Coluna Vozes-Mulheres / Coordenadora Paola Dumont
“Um arranjo ruim é melhor que um bom processo” (Un mauvais arrangement vaut mieux qu'un bon procès), afirma o velho adágio francês, muito empregado na crítica às mazelas processuais e à insuficiência da Justiça, com seus elevados custos econômicos, sociais e psicológicos. Entretanto, quando a liberdade está em jogo, o velho adágio francês nem sempre parece tão atrativo. Com a ampliação dos espaços consensuais no processo penal, especialmente em face à positivação do Acordo de Não Persecução Penal, é importante refletirmos sobre os riscos desse novo instituto, chamando atenção para a necessidade de sua modulação à luz de uma ética negocial democrática.
O Acordo de Não Persecução Penal, legalmente positivado no ordenamento jurídico brasileiro pela Lei nº 13.964/2019, não é de todo uma novidade, tendo sido previsto inicialmente pela Resolução nº 181, de 7 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público, posteriormente recebendo nova redação pela Resolução nº 183 de 24 de janeiro de 2018. De modo similar – e questionável – às colaborações premiadas, o instituto foi introduzido no país antes pela prática que pelas normas positivadas. O que se evidencia com isso é que a Justiça Negocial no Brasil vem sendo criada pelo costume, especialmente a partir de iniciativas dos órgãos persecutórios, o que tem reflexos diretos sobre a dinâmica negocial e equilíbrio das negociações, os quais serão discutidos à frente.
Conforme positivado no artigo 28-A do CPP, o Acordo de Não Persecução Penal pode ser oferecido pelo Ministério Público nos crimes praticados sem violência ou grave ameaça, cuja pena mínima cominada seja inferior a 04 anos, nos quais o acusado tenha confessado a prática da infração penal. A norma apresenta um rol não taxativo de condições, tais como a reparação dos danos, prestação de serviços à comunidade e pagamento de multas etc. A lei permite, no entanto, que o Ministério Público estipule no acordo outras condições, limitadas apenas à proporcionalidade em relação à infração imputada. O descumprimento de qualquer das condições acarreta a rescisão do acordo e posterior oferecimento da denúncia. Cumpridas as condições, é declarada extinta a punibilidade do beneficiário.
O Acordo de Não Persecução Penal será aplicável a um número extremamente amplo de injustos penais, tendo em vista que o requisito baseado no limite de pena mínima de até quatro anos para crimes sem violência alcança desde a receptação, furto simples, corrupção, lavagem de dinheiro, crimes ambientais, dentre outros. Dessa forma, assistiremos a uma crescente aplicação do instituto, conforme as instituições gradualmente se acostumem com ele.
E consigne-se: de forma alguma a feição negocial do Acordo de Não Persecução implica em uma descoercibilização do Direito Penal, mas estende a coerção para uma nova dimensão do processo, a fase pré-processual. Nesse contexto, importante chamar atenção para os problemas da aplicação do Acordo de Não Persecução Penal nos moldes atuais, pensando em como adaptar o instituto aos moldes democráticos, como instrumento de defesa legítimo e orientado à ética negocial.
Inicialmente, observa-se que toda a negociação do Acordo de Não Persecução ocorre à margem da jurisdição. O controle jurisdicional sobre os acordos somente se dá em momento posterior, quando submetidos os termos do acordo para homologação. Nessa fase, são analisadas formalmente a voluntariedade e a legalidade dos termos, bem como sua adequabilidade e suficiência (CPP, art. 28-A, §4º e §5º). Tal distanciamento da jurisdição demandaria em contrapartida uma regulamentação precisa dos limites de atuação dos negociadores, especialmente do Ministério Público, representante do Poder Estatal cuja atuação se encontra limitada pela legalidade.
Entretanto, o que se percebe são regras abertas e limites excessivamente amplos, permitindo um amplo protagonismo do Ministério Público na elaboração dos acordos. Os requisitos não vinculam o órgão à proposição de um acordo, o que parece introduzir no ordenamento o princípio da oportunidade, em que o oferecimento ou não de acordos – e consequentemente o caminhar ou não dos processos – dependerá da força do acervo probatório formado pela acusação. Alerta-se então para o risco de que a ausência de uma vinculação normativa do Ministério Público às hipóteses de oferecimento do acordo, uma vez cumpridos os requisitos legais, tornando-o um direito subjetivo do acusado, acabem por permitir um uso seletivo do instituto. Outro problema relevante da ausência de determinação legal estrita sobre a aplicabilidade ou não do seu oferecimento está em uma possível instrumentalização como meio de pressão exercido sobre o investigado para influenciá-lo a aceitar o acordo, confessando um crime que não cometeu.
Para além da abertura conferida ao Ministério Público em optar por oferecer ou não o acordo, é também problemática a ausência de uma determinação específica das condições que podem ser nele impostas ao investigado. Ainda que tais condições não possuam natureza de pena, é imprescindível que o ordenamento ofereça aos jurisdicionados segurança jurídica, não apenas da perspectiva do acusado, mas da sociedade como um todo. Vale lembrar que o Ministério Público, na forma do artigo 127 da Constituição, atua como um representante da sociedade em defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais. Entretanto, os interesses da sociedade somente se encontram expressos na norma, a qual é o horizonte de atuação do Ministério Público. Em outras palavras, o controle de sua função decorre da conformidade à legalidade, que disciplina suas atividades e as legitima. Lembrando que a própria credibilidade das propostas e da Justiça é colocada em jogo quando deixa-se tamanha abertura, em uma área sensível como a penal, para a subjetividade dos agentes públicos na estipulação de obrigações não previstas na norma.
Nesse ponto vale lembrar do caso norte americano cuja sentença se tornou mundialmente famosa em razão justamente da diferente pena alternativa que foi aplicada ao réu, acusado por caça ilegal de cervos: a penalidade de assistir, ao menos uma vez por mês, ao filme da Disney “Bambi”[1]. Embora a influência do common law norte americano em nosso ordenamento seja crescente, algumas peculiaridades ainda nos causam espanto.
Além disso, a análise da prática da Justiça Consensual brasileira permite que se questione sua própria natureza negocial. As partes não se sentam na mesa para dialogar e elaborar juntas as condições do Acordo. O que ocorre é a imposição de condições de forma unilateral pelo Ministério Público, sem que seja aberta a possibilidade para alterações negociadas. O aspecto bilateral negocial mais se parece com um unilateral imposto, quando a acusação apresenta um modelo já pronto de acordo, oferecendo ao acusado apenas a opção de aderir ou não a esses termos. Veja-se por exemplo o Boletim Criminal Comentado de setembro de 2018[2], no qual o CAOCRIM informa sobre a disponibilização modelos prontos de acordos e petições, com a finalidade de subsidiar o manejo do Acordo de não persecução penal.
Não obstante os problemas e as críticas que a Justiça Negocial enfrenta por parte da doutrina processualista penal, trata-se de uma realidade consolidada no país e cuja tendência caminha no sentido de uma ampliação. Se o processo penal brasileiro irá inevitavelmente incorporar elementos de justiça criminal negocial, é a hora de a doutrina e de os profissionais da defesa criminal passarem a integrar o seu processo de construção e introdução no sistema. É preciso ir além da crítica à constitucionalidade da Justiça Penal Negocial, travando um debate sobre a modulação democrática desses institutos como instrumentos de defesa legítimos, com a introdução de garantias mínimas sobre o conteúdo penal da Justiça Negocial, reduzindo o seu potencial seletivo e manipulador, bem como exigindo que tais espaços sejam verdadeiramente negociais.
Devemos envidar nossos esforços também para o realinhamento do Acordo de Não Persecução Penal, enquanto instrumento de Justiça Negocial, à principiologia e à ética negociais. Nesse sentido, o ANPP deve, antes de mais nada, viabilizar uma verdadeira bilateralidade na formação do consenso. Em respeito à paridade de armas, as partes devem ter lugar na mesa, com equidade de tratamento e de faculdades processuais (art. 7º do CPC).
O acordo, na medida em que está destinado a influenciar diretamente a esfera jurídica do acusado, deve ter seus termos construídos e negociados de forma dialógica e paritária, para que se viabilize ao investigado exercer influência sobre os seus termos. Deve-se, portanto, aplicar o contraditório ao Acordo de Não Persecução, como forma de oportunizar ao investigado possibilidade real de integrar as negociações. Observe-se que, como princípio de participação, o contraditório não tem por finalidade assegurar a defesa, mas sim a possibilidade de atuar na construção do ato jurisdicional destinado a ter eficácia sobre o indivíduo[3]. Nas palavras de Ada Pellegrini: “Do contraditório, como princípio de participação, surge uma importante indicação, que foi salientada pelas doutrinas alemãs e italiana: o objetivo principal da garantia não é a defesa, entendida em sentido negativo como oposição e resistência, mas sim a ‘influência’.”[4]
Enquanto negócio jurídico pré-processual, a ele deve se aplicar toda a tessitura de princípios aplicada aos contratos em geral. Assim, devem ser construídos negocialmente em observância ao princípio da boa-fé. Impõe-se às partes, como obrigação pré-contratual o dever de informação. Veda-se comportamentos contraditórios (venire contra factum proprium), o que demandará um enorme cuidado em torno da competência do órgão que oferece a proposta, problema que vem sendo enfrentado nos casos de colaborações premiadas que conjugavam relatos que tramitaram perante a justiça estadual, federal e eleitoral, com simultânea intervenção do CADE. Relevante também lembrarmos do instituto da lesão (artigo 157 do Código Civil), o qual acarreta a anulação do negócio jurídico quando a pessoa, “sob premente necessidade, ou por inexperiência, se obriga a prestação manifestamente desproporcional ao valor da prestação oposta”.
A manutenção do modelo atual, carente de verdadeira negociação, atrai ainda as regras interpretativas dos contratos de adesão (artigo 423 do Código Civil), bem como da regra de interpretação contra proferentem (113, § 1º, inciso IV do Código Civil, incluído pela Lei nº 13.874/19 – Declaração de Direitos de Liberdade Econômica). Segundo essas disposições, deve-se atribuir às cláusulas contratuais o sentido mais benéfico à parte aderente, ou à parte que não o redigiu.
É preciso, ainda, discutir de forma mais ampla sobre a vinculação do Ministério Público a requisitos para o oferecimento dos acordos, bem como a delimitação da abertura do acordo a um rol taxativo de condições. A vinculação a um padrão normativo sobre as hipóteses de oferecimento dos acordos, bem como das condições por eles impostas é imprescindível. Trata-se de uma modulação necessária para que o instituto não se torne mais um instrumento penal de seletividade e, pior, de manipulação dos acusados.
Além disso, importante repensar a exigência da confissão do acusado, que aproxima o Acordo de Não Persecução Penal de um Direito Penal das invidências – daquilo que não pode ser observado, cego às evidências –, direcionado ao aspecto subjetivo interior do indivíduo. Um Direito Penal que busca sua legitimidade na antiga lógica da expiação confessional dos pecados. Ainda que se trate de um negócio jurídico pré-processual, que antecede o processo e toda a produção de provas pelas partes perante o Juiz, vale ressaltar que a proposição do Acordo deve ter por fundamento objetivo a justa causa para a ação penal, ou seja, deve encontrar lastro relevante em elementos informativos, evidências e provas.
Em suma, há ainda um longo percurso a ser percorrido no aperfeiçoamento do Acordo de Não Persecução Penal e das instituições processuais de um modo geral. A presente provocação é antes um convite à reflexão e ao aprofundamento da participação da doutrina e dos profissionais de defesa criminal na elaboração de uma Justiça Negocial e de uma ordem jurídica que não se mantenha ao preço da liberdade, mas que se aperfeiçoe democraticamente, em reforço à autonomia e aos direitos fundamentais dos cidadãos.
Notas e Referências
COMISSÃO ESPECIAL GNCCRIM – Enunciados interpretativos da Lei nº 13.964/2019 Lei Anticrime. Conselho Nacional de Procuradores-Gerais do Ministério Público dos Estados e da União.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Sistema acusatório: cada parte no lugar constitucionalmente adequado. Revista de Informação Legislativa, Brasília, a. 46, n. 183, p. 103-115, jul.-set. 2009.
EL PAÍS. Tribunal condena caçador a assistir ‘Bambi’ uma vez por mês nos EUA. Madri, 18 dez. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/18/internacional/1545138279_793332.html>. Acesso em: 16/03/2020.
FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Trad. Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006.
GONÇALVES, Aroldo Plinio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 1992.
GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual: de acordo com a Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990.
MPSP. Boletim Criminal Comentado–setembro 2018 (semana 3). CAO-Crim. P.05.
PINTO, Felipe Martins. Introdução crítica ao processo penal. 2. ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2016.
PRADO, Geraldo. Sistema acusatório: a conformidade constitucional das leis processuais penais. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001.
Resolução nº 181, de 7 de agosto de 2017, do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), redação dada pela Resolução nº 183 de 24 de janeiro de 2018.
ROSA, Alexandre Morais da. Guia do processo penal conforme a teoria dos jogos. 4. ed. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.
VIEIRA, Renato Stanziola. Paridade de armas no processo penal. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014.
VILLELA, João Baptista. Direito, coerção & responsabilidade: por uma ordem social não-violenta. Belo Horizonte: Edição ad Faculdade de Direito da UFMG, 1982.
[1] EL PAÍS. Tribunal condena caçador a assistir ‘Bambi’ uma vez por mês nos EUA. Madri, 18 dez. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais.com/brasil/2018/12/18/internacional/1545138279_793332.html>. Acesso em: 16/03/2020.
[2] MPSP. Boletim Criminal Comentado – setembro 2018 (semana 3). CAO-Crim. P.05
[3] FAZZALARI, Elio. Instituições de direito processual. Trad. Elaine Nassif. Campinas: Bookseller, 2006, pp. 119-120. Interessante ainda a abordagem de Aroldo Plínio, em sua leitura da obra de Fazzalari na identificação dos interessados: “Os interessados são aqueles em cuja esfera particular o ato está destinado a produzir efeitos, ou seja, o provimento interferirá, de alguma forma, no patrimônio, no sentido de universum ius dessas pessoas” (GONÇALVES, Aroldo Plinio. Técnica processual e teoria do processo. Rio de Janeiro: AIDE Editora, 1992, p.97.)
[4][4] GRINOVER, Ada Pellegrini. Novas tendências do direito processual: de acordo com a Constituição de 1988. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1990, p. 18.
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