A Constituição consagra o direito de acesso à Justiça ao prever que todos podem acionar o Poder Judiciário para evitar ou reparar lesão ou ameaça a direito (art. 5º, inciso XXXV).
Questão importante e pouco estudada no Brasil diz respeito ao abuso do direito de ação, ou seja, quando a ação e o processo judicial agravam o estado de saúde das pessoas.
O Código de Processo Civil trata do abuso do direito de defesa (que permite o reconhecimento da tutela de evidência – art. 311, inciso I), mas é tímido para o abuso do direito de ação.[1]
Não é incomum encontrar-se diante de situações em que o processo judicial não faz bem à saúde. Um exemplo interessante foi objeto de julgamento no Superior Tribunal de Justiça, que condenou um padre a pagar 60 mil reais de indenização por danos morais em razão do seu abuso do direito ação[2].
O caso tratava de um habeas corpus impetrado pelo padre em favor do nascituro e tinha por objeto impedir a gestante de interromper a gravidez de feto com síndrome de Body Stalk (que torna impossível o nascimento com vida).
Veja o resumo dos fatos (transcritos na decisão do Recurso Especial 1.467.888-GO):
“Em 05/09/2005, foi descoberto que o feto gestado pela recorrente possuía má-formação condizente com a Síndrome de Body Stalk;
Em 03/10/2005, a recorrente pediu autorização judicial para interromper a gestação, ante a inviabilidade de vida extrauterina do feto;
Em 06/10/2005, foi expedido alvará judicial para a interrupção da gestação;
Em 11/10/2005, a recorrente foi internada, passando a receber medicação para induzir o parto;
Em 13/10/2015, foi deferida medida liminar pleiteada pelo recorrido, para suspender o tratamento e garantir, assim, o prosseguimento da gestação da recorrente;
Em 14/10/2005, à noite, o tratamento de indução do parto foi interrompido, ficando a recorrente ainda em observação, no hospital, por mais dois dias, quando recebeu alta;
Em 22/10/2005, a paciente voltou ao hospital, agora em trabalho de parto, dando à luz à criança que faleceu momentos depois (1h e 40 minutos após o parto), em face das já relatadas graves malformações que tornavam a vida extrauterina, inviável.”
Vale dizer, a impetração do habeas corpus ocorreu de modo abusivo, causando prejuízo à saúde física e mental da gestante. O direito de ação, no caso, configurou ato ilícito, nos termos dos artigos 186, 187, 188 e 927, todos do Código Civil.
Ou seja, a gestante já tinha autorização judicial para interromper a gravidez e o padre, por questões religiosas, tentou impedir, mediante o uso indevido do direito de ação consagrado na Constituição.
Segundo a decisão “impõe-se o reconhecimento de que o recorrido, ao contrário do que dantes afirmado, tocou, com dano, espaço reservado à liberdade de outros e, ainda, por incúria ou perfídia, utilizou-se de um direito próprio – direito de ação – para impor, aos recorrentes, estigma emocional que os acompanhará perenemente.”
Vale recordar o conceito de saúde para a OMS: “um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade.”[3]
O exemplo deixa muito claro que o direito de ação não é absoluto e deve ser exercido de modo adequado, sem causar prejuízo às pessoas.
Notas e Referências:
[1] Não se olvida que o CPC prevê como dever das partes não formular pretensão destituída de fundamento (art. 77, inciso I) e também trata do litigante de má-fé (artigos 79 a 81).
[2] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial 1467888-GO. Terceira Turma. Relatora Ministra Nancy Andrighi.
[3] http://www.direitoshumanos.usp.br/index.php/OMS-Organiza%C3%A7%C3%A3o-Mundial-da-Sa%C3%BAde/constituicao-da-organizacao-mundial-da-saude-omswho.html. Acessado em 25 de outubro de 2016.
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