedentes, assim reconhecido na sentença condenatória, ou condenado por crime de que se livre solto.

[7] Art. 283, CPP.  Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva.

[8] STRECK, Lênio. Decisão de segundo grau esgota questão de fato? Será que no Butão é assim? In <https://www.conjur.com.br/2018-mar-22/senso-incomum-segundo-grau-esgota-questao-fato-butao-assim>. Acesso em 27.03.2018. Em contra ponto a esta afirmação, ler a respeito da aplicação do mecanismo informal da mutação constitucional (Konrad Hesse), sustentada por Luis Roberto Barroso para justificar seu voto nos autos do HC nº 126.292, Rel. Min, TEORI ZAVASCKI, DJ 06/02/2017.

[9] STF, Plenário, HC nº 126.292, Rel. Min TEORI ZAVASCKI, DJ 06/02/2017. No julgamento referido, ver votos dos Min. Teori Zavascki, Roberto Barroso e Luiz Fux.

[10] LOPES JR., Aury. Direito processual penal. Aury Lopes Jr. -11. Ed. – São Paulo: Saraiva, 2014. P. 157.

[11]STRECK, Lênio. Supremo e a presunção da inocência: interpretação conforme a quê? In < https://www.conjur.com.br/2016-out-07/streck-stf-presuncao-inocencia-interpretacao-conforme>. Acesso em 28.03.2018.

[12] O relator Teori Zavascki, lembrou de um trecho de voto da então Min. Ellen Gracie segundo o qual” em país nenhum do mundo, a execução de uma condenação fica suspensa por recurso a instância superior”.  Referiu-se a legislação da Inglaterra, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, França, Espanha e Argentina.

[13] AFONSO DA SILVA, José. Parecer Presunção de Inocência. Consulente Luiz Inácio Lula da Silva. Parecer apresentado nos autos do HC nº 152.752. In < https://www.jota.info/wp-content/uploads/2018/04/versao-2parecer-prof-jose-afonso-da-silva-minpdf-teste-ilovepdf-compressed-1.pdf>. Acesso em: 03.04.2018. P 7.

[14] A exemplo de Constituições: Itália (1947), Portugal (1997), Albânia (1998), Angola (2010), Bulgária (1991), Croácia (1991), República Dominicana (2010), Equador (2008), Polônia (1997), Romênia (1991). STRECK, Lênio Luiz. Jurista e Jornalista produzem Fake News sobre presunção de inocência! In < https://www.conjur.com.br/2018-mar-26/lenio-jurista-jornalista-fazem-fake-news-presuncao-inocencia > Acesso em: 28.03.2018.

[15] LOPES JR, Aury. BADARÓ, Gustavo. Presunção de Inocência: do conceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Consulente: Maria Cláudia de Seixas. Parecer apresentado nos autos do HC nº126.292/STF.In<http://emporiododireito.com.br/wp-content/uploads/2016/06/Parecer_Presuncao_de_Inocencia_Do_concei.pdf >. Acesso em 28.03.2018.

[16] STRECK, Lênio Luiz. Teori do STF contraria Teori do STJ ao ignorar lei sem declarar inconstitucional. In < https://www.conjur.com.br/2016-fev-19/streck-teori-contraria-teori-prender-transito-julgado > Acesso em: 28.03.2018.

[17] LOPES JR, Aury. BADARÓ, Gustavo. Presunção de Inocência: do conceito de trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Consulente: Maria Cláudia de Seixas. Parecer apresentado nos autos do HC nº126.292/STF.In<http://emporiododireito.com.br/wp-content/uploads/2016/06/Parecer_Presuncao_de_Inocencia_Do_concei.pdf >. Acesso em 28.03.2018.

[18] A Min. Nos autos do HC nº126.292 votou contra a possibilidade de execução provisória de pena. Entretanto, a partir do precedente (não vinculante) da corte, vem votando de acordo com o entendimento da maioria do STF, como sendo possível executar pena antes do trânsito em julgado.

[19] Gilmar Mendes concede primeiro HC contra prisão após segunda instância. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2017-ago-23/gilmar-concede-primeiro-hc-prisao-segunda-instancia>. Acesso em: 28.03.2018. Anteriormente, no julgamento do HC 142.173/SP o D. Min. Gilmar Mendes já havia manifestado sua tendência em acompanhar o D. Min. Dias Toffoli no sentido de que a execução da pena com decisão de segundo grau deve aguardar o julgamento do recurso especial pelo STJ.

[20] “Dura lex, sed lex” – Tradução livre.

[21] Art. 102 caput da CF. Compete ao Supremo Tribunal Federal, precipuamente, a guarda da Constituição (...).

[22]Segundo o Min. Decano do STF, Celso de Mello, a presunção de inocência não se esvazia progressivamente, à medida em que se sucedem os graus de jurisdição. Isso significa, portanto, que, mesmo confirmada a condenação penal por um Tribunal de segunda instância, ainda assim subsistirá, em favor do sentenciado, esse direito fundamental, que só deixará de prevalecer – repita-se – com o trânsito em julgado da sentença penal condenatória, como claramente estabelece, em texto inequívoco, a Constituição da República.STF, Plenário, HC nº 126.292, Rel. Min TEORI ZAVASCKI, DJ 06/02/2017.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Mutirão Carcerário do CNJ encontra presídio superlotado - São Paulo 19-07-2011 // Foto de: Conselho Nacional de Justiça - CNJ  // Sem alterações

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