Acesso aos dados telefônicos: a posição da Suprema Corte Norte Americana e a análise deturpada que se vem fazendo do RHC 75.800, do STJ - Por Jorge Coutinho Paschoal

29/09/2016

Por Jorge Coutinho Paschoal – 29/09/2016

Em junho de 2014, a Suprema Corte Norte Americana analisou a (i)licitude acerca do acesso aos registros de celulares apreendidos, sem um mandado judicial. Na análise do julgado submetido à apreciação dos Juízes, estavam em discussão dois casos, sendo um proveniente da Califórnia e outro referente à conduta da polícia de Massachusetts.

Nos dois casos, a discussão centrava-se na (i)legalidade da apreensão e da análise feita nos registros telefônicos sem que houvesse um mandado judicial autorizando o acesso, em infringência à IV emenda da Constituição Norte Americana.

No primeiro caso, Riley foi abordado por um policial, pois, em tese, estaria dirigindo com a licença vencida. No mesmo contexto, no veículo do sujeito, foi apreendida uma arma de fogo, devidamente municiada, sendo ele, por tal razão, preso.

Em análise dos objetos do interior do carro, os policiais suspeitaram que Riley poderia ser membro de uma gangue, a qual, nos últimos tempos, estaria realizando assaltos e crimes contra a vida na região. Nesse diapasão, os policiais aproveitaram para retirar de seu bolso um aparelho celular do tipo smartphone, tendo analisado os registros de dados lá constantes, concluindo que, de fato, ele seria mesmo um membro da gangue.

Diante disso, Riley foi processado e condenado não apenas pelos fatos consistentes em ocultação de arma de fogo, mas também pelos atos praticados pela gangue, entre os quais assaltos e homicídios tentados, sendo a pena agravada, chegando a 15 (quinze) anos de prisão. Houve recurso para a Corte de Apelação da Califórnia, alegando-se, em síntese, que a prova seria imprestável, já que obtida sem um mandado judicial, tendo-se violado a IV emenda da Constituição dos Estados Unidos, não havendo qualquer justificativa idônea para excepcionar a regra de que as buscas e apreensões devem ser precedidas por uma autorização judicial.

Não obstante o exposto, as alegações de Riley foram afastadas, vindo o caso parar na Suprema Corte, para apreciação dos Juízes.

O outro caso analisado pela Suprema Corte, no mesmo processo, refere-se ao caso de Brima Wurie, em que havia a suspeita de que ele estaria vendendo drogas; uma vez levado para a delegacia, foram apreendidos consigo dois celulares. Quanto a um dos aparelhos, havia várias chamadas, identificadas como “minha casa”. Na ocasião, os policiais entenderam por identificar a origem do número e rastrear o local, sendo, no intervalo da diligência, obtido mandado judicial de busca e apreensão, autorizando a entrada no domicílio. Com isso, os policiais entraram no local, apreendendo grande quantidade de drogas, como crack, cocaína, além de armas, munição e dinheiro.

Pela acusação, Wurie foi condenado à pena de mais de 20 (vinte) anos, sendo depois revista, dada a violação à intimidade pelo acesso aos seus dados telefônicos, sendo o caso levado à apreciação da Suprema Corte.

Na análise do processo envolvendo os dois casos, consoante listado pelo Presidente da Suprema Corte Americana, John G. Roberts Jr., está a discussão quanto à interpretação da IV quarta emenda da Constituição, que tutela a pessoa em sua intimidade, não podendo o cidadão ser importunado em sua casa, ou ter seus dados vasculhados, a não ser que haja suspeita fundada de crime e desde que haja a expedição de um mandado judicial para tanto, apontando as pessoas e os objetos a serem apreendidos.

A Constituição, consoante exposto, seria suficientemente clara, a ponto de deixar assentado que a busca e apreensão só seria regular quando precedida do mandado, tendo em vista a ordem de um juiz, alguém com autoridade para fazer o juízo de razoabilidade acerca da necessidade da medida, sendo, ademais, imparcial aos fatos

Evidentemente, não passaram despercebidas as exceções à regra, que autorizariam uma busca sem o mandado judicial, sendo pontuado que, desde 1914, quando se colocaram as primeiras discussões acerca do tema, entendia-se que, em situação de prisão, se permitesse que os policiais vasculhassem os objetos do preso, a fim de que os produtos do crime fossem apreendidos; a busca e apreensão, sem o mandado, poderia ser necessária, dado o interesse do policial em se proteger, sendo medida de rigor a apreensão de bens que estariam com o preso, a fim de se evitar, por exemplo, uma eventual arma escondida fosse usada contra o policial.

Da análise do caso, restou consignado, na decisão da Suprema Corte, que uma busca só se faria justificável, sem o respectivo mandado judicial, portanto, caso estivesse em risco a integridade física dos agentes policiais ou quando tudo levasse à certeza de que a prova do crime se encontraria no local dos fatos (execução da prisão).

Tendo em vista esses parâmetros, a Suprema Corte considerou que o assunto tratado e a realidade nesses precedentes seriam diferentes dos casos envolvendo modernas tecnologias, pois a apreensão de um celular, com o acesso aos seus registros, não se trataria de um simples acesso a objeto qualquer, mas constituiria um grande artifício, potencialmente violador da intimidade, haja vista que os aparelhos de hoje são microcomputadores (ironicamente, como ressaltado na decisão, dada a vasta gama de funções, também eles podem ser usados para fazer ligações!), portando, desse modo, inúmeras informações de caráter restrito e muito pessoal.

Enfim, trata-se de tecnologia, que acarreta invasão na privacidade do cidadão, sendo situação nova, que não encontraria paralelo frente aos demais precedentes. Assim, a Suprema Corte asseverou que nenhuma daquelas justificativas, listadas como sendo razoáveis, nos precedentes analisados, para flexibilizar a exigência do mandado, seria aplicável nos casos de apreensão e, sobretudo, de análise dos dados telefônicos.

O celular, isoladamente considerado, não pode ser utilizado como uma arma contra um policial. Embora, em alguns casos, a busca externa no aparelho até se justifique (considerando-se, em hipótese remota, que ele possa servir como arma), nada justifica que se vasculhem os dados internos, o seu conteúdo, isto é, a privacidade do sujeito.  Afinal, os dados em si não oferecem perigo ao policial.

É bem verdade que, pelas autoridades públicas, chegou-se a alegar que, na base de dados, do telefone poderia haver informações precisas de interesse da investigação, no momento da busca, o que foi levado em consideração no julgamento. Contudo, como foi consignado pela Suprem Corte, trata-se de asserção abstrata, genérica, não sendo, por si só, suficiente para afastar, em todo e qualquer caso - como pretendem as autoridades - a obrigatoriedade do mandado.

Outra questão levantada, para legitimar o acesso aos dados telefônicos, foi possível ataque externo, para apagar o conteúdo, por ondas eletromagnéticas ou sinais que teriam o condão de deletar os dados ou mesmo o uso de artifício que impedisse o acesso aos registros (por meio de aposição de senha, por meio da criptografia), risco que seria potencializado pela demora do acesso, na espera da obtenção do mandado.

Também neste ponto a Suprema Corte enfrentou tais argumentos, tendo mencionado que, com base em conhecimentos tecnológicos, se poderia evitar a perda de dados, bastando desligar o telefone ou mesmo remover a sua bateria.

De todo modo, haveria mecanismos tecnológicos relativamente simples para blindar o equipamento desses tipos de ameaças, bastando, para tanto, acondicioná-lo dentro de compartimento idôneo para impedir a entrada dessas ondas (“Faraday Bags”).

Enfim, sob qualquer circunstância, sempre se faz necessário um mandado, devendo o acesso aos dados telefônicos se dar por prévia autorização judicial, o que também vale para o nosso sistema jurídico.

Recentemente, há notícia nos meios jurídicos de que proferida uma decisão pelo Superior Tribunal de Justiça, pontuando-se, no acórdão, que, para acesso aos dados do telefone, bastaria a regularidade da busca e apreensão, sendo que, ao se apreender o celular, seria ínsito o acesso aos seus dados.

Segundo constou da ementa: “na pressuposição da ordem de apreensão de aparelho celular ou smartphone está o acesso aos dados que neles estejam armazenados, sob pena de a busca e apreensão resultar em medida írrita, dado que o aparelho desprovido de conteúdo simplesmente não ostenta virtualidade de ser utilizado como prova criminal” (STJ, RHC 75.800, j.15.09.2016).

Contudo, no mesmo julgado se avaliou que, no caso concreto, havia ordem para o acesso aos dados, conforme foi pontuado pelo Relator:

“Sucede que, na espécie, houve a autorização judicial a que se remete a legislação, inclusive com a alusão, pelo magistrado de primeiro grau, em decisão suficientemente fundamentada, no sentido de que poderiam as autoridades responsáveis pela busca e apreensão "acessar dados armazenados em eventuais computadores, arquivos eletrônicos de qualquer natureza, inclusive smartphones, que forem encontrados, com a impressão do que for encontrado e, se for necessário, a apreensão, nos termos acima, de dispositivos de bancos de dados, disquetes, CDs, DVDs ou discos rígidos " (p. 10, do acórdão do RHC 75.800, destacamos)

Ao se ler o título da notícia, no Conjur (Busca e apreensão de celular autoriza o acesso a dados de mensagens, diz STJ[1]), pode-se ter a impressão de que os Ministros do STJ validaram uma prova ilícita, sem que houvesse, no caso concreto, na decisão judicial de primeiro grau, de busca/apreensão, autorização para o acesso aos dados. Ora, com todo respeito, mas, lendo-se o acórdão, constata-se que essa autorização havia sim.

A decisão do STJ, de fato, trabalha com pressupostos equivocados (acena que bastaria o mandado de busca e apreensão para autorizar o acesso aos dados), valendo a pena, no ponto, acompanhar qual será o encaminhando da fundamentação exposta no STJ; seja como for, na análise do caso concreto, no dispositivo (isto é, a solução conferida), a decisão NÃO está incorreta, como um leitor mais desavisado poderia pensar, pois, em havendo autorização para acesso aos dados (como havia), não se pode falar que, no caso concreto, a prova seria ilícita.


Notas e Referências:

[1] http://www.conjur.com.br/2016-set-26/busca-apreensao-celular-autoriza-acesso-dados-mensagens


Jorge Coutinho Paschoal. . Jorge Coutinho Paschoal é Advogado e Mestre em Direito Processual Penal pela Universidade de São Paulo (USP). . .


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O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.


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