Ainda não foi devidamente percebida a gravidade da situação criada pelo parágrafo quarto do artigo 4 da lei n.12.850/13 !!! Ele permite que o Ministério Público possa deixar de exercer a ação penal pública em face de qualquer crime, por mais grave que seja.
O mais impressionante é que este insólito poder discricionário pode ser exercido diante de um gravíssimo crime, desde que praticado no seio de uma organização criminosa. Vale dizer, a infração penal tem de ser praticada por um membro da organização criminosa. Se o crime foi praticado por um agente de fora da organização criminosa, não há esta possibilidade discricionária.
Assim, para os delinquentes, então, é melhor pertencer a uma organização criminosa do que agir por conta própria!!! No caso de homicídio doloso, estaremos subtraindo a própria competência constitucional do Tribunal do Júri, inclusive no caso de outorga dos demais prêmios previstos no caput do citado artigo 4.
Ademais, dificilmente o poder judiciário terá condições, neste primeiro e único momento, de examinar o preenchimento de um dos requisitos legais para o exercício deste poder discricionário, qual seja, examinar se o “delator” é ou não o líder da organização criminosa, se ele é ou não o primeiro a cooperar com as investigações. No conhecido caso da delação da JBS foram 07 primeiros ... (sic)
Caso não seja admitida a ora questionada inconstitucionalidade, para que haja algum tipo de controle e se verifique a presença dos citados requisitos legais, venho sustentando que tal poder discricionário não dispensa a instauração do inquérito policial e que o mesmo deve ser submetido à disciplina do art.28 do Cod. Proc. Penal, caso tudo ocorra no primeiro grau de jurisdição.
Nas hipóteses de competência originária dos tribunais, sugerimos que futura lei também preveja um mecanismo de controle da “não denúncia”, vale dizer, do exercício da discricionariedade de Ministério Público, como exceção do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública.
Tal controle poderia ser análogo ao mencionado art.28. O Procurador Geral teria de requerer o arquivamento do inquérito ou das peças de informação ao tribunal. Caso o tribunal não deferisse tal arquivamento, os autos seriam remetidos ao Conselho Superior do Ministério Público, que daria a última palavra, como é próprio do sistema acusatório.
Na hipótese acima prevista, se o Conselho Superior do Ministério Público entendesse que deveria ser oferecida a denúncia, seria ela da atribuição do primeiro membro da instituição que tivesse votado em prol do exercício da ação penal pública.
Desta forma, sem violar o nosso sistema processual penal acusatório, teríamos um mecanismo de controle do não exercício da ação penal, exatamente nas hipóteses em que ele mais se faz necessário.
Retomando o tema central desta nossa reflexão, cabe salientar que, na verdade, a Constituição Federal somente permite a adoção do princípio da oportunidade do exercício da ação penal pública na hipótese de infração penal de pouca gravidade, vale dizer, de “pequeno potencial ofensivo” (art.98).
Melhor explicando, não é compatível com o nosso sistema jurídico constitucional a discricionariedade ilimitada no sistema de justiça criminal. Não se pode admitir que a aplicação das regras cogentes do Direito Penal e Processual Penal fiquem ao talante ou alvedrio de um membro do Ministério Público. Isto criaria uma indesejável insegurança jurídica.
Outorgar a qualquer membro do Ministério Público, em qualquer local deste imenso país, a possibilidade de decidir se vai ou não oferecer a devida denúncia, mesmo estando presentes todas as condições da ação penal pública, é violar flagrantemente o princípio da vedação da proteção deficiente, tão estudado e venerado pelos modernos constitucionalistas.
Ao Estado, não se pode permitir que se abstenha de proteger bens jurídicos da mais alta relevância para o bom convívio em sociedade. O princípio da obrigatoriedade do exercício da ação penal pública se insere dentro de um salutar princípio mais amplo, qual seja, o inafastável princípio da legalidade.
Em outras palavras, se a Constituição Federal tem regras claras de tutela à vida e ao patrimônio das pessoas, como aceitar que o Estado, através de um membro do Ministério Público, possa deixar, no caso concreto, de efetivar esta proteção prometida em nossa Lei Maior ???
Por outro lado, a prevalecer o equivocado entendimento de que o Poder Judiciário não pode exercer um controle mais efetivo sobre os negócios jurídicos processuais em sede penal, estaremos admitindo um poder desmedido aos membros do Ministério Público, estaremos criando um verdadeiro “monstro” em nosso sistema jurídico, ao arrepio dos postulados básicos do Estado Democrático de Direito, previsto na Constituição da República.
Podemos finalizar, asseverando que uma das “palavras chaves” do Estado Democrático de Direito é o “CONTROLE”. Poder discricionário, em nosso sistema de justiça criminal, sem um mecanismo de controle efetivo, é abrir espaço para uma atuação processual fascista.
É absolutamente necessário e urgente que sejam estipulados limites à chamada “justiça penal consensual”. É preciso coibir a ânsia de poder de alguns membros do Ministério Público Federal busca legitimar o reprovável “negociado sobre o legislado”, mormente quando se trata de Direito Penal e Processual Penal, composto por regras cogentes.
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