ADVOGADOS: COMO USAR A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL SEM FERIR A LGPD?

06/11/2024

 "(...) a história das verdades jurídicas é inseparável (até o momento) da história do poder". 

(Luís Alberto Warat)

O uso de Inteligência Artificial tem crescido em todas as profissões, e na advocacia não é diferente. Sobre o ChatGPT, é comum vermos casos em que as ferramentas foram configuradas para atuar como advogados. Diversos advogados e escritórios assim os direcionam para contarem com auxílio nas demandas do dia a dia. Inclusive,  advogados autônomos e sem equipe estão usando bastante a Inteligência Artificial. O uso tem crescido porque acaba servindo como um poderoso assistente no dia a dia, mas uma preocupação constante quando pensamos no uso da Inteligência Artificial a partir de alguns prismas, sendo um deles, o da Proteção de Dados (realizado de uma forma que não viole a LGPD e a própria Constituição Federal do Brasil).

No campo jurídico, quando atuamos em processos, fatalmente nos deparamos com a existência de dados pessoais. Muitos advogados têm usado a Inteligência Artificial para poder construir peças jurídicas, como petições iniciais, contestações e impugnações, para elaborar perguntas a serem realizadas em audiências, para elaborar recursos etc. O uso da IA (sendo o ChatGPT um exemplo) não somente é considerado interessante, como já é um fato e acontecimento discursivo, em curso nesse instante. Contudo, é necessário ter alguns cuidados quando abordamos o tema da Proteção de Dados. Que cuidados seriam esses?

Uma medida importante é não utilizar dados pessoais no uso da Inteligência Artificial. Por exemplo, nunca colocar um contrato com os dados pessoais do seu cliente, com o número de RG ou CPF. Inclusive, caso você leia os termos de uso da Inteligência Artificial citada, verá que existe uma curadoria e uma análise humana com acesso às informações que você está fornecendo no uso.

Ainda que o usuário consiga desativar essa opção em alguns modelos de IA, de todo modo não é legal compartilhar informações pessoais, sobretudo ante a tendência de uso de dados para treinamento e revisões em caso de problemas e erros. E ainda, o contexto relativamente obscuro de incertezas que atravessam o controle interno e externo; bem como o risco de vazamentos e utilização prejudicial por terceiros. Então, se você utiliza IA no seu escritório e/ou advocacia autônoma, enfim, se você já tem por hábito usar a Inteligência Artificial, implemente medidas de proteção de dados pessoais imediatamente.

Quando falamos de Inteligência Artificial, é importante lembrar de algo que repetimos muito em aulas, eventos e atividades: você é o mentor da Inteligência Artificial e não o contrário. Mas, o que significa isso? Sendo você o mentor, você não deve encarar a Inteligência Artificial como fonte primária, e quanto menos você souber sobre o tema, mais complexo tende a ser o seu trabalho na curadoria: inevitavelmente você precisará aprender e estudar mais. Uma boa notícia, é que a IA pode ajudar nos direcionamentos para isso, exigindo que você se desenvolva como profissional que domina a ferramenta (e não alguém que se ancora nela, por falta de conhecimento).

Em tempos recentes, circularam na mídia pessoas falando que a Inteligência Artificial não servia para a advocacia, porque certo advogado teria utilizado uma jurisprudência que não existia, que a Inteligência Artificial criou. Coisas similares continuam famosas na grande mídia, sobretudo envolvendo erros materiais grosseiros, que teriam passado e sido produzidos sob o crivo de alguma IA, sem o devido uso e revisão humana.

Esse é um ponto crucial, porque as pessoas que fizerem o uso da Inteligência Artificial considerando o conteúdo criado, sem interrogações e questionamentos, de modo irrefletido, sem conferir as informações, sem checar, sem criticidade, de fato podem passar por situações do tipo. A Inteligência Artificial precisa ser encarada como um assistente, nunca como uma fonte primária: e nunca algo para se confiar cegamente, com efeitos de saturação de sentido e efeitos de naturalidade.

É necessário que você (usuário) olhe para a Inteligência Artificial entendendo que você próprio deve assumir o papel de mentor. Mas o que seria esse papel de mentor? Basicamente, você deve direcionar e aprender a dominar como melhor conduzir a ferramenta, conferir informação por informação, utilizar o contexto e os ajustes, inclusive para corrigir a ferramenta, que apesar do volume massivo de dados tratados e acessados (em patamares impossíveis para um ser humano), deve permanecer sendo entendida como ferramenta, e não como sujeito do discurso.

Diga-se de passagem: o uso de IA engendra polêmicas e potenciais problemas, mas também explicita aspectos positivos: evidencia como o paradigma de decorar sem uma compreensão profunda, sem criticidade, sem questionamentos, não deve ser a nossa meta humana de aprendizado sério. O selo de bom profissional humano, como aquele capaz de recitar artigos legais, há muito se rompeu. Os bons profissionais do cotidiano buscam resolver problemas e enxergar além dos efeitos de evidência dos discursos que circulam. Questionam as evidências. Algo necessário ao lidarmos com novas tecnologias e Inteligência Artificial no direito.

São muitos os usos positivos que você pode fazer da Inteligência Artificial na advocacia, respeitando a LGPD, o ordenamento jurídico e as nossas instituições. Digamos, por exemplo, que você esteja pedindo exemplos de perguntas para fazer em uma audiência sobre determinado tema e contexto.

No uso da Inteligência Artificial, quanto mais específica a sua pergunta, mais específica tende a ser a sua resposta. Quanto mais completa e atrelada a parâmetros indicados, mais individualizada e assertiva tende a ser a resposta gerada.

Quanto mais for explicado sobre os erros e os pontos de incongruência, melhor deve ser a sua nova devolutiva. Reafirmar e destacar os acertos também é interessante para que a ferramenta avance mais naquele sentido, à luz de premissas e pressupostos já validados por você como mentor.

Porém, lembre-se de não inserir dados pessoais: não colocar nome de cliente e número de processo, não adicionar números de registro e credenciais, jamais dados financeiros como senhas e informações sigilosas de saúde de clientes.

Embora não seja unânime, empresas e instituições brasileiras já interpretam incidentes do tipo como vazamento de dados, ou no mínimo (havendo aqui um consenso), como práticas que facilitam o vazamento de dados, passível de responsabilização em múltiplas esferas. Dessa forma, tornou-se comum o desenvolvimento de políticas corporativas sobre o uso de IA, documentos das empresas que versam, entre outros temas centrais, sobre a LGPD e a Proteção de Dados na empresa, explorando as potencialidades e os riscos do uso corporativo de IA.

Esse documento pode inclusive elencar que ferramentas são proibidas e quais são permitidas, em que circunstâncias e de que forma (cumprindo que requisitos, de forma orientada por quais princípios etc.).

Documentos nesse sentido tendem a se tornar mais comuns no Brasil e no mundo. Algumas empresas optam por proibir (banir) o uso de IA (frequentemente recuam da proibição ou reajustam os termos), mas um caminho de regras bem delimitadas, conciliando inovação e direitos, tende a ser um horizonte mais realista do que o proibicionismo total.

Especificamente sobre o uso da IA no campo jurídico, um ponto relevante é que quanto mais conhecimento você possui da sua área, melhor uso tende a (ou consegue) fazer da Inteligência Artificial. Isso porque é sempre necessário fazer uma curadoria completa daquelas informações. Então, em linhas gerais, você precisa saber se o conteúdo gerado está certo ou errado, em que ponto(s), e para saber isso com profundidade, você precisa ser um especialista diante do caso concreto.

Portanto, lembre-se sempre que você é o mentor da Inteligência Artificial. Ou seja, você precisa corrigir todos os equívocos dela, fornecer muitas vezes retornos e avaliações (os chamados feedbacks), precisa destacar aspectos, verificar e checar informação por informação, reanalisar sob distintos ângulos, e jamais expor dados pessoais. É preciso cuidado para que a ferramenta, nesse percurso, não retroalimente o viés confirmatório, apagando lacunas, limites, aspectos e condições importantes, produzindo “evidências” (como efeitos) que destoam bastante do real.

Ainda sobre o uso prático (sem dados pessoais de sujeitos empíricos), como exemplo, alguns profissionais costumam colocar contratos para a Inteligência Artificial analisar: pode ser interessante para ela sugerir pontos de melhoria, indicar pontos que estão complexos e que poderiam ser explicados de uma forma melhor, expor pontos críticos, riscos, cláusulas que aparentemente foram esquecidas, enunciados ambíguos, dúbios, amplos demais etc. Porém, é necessário lembrar que não adicionamos dados pessoais ali. E que isso pode gerar repercussões jurídicas e comerciais no contexto de vazamentos de dados, com dever de reparação e responsabilização em sentido amplo (não restrito às sanções administrativas da LGPD).

Outro ponto vital é que o advogado deve sempre cuidar para, no cotidiano, não expor dados pessoais de clientes e demais envolvidos em decorrência de seu trabalho. Ainda é comum vermos publicações de redes sociais como Stories (publicações temporárias que desaparecem em 24h, por vezes até fixadas em destaques), em que o profissional narra que ganhou uma liminar, que ganhou uma sentença procedente, e ainda colocando fotos, de forma que constam informações como número do processo, nome das partes, dados sensíveis como dados de saúde etc.

Entre outras questões, isso pode ser juridicamente considerado um vazamento de dados e com facilitação de outros ilícitos, inclusive de repercussão criminal, como golpes e fraudes diversas a partir dos dados pessoais expostos.

Vale frisar que escritórios de advocacia também precisam se adequar à LGPD. E por quê? Porque todas as empresas — e o escritório de advocacia não deixa de ser uma — precisam se adequar à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Ademais, trata-se de Garantia Fundamental hoje expressa na Constituição Federal, de modo que proteger dados pessoais remete a uma importante matéria constitucional.

Somado a isso, destacamos que a advocacia comumente trata diversos dados pessoais, inclusive sensíveis, e dados ainda não considerados sensíveis, mas delicados, como os financeiros, que já contam com um maior rigor e controle institucional em caso de incidentes de segurança e uso indevido, por exemplo, na esfera criminal, apesar de não necessariamente considerados sensíveis pela LGPD (nossa legislação específica sobre dados pessoais).

Em quais momentos o escritório de advocacia tradicionalmente lida com dados pessoais? Isso ocorre, por exemplo, quando um cliente chega no escritório de advocacia, e esse cliente conta o caso, isto é, apresenta uma narrativa repleta de informações (muitas delas sensíveis e especialmente delicadas no contexto em que são apresentadas). Ainda que outros documentos sejam apresentados posteriormente, é comum que já nesse primeiro contato, a pessoa leve documentos pessoais e relacionados ao caso, de modo a demonstrar para o profissional jurídico o que entende ser relevante em sua explicação sobre os fatos.

Só nisso, já existe um contato enorme com dados pessoais, de modo que a advocacia indica exemplo manifesto de profissionais que lidam diariamente em seu trabalho com a centralidade de dados pessoais.

Seja tradicionalmente, em suas origens históricas, seja na atualidade do século XXI, dentro de um (tecno)capitalismo ou capitalismo digital, a advocacia estrutura-se e opera radicalmente a partir do tratamento de dados pessoais, devendo, ainda, ser exemplo de cumprimento dos entendimentos jurídicos e constitucionais sobre a temática. Os advogados precisam entender profundamente esse tema.

Ainda no exemplo do cliente que vai ao escritório, caso ”feche” com o profissional na oportunidade, assinará documentos (contrato e procuração), deixará cópias dos seus documentos etc. Isso tudo, para ficar bem no básico. O descrito são dados pessoais resguardados pela LGPD, seja no meio físico, seja no meio digital.

O escritório precisa garantir a proteção, a confidencialidade e o bom uso daqueles documentos perante a Lei Geral de Proteção de Dados. Então, ele precisa ter, por exemplo, documentos como termo de confidencialidade assinado por todos que trabalham no escritório; precisa ter processos e procedimentos internos de circulação de dados no escritório… Ou seja, deve ter todo o seu procedimento interno, bem como todos os documentos de LGPD, devidamente estruturados e alinhados (materializados na realidade) para que não ocorra nenhum tipo de incidente problemático, como vazamento de dados, de forma que aquele cliente não seja exposto (zelando por sua segurança, privacidade, dignidade etc.).

O tema reflete diretamente na credibilidade e na relação de confiança com os profissionais, não sendo uma questão sugestiva de forma, optativa, mas incumbência obrigatória, dever de extrema importância, com consequências materiais concretas em caso de (des)cumprimento. E que na esfera criminal passa a adentrar, nas modalidades culposas, na discussão sobre a quebra dos deveres objetivos de cuidado legalmente exigidos. 

Então, é preciso lembrar que as novas tecnologias e ferramentas nutrem potencialidades que, claro, podem nos auxiliar em diversos pontos, com o complemento de que é necessário usá-las com sabedoria e regras sobre dados, e nesse horizonte, sempre respeitando a LGPD.

 

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