Ação rescisória com fundamento em erro de fato e o CPC-15: impossibilidade de pronunciamento judicial sobre o fato na decisão rescindenda – Por Denarcy Souza e Silva Júnior

21/08/2017

Um dos institutos mais atingidos pelas mudanças instituídas pelo CPC-15 foi o da ação rescisória, pois além de ter sido excluída uma das hipóteses de rescindibilidade (a que era prevista no art. 485, VIII, do CPC-73 - houver fundamento para invalidar confissão, desistência ou transação, em que se baseou a sentença), as hipóteses remanescentes foram adequadas aos reclamos da doutrina e da jurisprudência, facilitando, sobremodo, o manejo da ação rescisória no dia a dia forense.

Apesar dessas adequações necessárias, a hipótese de cabimento que sempre gerou mais dúvida na praxe jurídica foi mantida, não sem uma modificação redacional do disposto normativo que a prevê, qual seja, o cabimento da ação rescisória por erro de fato, previsto no art. 966, VIII, do CPC-15 (equivalente ao art. 485, IX, do CPC-73).

Saliente-se, que muito embora a manutenção da referida hipótese de cabimento, a explicação legal sobre o que consistiria o erro de fato sofreu mudanças, o que pode acarretar uma interpretação de todo confusa do dispositivo, afastando-se daquilo que realmente poderá ensejar a propositura de uma ação rescisória fundamentada na existência de erro de fato.

Para uma melhor visualização do que aqui se está explanando, transcrevem-se os dispositivos do diploma processual atual e do revogado:

CPC-15 - Art. 966.  A decisão de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

[...]

VIII - for fundada em erro de fato verificável do exame dos autos.

§ 1o Há erro de fato quando a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido, sendo indispensável, em ambos os casos, que o fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se pronunciado.

CPC-73 - Art. 485. A sentença de mérito, transitada em julgado, pode ser rescindida quando:

[...]

IX - fundada em erro de fato, resultante de atos ou de documentos da causa;

§ 1o Há erro, quando a sentença admitir um fato inexistente, ou quando considerar inexistente um fato efetivamente ocorrido.

§ 2o É indispensável, num como noutro caso, que não tenha havido controvérsia, nem pronunciamento judicial sobre o fato.

Ambos os dispositivos preceituam que haverá erro de fato quando: “a decisão rescindenda admitir fato inexistente ou quando considerar inexistente fato efetivamente ocorrido”. Até aí, nada de diferente.

Entretanto, analisando-se com mais cuidado a previsão normativa atual, poder-se-ia chegar à conclusão que, apesar de restar mantida a necessidade de que não tenha havido controvérsia sobre o fato (na decisão rescindenda), o novo diploma não afirma expressamente que não poderia ter havido pronunciamento judicial sobre o fato.

Na verdade, o grande problema enfrentado na legislação revogada era saber de que erro de fato cuidava o dispositivo, porque a lei não permitia que sobre o fato havido em erro tivesse o juiz se manifestado expressamente na decisão rescindenda.

Exigia-se, portanto, naquele diploma, que não tivesse havido pronunciamento judicial sobre o fato (admitido como ocorrido, mas inexistente ou tomado como inexistente, apesar de efetivamente ocorrido). Mas era justamente neste ponto que estava a maior dificuldade no manejo da ação rescisória. Se para o cabimento da ação rescisória não podia o juiz ter se manifestado expressamente sobre o fato, qual erro de fato daria ensejo à propositura de uma ação rescisória?

A dúvida se mostra flagrante, porque se o fato foi objeto de cognição mediante prova (ou seja, de valoração) no curso do raciocínio que o juiz empregou para formar a sua convicção, não cabe ação rescisória (daí a necessidade de o fato ser incontroverso). Em outras palavras: para a desconstituição do pronunciamento judicial que seja fruto de uma percepção equivocada do que consta dos autos, é necessário que o órgão julgador “não tenha percebido aquele elemento constante dos autos e, silenciando a seu respeito, tenha proferido decisão que com ele é incompatível”.[1]

Vale dizer: para ser cabível a ação rescisória o fato (tomado em erro) deve ter sido suposto no raciocínio judicial como mera etapa para o juiz chegar a uma conclusão, não podendo o juiz ter se manifestado expressamente sobre ele na decisão rescindenda, porque se o órgão julgador fez alusão ao elemento constante dos autos, mas, ao valorá-lo, chegou à conclusão errada (tomando como inexistente fato ocorrido, ou considerando existente um fato que não ocorreu) a decisão se mostrará injusta, mas não rescindível.[2]

Sobre o tema, a luz do diploma anterior, vaticinou Barbosa Moreira:

O que precisa haver é a incompatibilidade lógica entre a conclusão enunciada no dispositivo da sentença e a existência ou inexistência do fato, uma ou outra provada nos autos mas porventura não colhida pela percepção do juiz, que, ao decidir, pura e simplesmente saltou por sobre o ponto sem feri-lo. Se, ao contrário, o órgão judicial, errando na apreciação da prova, disse que decidia como decidiu porque o fato ocorrera (apesar de provada nos autos a não ocorrência), ou porque o fato não ocorrera (apesar de provada a ocorrência), não se configura o caso do inciso IX. A sentença, conquanto injusta, não será rescindível.[3]

A admissão da ação rescisória por fundamento em erro de fato devia preencher, portanto, os seguintes requisitos: a) que a sentença estivesse baseada em erro de fato; b) que esse erro pudesse ser apurado independentemente de produção de novas provas na ação rescisória; c) que sobre o fato não tivesse havido controvérsia entre as partes[4]; e d) que não tivesse havido pronunciamento judicial sobre o fato.

O atual diploma processual, por sua vez, não reproduz expressamente o § 2º do art. 485, do CPC-73, o que pode dar margem a interpretações de que agora, desde que caracterizado o erro de fato e de que não tenha havido controvérsia sobre o fato, a decisão rescindenda poderá ter manifestação expressa sobre o fato[5]. Essa interpretação, contudo, não parece a melhor. A ação rescisória não tem por objeto levar a um reexame de provas, não se justificando a sua utilização pelo órgão julgador ter apreciado mal a prova em que fundamentou a sua decisão.

Apesar de não ter sido reproduzido expressamente a ressalva de que não poderia ter havido pronunciamento judicial sobre o fato incontroverso na decisão rescindenda (§ 2º do art. 485, do CPC-73), não parece correta a interpretação que no CPC-15 passou a admitir o manejo da ação rescisória para simples reexame de provas ou da justiça da decisão em razão de uma análise equivocada dos fatos expressamente decididos. A ação rescisória nunca prestou para essa finalidade e o novo diploma não criou essa nova hipótese de rescindibilidade (o que poderia ter feito, mas não o fez).

O art. 966, § 1º, do CPC-15, ao conceituar o que é o erro de fato e elencar os pressupostos legais para a sua caracterização, não deixou brecha para se imaginar uma nova hipótese de rescindibilidade (reexame de prova). Para a correta propositura de ação rescisória fundamentada em erro de fato, não pode ter havido pronunciamento judicial sobre o fato da sentença rescindenda, o que se extrai, sem muito esforço, da parte final do referido dispositivo (o fato não represente ponto controvertido sobre o qual o juiz deveria ter se pronunciado).

Sendo o ponto incontroverso, diante do que consta dos autos, no comum dos casos o correto seria que o juiz percebesse que o fato realmente ocorreu (ou que não ocorreu), mas se por um equívoco de percepção, o juiz não se deu conta do ponto incontroverso (daí não ter se manifestado sobre ele), o supondo equivocadamente no seu raciocínio, caracterizada está a hipótese de rescindibilidade por erro de fato (desde que, por óbvio, haja uma incompatibilidade lógica entre a conclusão enunciada no dispositivo da decisão rescindenda e a existência ou inexistência do fato, apta a ensejar a modificação do julgado).

Percebe-se, que apesar das necessárias modificações redacionais e das adequações procedimentais instituídas pelo CPC-15 no atual sistema processual, a ação rescisória que tenha por fundamento um erro de fato não sofreu mudanças significativas. Os pressupostos necessários para a sua propositura permanecem os mesmos antes defendidos em doutrina e na jurisprudência, com a manutenção da impossibilidade de o fato havido em erro ter sido decidido expressamente na decisão rescindenda. Interpretar de modo diverso enseja a crença de que o CPC-15 institui uma nova hipótese de rescindibilidade: o reexame de provas (justiça da decisão), o que não ocorreu.

Embora o novo reclame um olhar renovado, nem sempre esse olhar deve procurar mudanças de forma desenfreada. O CPC-15 deve ser seguido em sua inteireza, devendo a doutrina constranger epistemologicamente para que o novo diploma não se torne letra morta, como infelizmente vem se mostrando durante esse um ano e cinco meses de vigência, mas no caso da ação rescisória fundada em erro de fato, não há nada de novo a ser encontrado e se admitir uma ação rescisória para reexame de provas causaria, em verdade, uma instabilidade jurídica muito maior, que não se coaduna com o modelo comparticipativo de processo, com a garantia da razoável duração do processo, tampouco com a necessária segurança jurídica buscada pelo atual diploma processual.


Notas e Referências:

[1] CÂMARA, Alexandre Freitas. O novo processo civil brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 490.

[2] Idem. ibidem. p. 491.

[3] MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. 11ª ed. v. V. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 151-152.

[4] A inexistência de controvérsia sobre o fato pode se dar de três formas distintas: a) se o fato não foi alegado por nenhuma das partes; b) se uma admitiu (confessou) a alegação da outra; e c) se uma simplesmente se absteve de contestar a alegação da outra. MOREIRA, José Carlos Barbosa. Comentários ao código de processo civil. 11ª ed. v. V. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 149.

[5] Na 13ª edição de seu Curso de direito processual civil: meios de impugnação às decisões judiciais e processos nos tribunais. 13ª ed. Salvador: Juspodivm, 2016, Fredie Didier e Leonardo Carneiro da Cunha suprimiram dos pressupostos necessários à configuração da hipótese de rescindibilidade por erro de fato “que sobre o erro de fato não tenha havido ‘pronunciamento judicial’”, constante das edições anteriores com base no CPC-73.


 

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