AFINAL, O JUIZ DO TRABALHO PODE DECRETAR A PRISÃO POR FALSO TESTEMUNHO?

18/02/2020

Coluna Atualidades Trabalhistas / Coordenador Ricardo Calcini

Vale sintetizar o objeto deste estudo no formato de uma pergunta: afinal, o juiz do trabalho “pode” determinar a prisão por falso testemunho?

Imagine o leitor que, em certa audiência trabalhista, o juiz entenda que a testemunha faltou dolosamente com a verdade. Ora, diante de tal quadro, restaria cometido o crime de falso testemunho, tipificado no Código Penal, artigo 342, que traz: “Fazer afirmação falsa, ou negar ou calar a verdade como testemunha, perito, contador, tradutor ou intérprete em processo judicial, ou administrativo, inquérito policial, ou em juízo arbitral”. A pena é de reclusão, de dois a quatro anos, além de multa, pena essa que sofre aumento de um sexto a um terço se o crime for praticado mediante suborno ou se cometido com o fim de obter prova destinada a produzir efeito em processo penal, ou em processo civil em que for parte entidade da administração pública direta ou indireta (CP, artigo 342, §1º).

Sendo assim, passa-se a examinar a questão proposta.

De início, há de se pontuar que o juiz do trabalho não tem competência em matéria penal, já que não se encontra qualquer previsão em contrário no artigo 114 da Constituição Federal. Neste sentido, a decisão do Pleno do Supremo Tribunal Federal, na Ação Direta de Inconstitucionalidade 3684/ MC/DF, sob relatoria do Min. Cezar Peluso, de 01.02.2007 (julgamento), cuja ementa traz: “Competência Criminal. Justiça do Trabalho. Ações penais. Processo e Julgamento. Jurisdição penal genérica. Inexistência. Interpretação conforme dada ao art.114, incs.I, IV e IX, da CF, acrescidos pela EC nº 45/2004. Ação Direta de Inconstitucionalidade. Liminar deferida com efeito ex tunc. O disposto no art.114, incs. I, IV e IX, da Constituição da República, acrescidos pela Emenda Constitucional nº 45, não atribui à Justiça do Trabalho competência para processar e julgar ações penais”.  

Aliás, o Superior Tribunal de Justiça já se debruçou sobre o tema, especificamente no tocante ao crime de falso testemunho, o que encontra, v.g., no julgamento do Conflito de Competência 14.508/SP, havido em 07.12.1995, por sua Terceira Seção, sob a relatoria do Ministro Anselmo Santiago. Na ocasião, por unanimidade, o STJ entendeu que o falso testemunho havido em processo que tramita perante a Justiça do Trabalho, por se tratar de “Justiça Especializada da União Federal”, consiste em atentado contra a administração desta e, com isso, atrai a competência da Justiça Federal Comum, ex vi do disposto no artigo 109, IV da CF.

No voto, o relator, Ministro Anselmo Santiago, faz menção ao fato de se tratar de entendimento pacífico daquela Corte Superior e indica, expressamente, o decidido nos Conflitos de Competência 11.492, relatado pelo Min. Edson Vidigal, julgado em 05.06.1995, e 13.406, sob relatoria do Min. Assis Toledo, julgado em 02.10.1995, que traz: “Processual Penal. Falso testemunho em Reclamação Trabalhista. Compete à Justiça Federal processar e julgar crime de falso testemunho praticado perante a Justiça do Trabalho”.

Sobre a questão, ainda, o verbete 165 da Súmula do STJ: “Compete à Justiça Federal processar e julgar crime de falso testemunho cometido no processo trabalhista”.

Na mesma trilha, o afastamento da competência da Justiça do Trabalho em matéria penal alcança outros possíveis tipos também caracterizados durante a instrução processual. Vale destacar decisão retirada da jurisprudência dos Tribunais Regionais Federais, tomando-se como exemplo a havida pelo TRF da 3ª Região, no julgamento do Habeas Corpus 8913/SP, sob relatoria do Desembargador Federal Oliveira Lima, julgado pela sua Primeira Turma, em 08.02.2000, cuja ementa traz: “Habeas Corpus – Competência – Documento Falso apresentado perante a Justiça do Trabalho – Juízo Federal. 1. Compete à Justiça Federal processar e julgar o crime de uso de documento falso perante a Justiça do Trabalho. Súmula 200 do extinto TFR e 165 do Superior Tribunal de Justiça. 2. Ordem denegada”.

Conjugada a conclusão acima apresentada com o direito fundamental ao devido processo legal, positivado na nossa ordem constitucional no artigo 5º, LIV do Texto Maior de 1988 (“ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”), bem como com a garantia não menos fundamental de que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (CF, artigo 5º, LIII), resta evidente que não há como se admitir a condenação de qualquer pessoa à pena de prisão, seja por qual crime for, havida em decisão de juiz incompetente para tanto, como, no caso estudado, ocorre com relação ao juiz do trabalho.

Observe-se que qualquer outra interpretação que se possa dar à questão, com o devido respeito, esbarra na tutela dos direitos fundamentais, o que, por si, a afasta.

Poder-se-ia, contudo, questionar acerca da aplicação, aqui, do disposto no inciso LXI do mesmo artigo 5º da Constituição Federal, que traz: “ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei”. (negrito do autor)

A partir do que se lê no dispositivo acima destacado, no caso de “flagrante delito”, cometido pela testemunha e constatado pelo juiz do trabalho, resta excepcionada a exigência constitucional de que a condenação se dê pela autoridade judiciária competente? Sendo assim, o juiz do trabalho poderia decretar a prisão “em flagrante” pelo crime de falso testemunho cuja prática presenciou naquela audiência?

Novamente registrado o respeito pelos entendimentos em contrário, aparentemente majoritários, parece claro que, mesmo no caso de “flagrante delito”, não há espaço sequer para cogitar essa possibilidade, o que, novamente, é sustentado com base no princípio do devido processo legal, positivado como direito fundamental em nossa Constituição Federal (artigo 5º, LIV).

Ocorre que o decreto de prisão, pelo juiz do trabalho, em casos como o aqui proposto para reflexão, violaria o disposto no mesmo artigo 342 do Código Penal, em seu §2º, verbis: O fato deixa de ser punível se, antes da sentença no processo em que ocorreu o ilícito, o agente se retrata ou declara a verdade”.

Portanto, é direito da testemunha que faltou com a verdade a retratação ou a declaração da verdade a posteriori, desde que o faça antes de ser proferida a sentença no processo em que ocorreu o ilícito. Nesse caso, ou seja, havida a retratação ou a declaração da verdade por parte da testemunha, o fato (a falsa afirmação feita ou a negativa ou o silêncio frente à verdade), tipificado como crime no precitado artigo do Código Penal, deixa de ser punível.

Ora, se a testemunha tem o direito de se retratar ou de declarar a verdade até que seja proferida a sentença, e, o fazendo, tem a extinção da punibilidade, nos moldes do artigo 107, VI combinado com 342, §2º, ambos do Código Penal, até o referido momento processual (qual seja, a sentença) não pode a testemunha sofrer a punição prevista na lei penal pela prática do delito, sob pena de supressão da referida faculdade legal.

O caro leitor ou a cara leitora ainda assim poderia questionar sobre o disposto no artigo 5º, LXI, do Texto Maior de 1988, já que, tendo o falso testemunho ocorrido em audiência, na presença do juiz do trabalho, a prisão resultaria de flagrante delito o que, portanto, encontraria amparo constitucional.

A referida conclusão também não pode ser aceita. Ocorre que, se validada, restaria aniquilada, de forma irremediável, a previsão do artigo 342, §2º, do Código Penal e afrontado artigo 107, VI do mesmo diploma legal. Ora, se o juiz puder decretar a prisão “em flagrante” da testemunha que faltou com a verdade, já na audiência, restará afastado o direito de retratação ou de declaração da verdade até a sentença, tendo por consequência a extinção da sua punibilidade – em qualquer processo, não apenas naqueles que tramitam perante a Justiça do Trabalho.

Sendo assim, a previsão do artigo 342, §2º, do CP afasta a possibilidade de prisão “em flagrante” nos casos de crime de falso testemunho ou falsa perícia, sob pena de deslocar a titularidade da faculdade de retratação ou declaração de vontade da pessoa ouvida como testemunha para o próprio juiz, o que não encontra qualquer amparo legal.

Assim, um mero exercício de lógica e a leitura integral do artigo 342 do Código Penal – que não se resume ao seu caput – basta para que reste fulminada a discussão: no ordenamento não se encontra guarida para a conduta do juiz do trabalho no sentido de determinar a prisão por crime de falso testemunho, pois: (1) se o fizer na sentença, faltaria a ele competência material para tanto; e (2) se o fizer na audiência, violaria o garantido à testemunha no artigo 342, §2º, do Código Penal – faculdade de retratação/declaração de verdade tendo como consequência a extinção da punibilidade (leia-se, também, CP, artigo 107, VI).

Seria possível cogitar, então, o caso do juiz do trabalho proferir sentença já na audiência, e, em razão disso, afastada a possibilidade de retratação, determinar a prisão da testemunha. Ocorre que, ainda assim, haveria o óbice da incompetência, além do previsto no artigo 211 do Código de Processo Penal, que traz: Se o juiz, ao pronunciar sentença final, reconhecer que alguma testemunha fez afirmação falsa, calou ou negou a verdade, remeterá cópia do depoimento à autoridade policial para a instauração de inquérito”.

Portanto, o juiz, ao reconhecer o falso testemunho, deve remeter cópia do depoimento à autoridade policial, para instauração do inquérito (sem prejuízo de ofício ao Ministério Público Federal, também), não cabendo o decreto de prisão imediato – o que, mais uma vez, demonstra a ilegalidade da conduta e a afronta ao devido processo legal, que representa, inclusive, violação a direito fundamental do jurisdicionado.

Destaque-se, contudo, que importantes e respeitáveis posições encontradas na doutrina carregam o entendimento no sentido de nada obstar a ordem de prisão em flagrante, pelo juiz do trabalho, “como qualquer do povo”, se o fato delituoso ocorreu na sua presença, o que alcançaria casos de falso testemunho. Há, também, decisões da própria Justiça Federal neste sentido, como, por exemplo, encontra-se no julgamento do Habeas Corpus 2511 2001.02.01.029549-5, Sexta Turma do TRF da 2ª Região, havida sob relatoria do Desembargador Federal André Fontes, publicada em 29.01.2002, cuja ementa traz: “Habeas Corpus. Prisão em flagrante determinada pelo juiz do trabalho. Falso testemunho. Liberdade provisória. Perda de objeto. 1. Não pode o juiz do trabalho, que não tem jurisdição criminal, expedir ordem de prisão dessa natureza, embora possa, como qualquer do povo, prender em flagrante, se o crime ocorrer na sua presença (TRF da 1ª Região, HC 2001.010.00.14241-s PI). Não se afigura ilegal, por isso, prisão em flagrante determinada por juiz do trabalho, em razão de divergência nos depoimentos de duas testemunhas, uma das quais o paciente. 2. O Tribunal Regional Federal é competente para processar e julgar habeas corpus quando a coação é proveniente de juiz do trabalho (TRF da 4ª Região,  HC 1999.04.01.054569-0 SC). 3. Logo após a impetração do writ, o flagrante foi comunicado à autoridade competente que, verificando a inocorrência de qualquer das hipóteses que autorizam a prisão preventiva, deferiu o requerimento de liberdade provisória, nos termos do art.310 do Código de Processo Penal. 4. Pedido prejudicado, em razão da perda de objeto, com fundamento no art.659 do Código de Processo Penal”.

De todo modo, pelas razões expostas acima, dentre outras, entende-se em sentido contrário pelo descabimento de prisão em flagrante nos casos de falso testemunho, sob pena de afastamento até mesmo da interpretação teleológica devida ao artigo 342 que incentiva o ato de retratação e o faculta à testemunha. Porém, não se pode negar ao leitor e à leitora informações acerca de entendimentos concretizados em sentido contrário em decisões judiciais, tais como a acima referida.

O que se busca com a prova é o descobrimento da verdade, a ser considerada por ocasião da decisão acerca dos pedidos deduzidos – em regra, na sentença (vale lembrar dos julgamentos antecipados parciais de mérito admitidos pelo CPC, artigo 356). Ora, sendo assim, absolutamente justificável o disposto no §2º do artigo 342 do CP, o que se perde com a hipótese da precipitada prisão “em flagrante” aqui analisada.

Por fim, vale esclarecer que não se refuta a importância do tipo penal em tela; ao contrário, há de ser levada adiante a questão, com o ofício às autoridades previstas no artigo 211 do CPP, ao Ministério Público, tudo, enfim, para a tomada das medidas necessárias à ação penal e, se comprovada a prática do ilícito, a condenação da testemunha. Entrementes, tal procedimento deve ser feito à luz do Direito, respeitado o devido processo legal (substancial e processual), em especial em casos nos quais, não raro, faltam elementos objetivos à conclusão cabal da inveracidade (a exigir que se oportunize maiores condições de investigação sobre as razões do afirmado pela testemunha, até para se ter certeza se esta mentiu ou, talvez até enganada, entendia que a realidade retratada era a verdadeira).

Direito, produto cultural que, dentre suas perigosas belezas, nos oportuniza múltiplas interpretações. Essa, apenas uma possível, talvez minoritária, mas, baseada em fundamentos claros – como há de ser.

 

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