Coluna Direitos de Crianças, Adolescentes e Jovens / Coordenador Assis da Costa Oliveira
No final da década de 1980, o filme “Acusados” contava a história verídica de Sarah Tobias (Jodie Foster), que é atacada e estuprada por três homens, depois de ingerir alguma bebida, paquerar e dançar sensualmente no Bar Big Dan, em New Bedford, no estado de Massachusetts (EUA). Durante o ato, um grupo de homens assiste a tudo e incentiva o crime, sem fazer nada para impedi-lo. Ao denunciar a agressão, seus problemas estavam apenas começando, pois inicia-se uma batalha contra seus agressores e contra o próprio sistema penal que a culpabiliza da agressão sofrida. Que roupas estava vestindo? Quanto bebeu? Houve insinuações por parte dela?
Décadas depois, no ano de 2016, nos deparamos com o brutal caso da adolescente brasileira de 16 anos que foi estuprada por mais de 30 homens, no estado do Rio de Janeiro. Em seu depoimento, a adolescente declarou que, sua última lembrança antes do estupro coletivo, era a de estar na casa do rapaz com quem se relacionava há três anos, depois do que, acordou em outro lugar, cercada por cerca de 30 homens, e despida. A violência sexual teria acontecido enquanto a adolescente estava inconsciente, sob o efeito de drogas, de maneira que isso a fez não recordar do momento em si do estupro. A história da personagem de Jodie Foster se repetia, só que dessa vez, com requintes de crueldade. A barbárie foi amplamente divulgada nas redes sociais e a adolescente exposta como troféu, tendo o seu lugar de vítima relativizado em virtude de marcadores como o fato de estar sob efeito de drogas, por exemplo. As reações da sociedade se resumiram, de uma maneira geral, a apelar para o discurso de recrudescimento punitivo e a naturalizar da prática do estupro.
Além de escancarar a bestialidade que vivemos em pleno século XXI, o caso nos lembra o quanto ainda precisamos avançar na luta pela emancipação das mulheres. A cultura do estupro só é possível em um contexto de expressiva desigualdade de gênero, como o nosso. A prática do Slut Shaming, ao qual são submetidas muitas mulheres é um forte exemplo disso. Slut shaming é o ato de induzir uma mulher a se sentir culpada ou inferior devido à prática de comportamentos sexuais, como ter um grande número de parceiros sexuais, ter relações sexuais casuais, agir e se vestir de maneira sexualizada, etc. Quanto mais permitirmos e naturalizarmos essa opressão contra as mulheres, mais numerosa se torna essa lista. Ou seja, a mulher não pode demonstrar sua sexualidade, que deve se manter restringida dentro do aceitável para os padrões morais burgueses.
Assim, palavras como “vadia”, “fácil”, “oferecida” são voltadas para ofender as mulheres. O que temos no universo dos homens, ao contrário, é uma valorização de uma masculinidade que anula qualquer insulto relacionado ao seu comportamento sexual. Busquemos a palavra “vadia” no dicionário, e encontraremos uma “mulher que, sem viver da prostituição, leva vida devassa ou amoral”. Por outro lado, “vadio”, o seu correspondente masculino, significa um “errante, desocupado”; sem nenhum conteúdo sexual. Em uma rápida pesquisa, ao buscar vocábulos que pudessem ter conteúdos semelhantes aos insultos sofridos pelas mulheres, dificilmente eles têm um significado negativo ou pejorativo no mundo masculino. Ou seja, diante de um mesmo comportamento, temos um charmoso “Don Juan” de um lado e a odiosa “vagabunda” de outro. À “vadia” desprezível, todo tipo de agressão é justificável, até estuprar e matar. Quantos comentários absurdos ouvimos no caso dessa adolescente que, assim como a personagem de Jodie Foster, foi culpabilizada pela agressão sofrida? Um dos exemplos mais bizarros que circulou nas redes sociais dizia: “se estivesse lavando louça, não teria sido estuprada”.
Temos aqui algumas questões que são importantes de serem refletidas para que possamos não só entender o porque da existência da chamada “cultura do estupro”, mas também para podermos pensar em horizontes de caminhos possíveis para enfrentarmos essa mortificação física, simbólica e social pela qual as mulheres que são vítimas dessas situações passam, assim como para que esse deixe de ser um temor para o conjunto de todas nós.
A primeira reflexão que consideramos necessária, diz respeito ao fato de que, a forma como somos socializadas/os se dá de maneira a estruturar, acima de tudo, o funcionamento de uma sociedade que é patriarcal, racista e classista. Se às mulheres, mesmo antes de nascerem, já são designados determinados códigos sociais, como, por exemplo, ser recatada, boa esposa, boa mãe e submissa, tal codificação se reafirma cotidianamente para que mulheres permaneçam num patamar abaixo dos homens, e assim possam ser utilizadas ao bel prazer das necessidades do capital (CISNE, 2018).
Nesse sentido, não se trata apenas de algo de ordem cultural, mas sim material, o que significa que não podemos pensar em uma transformação real desse contexto se não considerarmos as bases concretas que sustentam a perpetuação dessas práticas cruéis contra as mulheres. Não é apenas sobre mudar a forma como as mulheres são enxergadas, deixando de lado os estereótipos - construídos com base no jeito de se vestir, na forma de andar ou de falar, por exemplo - para assim respeitá-las e não mais lhes infringir violência. Trata-se de entendermos que o ideal de comportamento feminino “correto” foi e permanece a ser forjado, com as devidas alterações de acordo com cada época histórica, para dar conta exatamente de construir categorias não só diferentes, mas desiguais, entre as mulheres. Tal categorização, por motivações socioeconômicas e de poder, é o que, dentre outros elementos, justifica que a opressão e a exploração (inclusa aí a violência sexual) sejam perpetradas de forma discriminatória contra mulheres. Se no período escravagista as escravas eram estupradas por serem consideradas uma propriedade de seus senhores, hoje, em que pese todos os avanços construídos no decurso histórico até aqui em relação às mulheres, estas, especialmente as negras, continuam a ser vitimizadas, sendo tomadas como posse dos homens que as estupram.
Chamamos aqui a atenção, dentre os elementos também presentes nesse perverso regime, para um ponto basilar na compreensão de sua dinâmica e que abre a segunda reflexão que gostaríamos de fazer: o fato de as mulheres serem consideradas posses. De acordo com Guillaumin (2014), as mulheres são despossuídas de seus corpos e dos produtos de seus corpos pelos homens, seja individualmente (através do contrato de casamento), seja coletivamente (através das instituições e do Estado). Tal processo de coisificação, denominado pela referida autora de sexagem, torna as mulheres uma propriedade, um bem público e/ou privado, em consonância com o seu estado civil: se casada, é posse de seu marido, assim como seus/suas filhos/filhas o são, tendo ela como esposa, a obrigação de prestar serviços domésticos e sexuais sem remuneração; se solteira, configura-se como uma posse comum do conjunto dos homens, de maneira que, ao não ter “um dono”, é como se pertencesse a qualquer um que lhe reivindique.
É exatamente nessa teia que se gesta o domínio do conjunto dos homens sobre as mulheres. É por não conceber as mulheres como sujeitos, que homens se acham no direito de violar seus corpos, de lhes tirar o poder de ir e vir numa rua sozinha, de roubar-lhes o controle sobre si. Se ela tem um dono, este não precisa que ela queira manter uma relação sexual para que esta ocorra - não são incomuns os relatos de esposas que mantém relações sexuais com seus maridos apenas por uma questão de obrigação, sendo tal prática tão naturalizada, que sequer é compreendida como uma forma de estupro -; se ela não tem um dono/marido que a reivindique, ali encontra-se apenas um objeto a ser tomado por qualquer um que a deseje possuir. Nesses termos, entendemos que o estupro se configura como uma expressão radical dessa sistemática que faz as mulheres serem coisas, e não pessoas: à mulher, não cabe ter vontade, sexualidade ou qualquer outro impulso que a faça humana. Ela é o que seu possuidor permitir e quiser. Daí o tabu sobre a sexualidade feminina não se tratar apenas dos resquícios de um pudor conservador, pois é, antes de tudo, produto da negação do fato de as mulheres serem gente. E, considerando as dimensões da raça e da classe, os contornos dessa prática ganham tom de extremismo. São os corpos negros os mais sexualizados e a “mulata” uma típica simbologia do desejo no imaginário brasileiro, algo que data desde as negras das senzalas e que se estende aos dias de hoje, especialmente quando chega o carnaval, como bem nos lembra Lélia Gonzales (2019). Afinal, se não fosse a mistura das necessidades sexuais dos homens junto ao poder de encantamento das mulheres, sempre provocantes e irresistíveis, eles não perderiam a sua racionalidade e não cometeriam estupros, correto? Queríamos nós, mulheres, termos todo esse poder e sermos donas de tamanha magia!
Tomando como pano de fundo os supostos poderes sobrenaturais das mulheres, o que na verdade encobre interesses de ordem econômica, como a disputa pela terra, por exemplo, Federici (2019) nos alerta para o processo de atualização da caça às bruxas que hoje se encontra em curso, ilustrando tal afirmação a partir de pesquisas realizadas no contexto africano, no qual mulheres vem sendo acusadas de bruxaria e, por isso, torturadas e mortas. Prática comum desde a Idade Média, a perseguição às mulheres nunca deixou de existir, sendo fortalecida pela alegoria da mulher bruxa, que seduz, que atiça os homens e que os faz perder a cabeça. Para estas, nada menos do que, no mínimo, o castigo. No Brasil de hoje, podemos até não queimar mulheres em fogueiras, mas o espetáculo do flagelo social, do julgamento das mulheres ditas “subversivas”, “vulgares” e reconhecidas, de alguma forma, com as bruxas de outrora, este permanece, fazendo com que seja aceitável que, certa qualidade de mulher, seja estuprada e tudo bem, pois “ela merecia”. Não, nenhuma de nós merece.
Numa sociedade que dá aos homens passe livre para exercerem a sua sexualidade como desejarem, enquanto permite que mulheres tenham suas vidas destruídas por violências que vão desde o assédio psicológico à barbárie do estupro, precisamos explicar o óbvio e lutar não só pelo fim da “cultura do estupro”, mas sim para transformar as relações sociais que estão postas. Sem um projeto de sociedade que tenha como horizonte o fim do patriarcado, não teremos como interromper esse cotidiano de violências ao qual as mulheres estão expostas. Seja dentro de casa, nas ruas, no trabalho, não importa se o espaço é privado ou público, enquanto o conjunto dos homens tiver poder sobre os nossos corpos, seremos todas, na nossa vulnerabilidade, “bruxas” e “vagabundas”.
Notas e Referências
CISNE, M. Feminismo e consciência de classe no Brasil. 2 ed. Cortez, São Paulo, 2018.
FEDERICI, S. Mulheres e caça às bruxas. Boitempo, São Paulo, 2019.
GONZÁLES, L. Racismo e sexismo na cultura brasileira. In: HOLLANDA, H. B. (Org.). Pensamento feminista brasileiro: formação e contexto. Bazar do tempo, Rio de Janeiro, p. 237-258, 2019.
GUILLAUMIN, C. Prática do poder e ideia de natureza. In: FERREIRA, V.; ÁVILA, M. B.; FALQUET, J.; ABREU, M. (Orgs). O patriarcado desvendado. Teorias de três feministas materialistas: Colett Guillaumin, Paola Tabet e Nicole-Claude Mathieu. SOS Corpo, Recife, p. 27-100, 2014.
Imagem Ilustrativa do Post: untitled // Foto de: Feans // Sem alterações
Disponível em: https://www.flickr.com/photos/endogamia/22998109509
Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/