Os meses de junho e julho de 2017 foram agitados para a política e Administração Pública, em especial antes do recesso do Poder Legislativo. Os cidadãos brasileiros acompanharam com o devido interesse as votações sobre a denúncia oferecida pelo Ministério Público Federal contra o atual Presidente da República. A deliberação junto à Comissão de Constituição e Justiça foi fonte inesgotável de discussões! De algum modo já serviu para possibilitar o amplo conhecimento sobre o modo de funcionamento da burocracia política, suas nuances, procedimentos, acomodações, etc.
No site da Associação Contas Abertas (www.contasabertas.com.br) veiculou-se a estrondosa notícia: “Votos a favor de Temer somam R$ 134 milhões em emendas só em junho”. O texto menciona a decisão da CCJ de aprovar o relatório contrário à aceitação da denúncia por corrupção passiva contra o Presidente da República, sendo que 40 deputados votaram a favor de tal entendimento. Consta de modo expresso que dos 40 votos favoráveis, 36 tiveram empenhos para emendas em junho, logo antes da votação. Para exemplificar, a reportagem consignou: “O deputado que mais teve recursos comprometidos para suas iniciativas por meio de emendas foi Paulo Abi-Ackel (PSDB-MG), relator do parecer contrário à aceitação da denúncia de Temer, o segundo votado pela CCJ. O parlamentar é aliado do governo e teve R$ 5,1 milhões empenhados no mês passado.”
Em virtude de tais notícias que, de fato, geraram profundo desgosto por parte da comunidade, um partido político elaborou representação dirigida ao Procurador-Geral da República, com base no artigo 5º, inciso XXXIV, alínea a, da Constituição Federal, bem como no artigo 236, inciso VII da Lei Complementar nº 75/93. O texto constitucional citado trata do direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Após o relato dos procedimentos adotados com relação à votação, o documento menciona que além da troca de parlamentares na Comissão de Constituição e Justiça, com o propósito de influenciar o resultado, o Governo ampliou o empenho de emendas parlamentares: “De acordo com dados extraídos do SIAFI, o empenho dessas emendas explodiu logo após as denúncias contra o Presidente da República vir à tona e durante a tramitação da SIP nº 1/2017 na Câmara dos Deputados, conforme dados contidos na mídia digital anexada.”
As justificativas dadas pelo Poder Executivo e alguns deputados foram bastante curiosas, como: “agi conforme minha consciência”, “o voto foi jurídico, não foi político”, “é uma prática correta porque a gente dá sustentação ao governo”, “são emendas impositivas que todos os deputados da Casa têm direito” e “se ele pagou mais, pagou as emendas a mais para alguns deputados, mas dentro da lei. Ele tem que exercê-lo.[1]”
Portanto, nas últimas semanas discutiram-se muitos temas como política, lei e discricionariedades, questões caras para os debates relacionados com a Administração Pública. A representação oferecida seguirá o caminho institucional, cuja análise será feita com critérios jurídicos pelo Ministério Público Federal.
Em outros textos aqui publicados e artigos veiculados em revistas especializadas, já discuti o instigante tema sobre as potencialidades da Administração Pública para uma espécie de esquizofrenia administrativa quando caminha na tortuosa estrada da autoridade/liberdade. É claro que o espaço da política existe, inclusive sob a perspectiva constitucional, mas por quais sendas deve de fato andar a decisão do gestor sobre liberação de emendas parlamentares? E, mesmo quando circula nos legítimos espaços normativos, não há limites de fins institucionalizados?
Convido todos para um diálogo com Virgilio Zapatero, quando, ao discutir práticas de corrupção examina alguns recantos propícios. O autor menciona que a corrupção torna-se possível quando a autoridade encarregada de tomar decisões abandona seu ponto de vista interno e atua deslealmente ao sistema normativo[2]. Trata-se de aspecto crucial para o debate proposto, pois não há dúvida sobre a relevância da liberação de emendas parlamentares, mas o que se indaga é exatamente a permanência da autonomia administrativa, a salvaguarda dos lídimos propósitos constitucionalizados sobre gestão de recursos públicos, algo que nenhuma tese sobre discricionariedade ou liberdade política é capaz de afastar.
No entendimento de Zapatero, as possibilidades da corrupção também estão relacionadas não apenas com a existência de “benefícios extraposicionais”, quer dizer, por exemplo, não se trata somente de receber valores indevidos ou desviar verbas públicas, mas, segundo alude, com a perda de confiança em formas de cooperação e de distribuição de benefícios. Aqui reside um aspecto decisivo, não se pode em nome da autonomia para tomar determinadas espécies de decisões faltar com a lealdade democrática. Se os espaços normativos institucionalizados convivem com possibilidades em termos de decisões administrativas, não é possível legitimar a deslealdade democrática, distanciar-se do conjunto de virtudes constitucionais sobre boa Administração Pública.
De fato temos uma grave questão: como lidar quando os gestores, no uso de suas competências, aumentam assustadoramente a descrença da comunidade no Estado Democrático de Direito? Ora, a base da democracia de fato é a confiança recíproca[3].
No entendimento de Zapatero: “los actos y atividades corruptos(as) son sólo la punta de un iceberg que indica la existência de un problema mucho más profundo: el de la tendencia a sustituir el ideal de la cooperación democrática por formas de competencia y de imposición de influencias que contradicen radicalmente el ideal democrático.”[4]
Creio que o Caso das Emendas Parlamentares deve servir para entabular-se tal discussão. Certo, não há como produzir ações administrativas sem garantir o mínimo de autonomia para a autoridade incumbida de decisões complexas, variadas e em números estratosféricos.
No entanto, como sob a perspectiva formal vivemos no Estado Democrático de Direito, a legitimidade dos governos passa por um mínimo de “lealdade democrática”!
Notas e Referências:
[1] Trechos de declarações de deputados obtidos no site www.g1.globo.com.
[2] El Concepto de Corrupción. In: La Corrupción. Virgilio Zapatero Compilador. México: Ediciones Coyacán, 2007, p. 36.
[3] Sobre o tema ver também GIL VILLA, Fernando. La Cultura de La Corrupción. Madrid: Maia Ediciones, 2008, p. 36.
[4] El Concepto de Corrupción, p. 37.
GIL VILLA, Fernando. La Cultura de La Corrupción. Madrid: Maia Ediciones, 2008.
ZAPATERO, Virgilio. El Concepto de Corrupción. In: La Corrupción. Virgilio Zapatero Compilador. México: Ediciones Coyacán, 2007.
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