No ano de 2002 foi publicada uma obra clássica do jurista baiano Calmon de Passos: ESBOÇO DE UMA TEORIA DAS NULIDADES APLICADA ÀS NULIDADES PROCESSUAIS.[1] Professor emérito da faculdade de Direito da UFBA e livre-docente da faculdade de Ciências Econômicas da mesma universidade, presidente da OAB-BA, procurador-geral de Justiça do MP da Bahia e secretário de Estado, além de membro da Academia de Letras Jurídicas da Bahia, o mestre Calmon de Passos foi “um dos maiores juristas de todos os tempos, da Bahia e do Brasil, e era, de fato, um homem genial; um homem de princípios; um homem de palavras, um Mestre, com M maiúsculo. Era correto e sério (ele era um homem do seu tempo, neste aspecto), mas também sempre gentil e cordial, até passarem do limite e pisarem onde não deviam, seja lá quem fosse.”[2]
Sobre ele, Paulo Modesto, outro grande jurista baiano, escreveu: “Calmon gostava de fazer ironia, de ser cômico e caricato, para provocar o outro ou desarmá-lo da pura argumentação lógica. A ironia era nele uma arma de mobilização, não um divertimento. Para alguns, a ironia e a crítica feroz que ele vocalizava traduzia pessimismo. Mas Calmon não era pessimista nem melancólico. O seu discurso de provocação e crítica não convocava à passividade, mas exatamente o contrário.”[3]
O livro, em verdade, já havia sido editado em 1959 quando Calmon de Passos, concorrendo à livre docência da cadeira de Direito Processual Civil na faculdade de Direito da UFBA, apresentou como tese o trabalho A NULIDADE NO PROCESSO CIVIL, que não chegou a ser publicado comercialmente, tendo sido impressos apenas uns poucos exemplares pela Imprensa Oficial da Bahia.[4] A obra, evidentemente revisitada, atualizada e fruto de intensa reflexão a respeito do tema, é um trabalho fundamental para quem estuda Direito Processual Civil, seja o acadêmico, seja o profissional, seja o estudante.[5]
Na primeira parte do livro, o autor procurou delinear “algo com alguma serventia para pensar o problema das nulidades em todo e qualquer ramo do direito e em toda e qualquer situação de aplicação do direito”, sendo um porto seguro contra aqueles que, manipulando a questão das nulidades, procuram “frustrar a exigência constitucional de se deferir a tutela jurídica àquele que, nos termos do que foi prévia e politicamente pactuado e formalizado, faz jus a essa proteção.”
Já na segunda parte, o jurista e pensador baiano vale-se precipuamente do que já escrevera antes, aprofundando-se, evidentemente; faz, inicialmente, um estudo sobre atos processuais, conceituando-os - após explicitar criticamente as diversas teorias que trataram do tema, especialmente a partir de Leone, Chiovenda, Zanzucchi, Florian, Pannaim, Satta, Carnelutti e Pontes de Miranda – como “atos jurídicos praticados no processo, pelos sujeitos da relação processual ou pelos sujeitos do processo, capazes de produzir efeitos processuais e que só no processo podem ser praticados.”
Ainda nesta segunda parte, explica o autor baiano a natureza jurídica do processo, aderindo à teoria de Oskar Von Bülow e destacando que “nenhuma teoria é mais fecunda, em suas consequências, nem mais adequada, politicamente, para um Estado de direito democrático.”
Obviamente, trata-se de uma noção inteiramente inadequada para o processo penal, sob vários aspectos, mas, especialmente porque tem conteúdo e objeto diversos do processo civil. Aqui, melhor entender o processo como uma situação jurídica (James Goldschmidt) ou como um procedimento em contraditório (Elio Fazzalari).[6]
Já sob o ponto de vista de sua estrutura, Calmon de Passos identifica o processo como um “tipo complexo de formação sucessiva”, passando, então, a analisá-lo sob este aspecto, enfrentando, a partir daí, as questões a respeito da inexistência jurídica do ato (na verdade, um não-ato), dos atos processuais perfeitos (correspondentes com o tipo) e imperfeitos (inadequação do ato ao modelo prefixado na lei), da sua inadmissibilidade (estudada sob a perspectiva de seus condicionamentos político-constitucionais) e da nulidade como sendo “a ineficácia do ato, judicialmente decretada, por força de sua atipicidade relevante, que vem a ser aquela falta ou vício de um ou de alguns dos elementos do tipo, substanciais ou formais, que importem em inatingibilidade do fim posto ao ato pelo sistema jurídico.”
Conclui o autor com um último capítulo denominado PRAGMÁTICA, no qual analisa decisões dos tribunais à luz do que antes fora exposto teoricamente, algo parecido com o que já houvera feito em obra anterior - DIREITO, PODER, JUSTIÇA E PROCESSO - quando, também como um anexo, relatou dez casos concretos que chegaram ao seu conhecimento na prática advocatícia e de consultor jurídico.[7]
Já em outra oportunidade, e com a mesma maestria, Calmon de Passos, comentando numa obra coletiva (especificamente) o artigo 270 do Código de Processo Civil de 1973, analisou com muita clareza, mas também a partir de uma visão de processualista civil, categorias jurídicas como ação, processo, procedimento e jurisdição. Nesta obra coletiva (a quem lhe coube escrever o volume III), destacando o conceito de processo na Teoria Geral do Direito, escreveu que processo tem um sentido muito amplo, significando “os modos pelos quais o direito disciplina sua própria criação”; assim, fala-se em processo legislativo (como a criação de normas gerais), processo negocial (normas particulares), administrativo (normas particulares, porém de forma autoritativa) e jurisdicional (normas particulares de forma autoritativa, no entanto, mediante atividade substitutiva).[8]
Reservando-se estudar apenas o processo jurisdicional, o mestre baiano refere-se à jurisdição como uma prestação jurisdicional autoritativamente dada pelo Estado-juiz para que seja aplicado o direito que incidiu na espécie.
Neste volume III da obra coletiva, Calmon de Passos inicia os seus comentários fazendo um escorço histórico acerca da evolução do conceito de processo e de sua concepção como ciência, explicando que o processo, como forma de atuação em juízo, como modo de proceder, como praxe, é estudado há muitos anos; porém, a ciência do direito processual, ou seja, “o processo como um saber metodicamente estudado, demonstrado e sistematizado, com princípios básicos e específicos, é alvo recente de interesse dos juristas, mais especificamente a partir da metade do século XIX, com os alemães e, mais tarde, com os italianos.”
A propósito, Carnelutti advertia que a característica da jurisdição (e o ponto que a distingue da legislação) é exatamente o fato de representar uma produção do direito, “super partes, mas que se prepara inter partes”. No processo jurisdicional, ao contrário do que acontece, por exemplo, no processo administrativo ou no legislativo, “as partes, de pacientes, tornam-se agentes”.[9] Foi exatamente a partir desse conhecimento científico a respeito do processo que ele deixou de ser um mero apêndice do direito material (como pensavam os antigos procedimentalistas) para ser considerado um saber autônomo em relação ao direito material.
Essa visão autônoma do direito processual iniciou-se, segundo Calmon de Passos, com a mudança da noção tradicional que se tinha de ação, que passou a ser explicada – ainda, e mais uma vez, a partir das noções de processo civil - como um direito público subjetivo de provocar a atuação jurisdicional do Estado, independentemente do direito material; e não como mais uma qualidade do direito material, pelo qual, aliás, era absorvida. A ação, assim, passou a ser entendida e estudada como um “direito público subjetivo, conferido constitucionalmente a qualquer cidadão, de provocar a atividade jurisdicional do Estado”.
Aliás, segundo Chiovenda, “o reconhecimento dessa autonomia tornou-se completo com Adolfo Wach, que em seu Manual e na monografia fundamental sobre a ação declaratória (Der Feststellungsanspruch, 1888) demonstrou que a ação, tanto quando supre a falta de realização que, por lei, se deveria verificar mediante a prestação de um devedor, como, e principalmente, nos numerosíssimos casos em que colima a realização de uma vontade concreta da lei, tal que não deve nem pode realizar-se por outra via a não ser o processo, é um direito que se constitui por si e claramente se distingue do direito do autor tendente à prestação do réu devedor.”[10]
Historicamente – e esse fato é inegável - o segundo passo em direção à adoção do processo como ciência foi dado por Oskar Von Bülow, que estudou o processo como relação jurídica, diversa da relação jurídico-material, da qual também é autônoma. Dizia Bülow que o processo “é uma relação jurídica que avança gradualmente e que se desenvolve passo a passo, estando em constante movimiento e transformação.”[11]
Assim, adotando-se a teoria, a relação jurídica processual constitui-se de maneira autônoma, pois existe, desenvolve-se e se extingue independentemente da existência, do desenvolvimento e da extinção da relação de direito material. Neste sentido, Calmon de Passos anota que, além de objetos diferentes, os próprios sujeitos da relação processual nem sequer precisam necessariamente ser os mesmos da relação de direito material.
Concebido o processo como relação jurídica, passou-se, também, a conceituá-lo como um conjunto de atos tendentes a fazer valer o direito de ação e a respectiva prestação jurisdicional. O processo teria, portanto, essa noção finalística, ou seja, voltada para a consecução de determinada finalidade, qual seja, a prestação jurisdicional.
Continuando os seus comentários, Calmon de Passos passa a diferenciar processo e procedimento e o faz nos seguintes termos: “se o processo tem esta função precípua de promover a atividade jurisdicional do Estado, entregando a providência pertinente, o procedimento representa a forma através da qual ele irá se desenvolver, ou seja, o seu modus operandi. Assim, para se prestar a jurisdição em um determinado caso se utiliza um procedimento, ou seja, uma forma de atuar, uma técnica específica; em um outro caso, pode-se utilizar forma diversamente regulada, uma técnica diferente, pois nem sempre o processo reclama o mesmo número e a mesma espécie de atos singulares.”
Assim, enquanto o processo tem aquele sentido teleológico, o procedimento, por sua vez, possui uma face formal, extrínseca, ou, como diz Calamandrei, “indica mais propriamente o aspecto exterior do fenômeno processual (no curso do mesmo processo pode, em distintas fases, mudar o procedimento)”.[12] Nesse sentido, fala-se em procedimento comum, ordinário, sumariíssimo, sumário, etc.
Ressalva o mestre baiano, ainda, que se pode falar em procedimento para indicar uma “série de atos do processo numa de suas fases de duração. Pelo que é correto dizer-se procedimento na primeira instância, procedimento recursal, procedimento instrutório etc.”
Feitas tais observações, continua distinguindo as várias formas como pode se realizar a atividade jurisdicional em sua função de tutela da ordem jurídica: processo de conhecimento ou de cognição (objetivando basicamente a certificação do direito), de execução (objetivando principalmente fazer atuar o direito) e cautelar (objetivando garantir o resultado útil dos dois primeiros). Por fim, após tecer críticas à redação do artigo comentado, que careceria de boa técnica, além de estar mal situado, Calmon de Passos diferencia processo e procedimento dos autos propriamente ditos, que seriam a face física, material do processo e do procedimento.
Por fim, e para concluir, importante ressaltar, mais uma vez, a diferença absoluta da noção de ação no processo civil em relação ao processo penal, como acima já advertido quando se trata de estabelecer a chamada natureza jurídica do processo. Aliás, o próprio Calmon de Passos, ao estudar especificamente a ação no Direito Processual Civil brasileiro, esclarece que “a ação penal é exercício de função pública, na medida em que se tornam indisponíveis os direitos que ela visa fazer atuar, assim como é também função pública a ação, no cível, para a qual esteja legitimado o Ministério Público.”[13]
Notas e Referências
[1] PASSOS, J. J. Calmon de. Esboço de uma teoria das nulidades aplicada às nulidades processuais. Rio de Janeiro: Forense, 2002.
[2] COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda, no prefácio escrito na obra Pareceres Criminais em Segundo Grau – Uma visão constitucional do Direito e do Processo Penal (MOREIRA, Rômulo de Andrade e SILVA, Adriano de Jesus. Florianópolis: Empório do Direito, 2018, p. 14). Jacinto Coutinho, então, conta um fato que ele mesmo testemunhou em um Congresso Brasileiro de Direito Administrativo, em Belo Horizonte, em 1986: “após uma brilhante conferência de Mauro Cappelletti (que falava de acesso à Justiça e de como os juízes respondiam conforme a lei), Calmon de Passos pede a palavra e mostra ao professor de Firenze que no Brasil e, particularmente, na Bahia (que ele dizia conhecer melhor), a coisa não era bem assim; e que os julgamentos eram marcados por voluntarismos e influências provenientes dos detentores do poder. Foi aplaudidíssimo. Cappelletti, na resposta, dentre outras coisas, disse não acreditar naquilo que havia dito Calmon o que, de certa forma, mostraria ser sua tese um tanto ingênua; ou algo assim. Passou, portanto, do limite. Mestre Calmon, com a humildade de sempre, pediu a palavra novamente e... deram! Com muita gentileza, disse que não era homem de mentiras, mas entendia a posição de Cappelletti; e que ela só mostrava que ele, como sói acontecer com os europeus, não entendia nada do Brasil e que, sendo assim, não era recomendável que falasse dele porque pareceria uma tentativa de estelionato ou algo do gênero. O auditório veio abaixo. E Cappelletti veio lhe dizer, depois (eu estava com ele), que ele, Calmon, estava certo.”
[3] MODESTO, Paulo. Café com Prosa. Rio de Janeiro: GZ Editora, 2021, p. 379.
[4] Participaram da banca examinadora os professores Alfredo Buzaid, Frederico Marques e Amílcar de Castro. À época, segundo o próprio Calmon de Passos, ele era “apenas um desconhecido promotor público de meu Estado, totalmente ignorado pelos juristas de meu país”, conforme consta da introdução do livro.
[5] Calmon de Passos, já octogenário, alimentava “a pretensão de revisitar tudo quanto pensei no passado em termos de saber jurídico, tentando colocar o que fui em consonância com o que sou – um estudioso apaixonado do Direito que viveu a experiência de sua aplicação e de sua formulação teórica neste turbulento meio século em que todas as nossas certezas foram abaladas. O que tenho produzido ultimamente constitui o ´meu testamento intelectual`. Por meio dele, tento transmitir aos que prosseguirão as migalhas que acumulei. Mesmo sendo pouco, não quero reter nada, pois tudo quanto retemos é como se nunca o tivéssemos possuído. Se migalhas não alimentam os homens, elas matam a fome dos pássaros que, leves e alados, delas se nutrem e são um belo ornamento na paisagem dos homens.” (idem).
[6] O próprio Goldschmidt reconhecia que o livro de Bülow teve um êxito sem precedente e a teoria da relação jurídica processual e de seus pressupostos forma a base de todos os sistemas do proceso, sendo induvidoso que a partir de Bülow, e não antes, começa a se formar uma Ciência própria do Direito procesual.” (GOLDSCHMIDT, James. Principios Generales del Proceso, Volume I. Buenos Aires: Ediciones Juridicas Europa-America, 1961, p. 16). Já Fazzalari entendia como necessário para identificar o processo haver “uma série de normas (e atos, e posições jurídicas) que se reportem aos destinatários dos efeitos do provimento, realizando-se entre eles um contraditório paritário.” (FAZZALARI, Elio. Instituições de Direito Processual. Campinas: Bookseller, 2006, p. 121.
[7] PASSOS, Calmon de. Direito, Poder, Justiça e Processo. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1999. Esta obra foi republicada, em 2012, quatro anos após a sua morte, com o título REVISITANDO O DIREITO, O PODER, A JUSTIÇA E O PROCESSO — REFLEXÕES DE UM JURISTA QUE TRAFEGA NA CONTRAMÃO. Salvador: Editora JusPODIVM, 2012.
[8] PASSOS, J. J. Calmon de. Comentários ao Código de Processo Civil, Volume III (artigos 270 a 331). Rio de Janeiro: Forense, 1992. Além de Calmon de Passos, participaram da coleção juristas como Celso Agrícola Barbi (Volume I), Egas Dirceu Moniz de Aragão (Volume II), Moacyr Amaral Santos (Volume IV), José Carlos Barbosa Moreira (volume V), Alcides de Mendonça Lima (Volume VI), Celso Neves (Volume VII), Galeno Lacerda (Volume VIII – Tomo I), Carlos Alberto Álvaro de Oliveira/Galeno Lacerda (Volume VIII – Tomo II), Adroaldo Furtado Fabrício (Volume VIII – Tomo III), Hamilton de Moraes e Barros (Volume IX) e José Olympio de Castro Filho (Volume X).
[9] CARNELUTTI, Francesco. Teoria Geral do Direito. São Paulo: Lejus, 1999, p. 148.
[10] CHIOVENDA, Giuseppe. Instituições de Direito Processual Civil, Volume 1. Campinas: Bookseller, 1998, p. 39.
[11] BÜLOW, Oskar Von. La teoria de las excepciones procesales y los presupuestos procesales. Buenos Aires: Ediciones Jurídicas Europa-América, 1964, p. 03.
[12] CALAMANDREI, Piero. Direito Processual Civil, Volume 1. Campinas: Bookseller, 1999, p. 254.
[13] PASSOS, Calmon de. A ação no Direito Processual Civil brasileiro. Salvador: JusPODIVM, 2014, p. 73.
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