A Constituição da República de 1988 tanto concorre como é forjada por um cenário marcado por processos de destradicionalização das relações familiares, muitos deles de amplo alcance, sem precedentes ou mesmo inimagináveis há poucas décadas. Em meio a esses processos todos, as obrigações de papeis típicas da trama familiar perdem a rigidez e a estabilidade de outrora (Marques, 2023). Reviravoltas democráticas dessa ordem dificilmente podem ser subestimadas, mesmo quando desafiadas por movimentos regressivos de todo tipo, caso do fenômeno contemporâneo que pesquisadoras e pesquisadores como Biroli, Machado e Vaggione (2020) têm chamado de neoconservadorismo, cujo script, a propósito, reserva às representações convencionais da maternidade um lugar destacado, estruturante mesmo.
Mas olhemos a Constituição de 1988 ainda mais de perto. Ela assegura licença de cento e vinte dias à gestante e atribui ao legislador infraconstitucional a tarefa de definir a extensão da licença-paternidade[1]. Já o Ato das Disposições Constitucionais Transitórias fixa em cinco dias a duração da licença-paternidade, enquanto pendente regulamentação da matéria[2]. Esses dispositivos sugerem, por si sós, uma Constituição que denuncia e tensiona a “historicidade acumulada e dissimulada” (Butler, 2002) da paternidade (e, numa perspectiva relacional, também da maternidade). Em outras palavras, sugerem uma Constituição que (já) desloca os sentidos tradicionalmente atribuídos à paternidade (e à maternidade)[3]. Esse quadro fica mais e mais evidente à medida que entra em cena um conjunto de dispositivos, como aqueles que reconhecem a igualdade entre homens e mulheres e a igualdade dos cônjuges no casamento.
Uma vez suspensas as concepções da paternidade (e da maternidade) de seu passado pré-constitucional, elas passam a ocupar uma posição destacadamente nova, porque agora sujeitas aos princípios e objetivos fundamentais da ordem constitucional brasileira e do constitucionalismo democrático. A linguagem constitucional, enfim, (já) denuncia aquilo que modelos hegemônicos de maternidade e de paternidade dissimulam: nem essência, nem destino, a maternidade moderna, aquela que entrelaça instinto, cuidado e domesticidade, é uma fabricação.
É verdade que o reconhecimento da licença-paternidade como direito fundamental é um marco tanto na história do constitucionalismo brasileiro como na luta pela igualdade de gênero e que deve ser creditado à articulação suprapartidária, horizontal e polifônica entre constituintes, feministas do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher e militantes feministas (Silva, 2011; Cattoni de Oliveira; Marques, 2020a e 2020b). Também é verdade que essa história pode ganhar um novo capítulo, com amplas repercussões nos mais diversos campos sociais. E isso porque o Supremo Tribunal Federal foi provocado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde, em sede da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 20, a fixar um prazo para que seja feita a regulamentação do direito fundamental à licença-paternidade e, findo o prazo, que essa licença seja equiparada à licença-maternidade.
É que passadas mais de três décadas, persiste a omissão inconstitucional, ainda que contornada por iniciativas isoladas, de alcance muito limitado, já que contemplam pequenos grupos de pais. É o caso da Lei nº 13.257, conhecida como Marco Legal da Primeira Infância, e do Decreto nº 8.737, que instituiu o Programa de Prorrogação da Licença-Paternidade para os servidores regidos pela Lei nº 8.112/1990. No primeiro caso, foi alterada a Lei nº 11.770/2008, que criou o Programa Empresa Cidadã, para prorrogar por quinze dias a duração da licença-paternidade, além dos cinco dias já constitucionalmente estabelecidos. A prorrogação beneficia pais biológicos ou adotivos empregados de pessoas jurídicas inscritas no Programa Empresa Cidadã. Já o Decreto nº 8.737 prorrogou a licença-paternidade por quinze dias, além dos cinco dias já assegurados pelo ordenamento jurídico (artigo 208, Lei 8.112/1990). O Decreto também alcança os casos de adoção e de obtenção de guarda judicial para fins de adoção de criança.
O julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 20, que teve início em 2020, foi pausado por pedido de vista e retomado no último dia 30. O relator, ministro Marco Aurélio Mello, julgou improcedente o pedido, com base na disposição constitucional transitória, que fixou – todavia provisoriamente –, em cinco dias a duração da licença-paternidade. O ministro Edson Fachin, por sua vez, divergiu para julgar procedente o pedido e declarar a mora legislativa, determinando prazo de 18 meses ao Congresso para sanar a omissão. Propôs também o acolhimento dos pedidos da inicial, enquanto pendente a regulamentação, para equiparar, desde já e no que couber, a licença-paternidade à licença-maternidade.
Já os ministros Dias Toffoli e Gilmar Mendes julgaram parcialmente procedente o pedido, para reconhecer a mora legislativa, estabelecendo prazo de 18 meses para adoção das medidas legislativas necessárias para suprir a lacuna. Não estabeleceram, contudo, solução normativa em deferência à regra provisória estabelecida pelos constituintes. Já o ministro Luís Roberto Barroso, adotando solução intermediária, votou pela procedência do pedido, com o reconhecimento da omissão inconstitucional e fixou o prazo de 18 meses para que o Congresso Nacional legisle a respeito. Propôs, ainda, que, findo o prazo, persistindo a ausência de regulamentação, que sejam equiparados os prazos das licenças maternidade e paternidade.
O que está em jogo no julgamento da aludida Ação Direta de Inconstitucionalidade por Omissão n.º 20, em última análise, é a possibilidade (i) de reconfiguração das engrenagens da divisão sexual do trabalho e das representações convencionais da feminilidade e da masculinidade que ela carrega; (ii) de desestabilização do mito da maternidade; (iii) de exploração e nomeação de experiências paternas outras, para além, para muito além das representações correntes do pai provedor, do pai autoridade, do pai modelo ou do pai herói – qualquer que seja o arranjo familiar de que falamos, se hétero ou homoparental –, como sugerem autores como Figueroa Perea (2014) e relatórios recentes sobre a paternidade, como A Situação da Paternidade no Mundo (Levtov et al, 2015a; 2015b) e Masculinidades e Políticas de Equidade de Gênero: reflexões a partir da pesquisa IMAGES e uma revisão de políticas no Brasil, Chile e México (Barker; Aguayo, 2011).
O que está em jogo, enfim – e como reconhecem, em seus votos, os ministros Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Dias Toffoli –, é a possibilidade (iv) de subversão dos “dividendos patriarcais”, é dizer, das vantagens simbólicas, sociais, culturais e materiais disponíveis aos homens em geral, embora acessíveis e usufruídos por esses mesmos homens de forma muito heterogênea na vida cotidiana (Connell, 2005; Cattoni de Oliveira; Marques, 2017 e 2020b).
Parece suficiente ter em conta o diagnóstico de que “[o] envolvimento dos homens no cuidado está aumentando em algumas partes do mundo, mas em nenhum lugar ele se iguala ao das mulheres” (Levtov, R. et al., 2015b, p. 5). A literatura especializada tem apontado que as mulheres ainda se dedicam aos encargos domésticos e de cuidado não remunerados, em média, pelo menos duas vezes e meia a mais do que os homens. Eles, porque socialmente desobrigados desse tipo de encargo, podem dedicar mais tempo ao trabalho remunerado. Cenário diverso daquele que contabiliza o trabalho remunerado e o trabalho não remunerado: neste caso, as mulheres trabalham mais do que os homens. Cumulando funções dentro e fora de casa, elas trabalham cada vez mais (OIT, 2016), o que ajuda a explicar, aliás, por que elas reportam mais desgaste em pesquisas sobre percepções de cansaço, insatisfação e conflito na articulação entre vida familiar e atividade remunerada do trabalho (Picanço e Araújo, 2019, p. 739).
Flagrante a omissão inconstitucional e reconhecidos os seus impactos sociais –desproporcionalmente desvantajosos para as mulheres, mas também para os pais em arranjos homoparentais –, acertam, a nosso ver, os ministros que divergiram do voto do relator, para reconhecer a mora legislativa e fixar prazo de dezoito meses para que o Congresso Nacional supra a omissão.
Afastada uma compreensão constitucionalmente (mas também internacionalmente) inconsistente, que ainda assume os direitos econômicos, sociais e culturais como direitos de segunda categoria, como se não falássemos antes de direitos fundamentais indivisíveis, interdependentes e enquanto tais, exigíveis em sua integralidade, sejam eles civis, políticos, econômicos, sociais ou culturais – como tem sustentado, a propósito, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Cançado Trindade, 2003) –, acertam, a nosso ver, os ministros que divergiram do voto do relator, para reconhecer a omissão inconstitucional e determinar prazo de dezoito meses para que o Congresso Nacional cumpra a sua obrigação constitucional de legislar. Afinal, se é ampla a margem de discricionariedade do legislador, também é verdade que instrumentos internacionais e ditames constitucionais constrangem essa mesma discricionariedade e vinculam o legislador ao cumprimento das suas exigências normativas (Canotilho, 1982).
Superada uma certa concepção de separação de poderes, que afasta da apreciação do Judiciário a implementação de políticas públicas em matéria de direitos econômicos, sociais e culturais e reconhecido o dever do legislador de regulamentar o direito fundamental à licença-paternidade, segundo não só os parâmetros constitucionais, mas também internacionais – o que inclui, limitando-nos ao sistema interamericano de proteção dos direitos humanos, instrumentos como a Convenção Americana sobre Direitos Humanos e o Protocolo à Convenção Americana em Matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e a sua interpretação pela Corte Interamericana de Direitos Humanos –, acerta, a nosso ver, o ministro Barroso ao equiparar os prazos das licenças maternidade e paternidade caso a omissão persista mesmo depois de esgotado o prazo de dezoito meses.
Mas que não restem dúvidas: situar e desdobrar o direito fundamental à licença-paternidade como eixo de discussão e proposição de um projeto mais amplo e mais complexo de reconstrução de uma ordem de gênero fundada na igualdade não esbarra ou rivaliza com demandas (também urgentes) pela desprivatização do cuidado e da vida familiar; pelo contrário. Essas reivindicações todas compartilham um objetivo comum, a saber, a desfeminização da reprodução. Procuram subverter, cada uma a seu modo, um estado de coisas que ainda sobrefocaliza as mulheres nos campos da saúde e da reprodução menos como titulares de direitos reprodutivos do que como cuidadoras de outras pessoas, especialmente da prole.
Notas e referências
[1] “Art. 7º São direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social: [...] XVIII – licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias; XIX – licença-paternidade, nos termos fixados em lei” (Brasil, 2016, p. 18).
[2] “Art. 10. [...] §1º Até que a lei venha a disciplinar o disposto no art. 7º, XIX, da Constituição, o prazo da licença-paternidade a que se refere o inciso é de cinco dias” (Brasil, 2016, p. 143).
[3] Os debates sobre a licença-paternidade na Assembleia Nacional Constituinte são, a propósito, extraordinariamente elucidativos disso, como procuramos mostrar em trabalho recente (Cattoni de Oliveira; Marques, 2018).
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