Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenadores Assis da Costa Oliveira, Hellen Moreno, Ilana Paiva, Tabita Moreira e Vivian Degann
Ela era uma criança e eles queriam que ela carregasse outra criança na sua barriga. Ela não era de uma boneca russa, que costuma carregar na sua barriga outra boneca. Ela é uma menina com 10 anos de idade, que ao ser estuprada pelo tio, engravidou. Diferente de uma boneca russa, a nossa menina não queria carregar na sua barriga outra criança.
O caso não aconteceu na Rússia e sim no Brasil. A Justiça Brasileira, baseada no Estatuto da Criança e do Adolescente e legislações correlatas, reconheceu e autorizou o procedimento de aborto legal, afirmando que além das questões legais e de saúde, a própria menina não queria ser mãe.
Contudo, nem sempre o que está escrito na Lei se efetiva na vida das pessoas (ou não se efetiva de forma tão direta), principalmente quando as meninas são pobres, de periferia e que vivenciam diferentes formas de abandono. Para além da violência sofrida, o caminho que levou a menina a ter seu direito garantido, foi marcado por diferentes formas de agressão. Além da falta do protocolo para o procedimento médico na sua terra natal - que a fez viver o deslocamento para Recife -, o caso ganhou repercussão nacional, não só em decorrência da violência, mas pela politização produzida por lideranças da ultradireita e fundamentalistas religiosos, tentaram impedir que o direito da menina fosse efetivado.
Neste cenário sombrio, a menina passava a enfrentar outra violência, na qual vou chamar de adultocentrismo fundamentalista. Considero que a prática adultocêntrica é historicamente produzida, que coloca no centro os interesses dos adultos para tratar questões das crianças e os mundos que as norteiam. Como afirma Chiara Chiapperini, o adultocentrismo parte do pressuposto que “sempre sabemos a priori o que as crianças deverão ser, o modo como deverão viver, a forma mais correta do seu pensamento”. (Chiapperini, 2006, 11)
Ao projetar na criança o adulto de amanhã, o adultocentrismo nega o direito da criança viver a infância. Mas, quantas faces tem o adultocentrismo? Muitas, entre elas a face fundamentalista religiosa. O adultocentrismo fundamentalista tem forte influência da patriarcalismo, que nega o direito da criança viver a infância em nome dos interesses religiosos conservadores. Da religião que se misturou coma política e decretou, no passado colonial, a “guerra justa” que exterminou indígenas, que perseguiu os terreiros e escravizou crianças e, no passado mais recente, silenciou os diferentes casos de abuso sexual praticados contra crianças e adolescentes dentro das igrejas.
Neste caso, o adultocentrismo fundamentalista permeia práticas de católicos e evangélicos, que, “em nome de Deus”, mobilizaram-se para impedir que a equipe médica efetivasse o procedimento adequado e garantido em Lei. Com terços e bíblias nas mãos, reuniram-se na frente da maternidade, provocando um tumulto na porta de entrada da maternidade. Acuados, equipe médica e família, decidiram colocar a menina na porta mala do carro para que assim tivessem acesso ao hospital.
Entre os fundamentalistas, estavam parlamentares conservadores, que buscavam tornar a frente da maternidade palanque para o seu discurso “pró-vida”, questionando os direitos das mulheres, o movimento feminista e a luta pela discriminação do aborto. Eles também falavam em nome da fé e do parlamento e buscavam invadir a maternidade e impedir o procedimento.
Mas, do outro lado da calçada estava o movimento de mulheres e a sociedade organizada que atua no campo dos direitos da criança e do adolescente. Entre eles, um conselheiro tutelar do Recife chamado André Torres, que na mesma semana - em parceria com outros conselheiros -, protocolaram uma denúncia no Ministério Público contra os parlamentares adultocêntricos. E, em meio dos conflitos e tensões, as defensoras de direitos humanos organizaram um jogral quase silencioso, que defendia o direito da menina viver a infância.
Eu também estava entre aqueles que enfrentavam os adultocêntricos fundamentalistas, na maioria católicos conservadores. Entre rezas e orações em nome da fé e contra os direitos, presenciei uma cena em que homens e mulheres rezavam um “pai nosso” para que a criança se tornasse mãe. Uma “ave-maria” para que o aborto legal não se efetivasse.
Vivi um dos momentos mais marcantes da vida de professor e defensor de Direitos Humanos e que me fizeram perguntar: para que “Deus” eles rezam? Para que “Deus” eles oram? Que Deus escutará o a rezas e as orações dos adultocêntricos fundamentalistas? Que Deus escutará os gritos “silenciosos” da menina de 10 anos, que desde os 6 anos era abusada pelo tio?
O adultocentrismo fundamentalista se manifestou nas orações que ignoraram a voz da menina, seu sofrimento, sua dor... A História deste caso é marcado pela participação de pessoas que, em nome da fé, aglutinaram-se em frente da maternidade e lá fizeram suas preces e orações para que a Lei fosse descumprida e o direito da menina fosse negado. Para os fundamentalistas, criança não é prioridade absoluta e sujeitos de direitos, como preconiza nossa Constituição Federal de 1988 e o Estatuto da criança e do Adolescente.
Como historiador de ofício, vivi a História marcada por adultocêntricos fundamentalistas que se recusavam a ouvir o sofrimento de uma criança, que em nome da “pró-vida” insistem em defender a política da morte. Daqueles que em nome de Deus, rezaram pela morte da infância. Da morte da criança que não desejava ser mãe. Daqueles que em nome da fé, pregaram a morte da criança viver sua infância.
Notas e Referências
CHIAPPERINI, Chiara (org.) Walter Kohan - Infanzia e filosofia. Milano: Morlacchi Editore, 2006.
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