Este texto versa sobre o acidente aéreo que comoveu o país (noticiado internacionalmente) e que logo tornou-se palco de crimes digitais.
Será necessário abordar a intersecção entre Tecnologia e Crimes (com dados ligados ao acidente e suas vítimas).
O caso envolve a criação de perfis falsos de vítimas do acidente aéreo, onde os golpistas têm aproveitado a tragédia para perpetrar fraudes, em contexto de exploração e manipulação do luto, com centenas de perfis falsos e uma infinidade de crimes digitais imediatamente após o acidente.
Vimos os dados dos mortos explorados para além da imaginação moderna, demonstrando-se como os crimes digitais do século XXI estão cada vez mais ousados e sofisticados, especialmente quando presente o uso de ferramentas avançadas de Inteligência Artificial (IA), que replicam, imitam, mimetizam e recriam como a pessoa falaria e agiria com base em dados (padrões de mensagens antigas, vozes, imagens, nuances na escrita e estilo etc.).
Ocorre que os golpistas estão utilizando a IA para gerar conteúdo que imita o estilo de comunicação das vítimas falecidas e recria publicações a partir de seus conteúdos anteriores nas redes sociais. O objetivo principal: obter vantagem financeira indevida, enganando as pessoas.
A criação e manipulação de perfis falsos dos mortos ampliou a dor de famílias enlutadas e amigos das pessoas. O luto das famílias foi explorado de forma cruel, estabelecendo-se uma nova fronteira da criminalidade digital. Os autores desses ilícitos digitais não estão apenas violando o luto, a privacidade e a dignidade das vítimas, mas também manipulando a dor emocional dos familiares e amigos, fora ainda os pedidos de dinheiro e favores para terceiros, com perfis falsos e valendo-se de dados das vítimas, amigos e familiares[i]
O uso de IA tornou essa empreitada de ilícitos mais rápida e perigosa (até escalável), pois as ferramentas são capazes de recriar o estilo e as nuances das postagens das pessoas falecidas, quase que automaticamente, com direcionamentos mínimos, dando uma aparência de autenticidade a perfis falsos às pessoas próximas, imprimindo algum efeito de perfil real (o que as plataformas facilmente poderiam desfazer e desmentir, vez que conhecedoras dos dados de criação e data dos perfis).
Aspectos bizarros que agravam o cenário: mesmo ante as diversas denúncias de crimes digitais ligadas aos perfis falsos (e própria falsidade do perfil), as redes sociais provocadas pouco fizeram, mostraram-se lentas, incapazes, fracas, atrasadas, com problemas de (des)proteção.
As plataformas e redes sociais demonstraram falha na prestação de serviços facilitando os crimes, sendo que podem e devem ser responsabilizadas legalmente por perdas financeiras e abalo emocional das vítimas, cabendo multas pela inércia e descaso, bem como participação na responsabilização por danos morais coletivos e individuais e danos materiais.
Note-se que as mesmas redes sociais que diariamente derrubam publicações, muitas vezes lícitas, culpando os algoritmos e a IA, foram incapazes de derrubar rapidamente contas falsas recém criadas com milhares de denúncias. Nesse contexto, a proteção contra ilícitos facilitados por dados manipulados para fins ilegítimos e ilegais, exige uma resposta coordenada das plataformas de redes sociais, da ANPD (Autoridade Nacional de Proteção de Dados) e empresas de tecnologia, para que trabalhem juntas contra violações como as ocorridas, inclusive removendo os perfis fraudulentos com máxima urgência. 3 (três) apontamentos mais técnicos sobre tudo isso: (a) independente do ressarcimento das vítimas (com responsabilidade objetiva das empresas), deve ocorrer uma investigação sobre as empresas de tecnologia acerca de sua inércia no caso, e quais critérios foram utilizados, que justificassem a demora na remoção de perfis, publicações e danos; (b) é forçosa a revisão da ANPD sobre seu critério equivocado (frise-se) da desproteção de dados de pessoas falecidas pela LGPD (lembre-se que a ANPD já entendeu pela não incidência da LGPD para dados de mortos, mas antes do avanço exponencial da IA com deepfakes realistas de falecidos e coisas do gênero, logo, a ANPD decidiu no escuro, contra a sociedade e sem criminólogos ou criminologistas, afastando-se também da CF); (c) a responsabilidade da empresa aérea é objetiva, mas o cálculo dos danos, em termos financeiros, é uma espécie de cálculo impossível, como é comum na esfera criminal (onde pena privativa de liberdade alguma recupera vidas).
A gravidade é múltipla: além do impacto emocional devastador sobre os familiares, há uma implicação ética profunda no uso da IA. Tecnologias que deveriam ser utilizadas positivamente, como para criar novas soluções em saúde (diagnósticos mais precisos, tratamentos individualizados, cirurgias minimamente invasivas etc.), estão sendo mobilizadas para fins altamente reprováveis, que maculam o potencial positivo das tecnologias, e principalmente, ferem a dignidade e o sofrimento das pessoas exploradas em luto, transformando o caso em tema de repercussão criminal ampliado. Tão logo saiu a divulgação informal, e depois a oficial da lista de mortos, uma empreitada de crimes digitais “roubaram o luto” dos familiares e amigos sobreviventes. Foi uma farra de dados e violações de reprovabilidade inominável. Ainda existem perfis falsos ativos, violando a CF, o que atesta para a necessidade de regulamentações externas às empresas[ii].
Essa situação demonstra como a combinação de tragédias pessoais atuais com golpes digitais valendo-se de dados pessoais atualizados (e uso de IA) pode criar um ambiente de dor e exploração, que vai além do suportável, invadindo, explorando e manipulando o luto, a dor e a memória daqueles que perderam entes queridos de forma trágica e extremamente reprovável.
Notas e referências:
ZAFFARONI, Eugenio Raúl. En busca de las penas perdidas: Deslegitimación y Dogmática Jurídico-Penal. Buenos Aires: Ediar, 2013.
[i] O potencial da IA mostrou-se presente nos crimes, em que golpes variados ocorreram, como criação de falsos perfis, com uso de IA para reproduzir conteúdos similares à forma como a pessoa escrevia e interagia, o que se repetiu como uma onda de empreitadas fraudulentas. A Inteligência Artificial não é essencialmente boa ou ruim, mas seu potencial é enorme e pode ser usado tanto positivamente quanto negativamente. A conscientização pública é fundamental. O avanço da tecnologia não deve ser acompanhado de uma erosão da ética, pelo contrário, deve ser guiado por princípios que protejam os direitos e a dignidade de todos. E não é possível entender que as medidas das plataformas e redes sociais foram rápidas na contenção disso tudo, o que traz muitas outras discussões importantes envolvendo dados.
[ii] Golpes digitais e violações de direitos seguirão aumentando no Brasil se ignorarmos, hoje, a centralidade dos dados para todas as operações no mundo, em um Sociedade de Controle que monitora obscuramente, inclusive na esfera criminal, mas que expõe e expande a sua eficácia invertida (para usar termo disseminado no Brasil pela criminóloga Vera Regina Pereira de Andrade em suas lições sobre o sistema de justiça criminal). Longe de resolver conflitos com o SJC, testemunhamos hoje sua inoperância preventiva prometida pelos adeptos da prevenção geral e outras propostas e funções imaginárias da pena, que eclipsam suas funções reais. Sobre o poder dos juristas, a defesa de Zaffaroni (2013) é de que busquem reduzir a irracionalidade máxima dos aparatos de sofrimento, fixando limites ao poder punitivo (tese contencionista do poder punitivo), sendo esse poder, um inimigo da paz, que não existe historicamente e tampouco funciona estruturalmente para solucionar e prevenir conflitos. Sabendo disso, a evitação dos ilícitos abordados neste artigo deve passar por outros caminhos, abrangentes de um maior controle constitucional para que dados pessoais sejam respeitados, inclusive, dados de mortos, ainda negligenciados pelas autoridades que deveriam se preocupar com isso. A ANPD deveria se preocupar com isso. Deveria.
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