Aborto, finados e ideias delirantes

20/03/2015

Por Atahualpa Fernandez - 20/03/2015

 

MENSAGEM: “Minhas sinceras e ANTECIPADAS felicitações pelo dia de hoje («Dia de Finados») para todos os que AINDA estão vivos. Mementō mori. Atahualpa”.

Imaginemos, por um momento, que eu enviara às pessoas que conheço (familiares, amigos, quase-inimigos e inimigos) uma «Felicitação» como esta. Algum problema? Em absoluto. A verdade, por brutal e desagradável que pareça, não deixa de ser verdade: todos morreremos “em algum lugar do inacabado”; todos, cedo ou tarde, desfrutaremos do status de «finado» (ou, para dizer com Manilio: “Nacer es empezar a morir; el último instante de la vida se origina en el primero”)[1].

No melhor dos casos, um bom amigo poderia pensar (ou recordar-me) que «as palavras, às vezes, também podem ferir». Claro que podem. Mas podem ferir de duas maneiras: podem burlar-se das coisas que não podemos cambiar e/ou são irrelevantes  para a dignidade; ou podem burlar-se de coisas que, embora não afetem nosso valor inerente como ser humano, ainda assim podem ser perigosas e estar equivocadas. Incluo na primeira categoria minha «Felicitação» e na segunda a crença em ideias ou teorias delirantes.

Agora: Merece dignidade este tipo de «Felicitação»? Nem por assomo. É coisa de descerebrados ou de indivíduos dotados de uma imaginação esquizofrênica vagar pelo mundo confundindo ou tratando «o que é» (um ser humano vivo com capacidade para pensar, sentir, sofrer, etc.) como «o que será» (um ser humano morto incapaz de pensamento, sentimento, sofrimento, etc.).

Pois bem, semelhante razoamento também pode ser utilizado para abordar o tema, não isento de dramáticas tensões e paranóias, do direito ao aborto. Me explico: quando o espermatozóide de um homem penetra no óvulo maduro de uma mulher e os núcleos haplóides de ambos gametos se fundem para formar um novo núcleo diplóide, se forma um zigoto que (em circunstâncias favoráveis) pode converter-se no início de uma linhagem celular humano, de um organismo que em suas diversas etapas pode ser, em termos simplificados: mórula, blástula, embrião, feto e, finalmente, um humano «em ato», homem ou mulher. Ainda que estágios de um mesmo organismo, um zigoto não é uma blástula, e um embrião não é um humano. Um embrião é um agrupamento celular, que vive em um meio líquido e é incapaz por si mesmo de ingerir alimentos, respirar ou excretar (isso para não dizer que «lhe» resulta absolutamente impossível sentir ou pensar).

Por certo que o embrião é um ser vivo, mas também o é um mosquito e inlusive uma bactéria. Naturalmente que encerra a portentosa potencialidade de desenvolver-se durante meses até converter-se em um homem ou uma mulher. Mas não passa de uma vida em potencial. Uma criança é um ancião em potencia, mas uma criança não é um ancião nem tem direito à aposentadoria. Um homem vivo é um cadáver em potência, mas um homem vivo não é um cadáver. Enterrar a um homem vivo é algo muito distinto e de muita diversa gravidade que enterrar a um cadáver. Aos vegetarianos, aos que está proibido comer carne, lhes está permitido comer ovos, porque os ovos não são galinhas, ainda que tenham a potencialidade de chegar a sê-lo. Um embrião não é um homem e, portanto, interromper a gravidez (manipulá-lo ou descartá-lo) não é matar a um homem (J. Mosterín).

O aborto, durante as primeiras semanas de gravidez ou o uso de células-tronco embrionárias em pesquisas não constituem um assassinato. Ademais, uma vez que os embriões humanos nesse período não têm atividade cerebral, não há sequer razão para acreditar que eles possam sentir qualquer tipo de sofrimento, não há possibilidade alguma de atividade psíquica ou vida pessoal, de maneira alguma. Como explica Richard Dawkins, “un embrión humano en estadio temprano, sin sistema nervioso y, presumiblemente, carente de dolor y miedo, podría justificablemente ser objeto de menos protección moral que un cerdo adulto, que está claramente bien equipado para sufrir. Nuestro impulso esencialista hacia definiciones rígidas de "humano" (en los debates sobre el derecho al aborto) y de "vivo" (en los debates sobre la eutanasia y decisiones sobre el fin de vida) no tienen ningún sentido a la luz de la evolución y otros fenómenos gradualistas […] Científicamente está confundido y moralmente es pernicioso.”

O que quero dizer é que é tão insensato, tresloucado e indigno tratar a um ser humano vivo como um cadáver em potência como atribuir a um embrião a condição de um ser humano em potência. Pensar que cada embrião humano tem uma alma merecedora de preocupação moral, que existe alma em cada um dos blastocistos e que esta deve prevalecer sobre os interesses e a liberdade de uma mulher com capacidade para pensar, sentir, eleger, decidir, amar e sofrer é um enorme «sem-sentido», para não dizer um disparate.

Nada, exceto a mais sombria e lúgubre superstição, justifica esse tipo de aporte ao infinito catálogo das loucuras humanas. A eleição do momento oportuno para produzir «milagres» no ventre de uma mulher deve realizá-la essa mulher, não o Estado ou a religião de  turno. Por acaso a vida mais desejável de um ser humano não é a que ele decide? Por que está bem que sigamos vivendo em um mundo que não deixa de impor às mulheres este tipo de glorificação demencial do sofrimento?

Apesar de tudo isso, estou convencido que entrar em polêmicas com pessoas cujo sistema de crenças é o único que se interpõe entre elas e um comportamento repulsivo resulta uma enorme perda de tempo e até um absurdo de raiz[2]. Nada do que digam ou sustentem os espíritos mais esclarecidos (amém de alguns Ministros do STF) fará mover nem um milímetro a opinião daqueles que insistem em permanecer, «ad absurdum et ad nauseam», no perigoso reino das ideias e teorias delirantes. A moralidade, diz J. Haidt, “ata e cega”. Apaga tudo e vamos embora.

Mas como a esperança é livre, o respeito pelas crenças alheias tem um limite e a reflexão sobre o aborto uma atividade muito conveniente para qualquer que tenha uma diminuta inquietude sobre os fenômenos que movem o mundo, podemos no mínimo esperar que os problemas de comunicação com o Espírito Santo se dissipem e que este «pássaro sedutor» intervenha junto aos iracundos inimigos da autonomia e vontade individual - não, evidentemente, com a mesma intenção e objetivo com que apareceu à entregada Virgem - para que se disponham a mirar com alguma virtuosidade a pulcritude e os benefícios que a liberdade representa para a dignidade da mulher e o pleno exercício de sua cidadania... E “Livre-nos do mal”.

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[1] Há, apenas, um «pequeno» matiz no que se refere ao cálculo cristão da «aposta da eternidade»: a promessa de uma recompensa pelas misérias deste mundo, uma esperança de outra vida e retribuição de felicidade celestial no Paraíso, um lugar de delícias absolutas donde já não existem nem a fome nem a sede, nem a maldade nem o tempo, e o único modo de pôr fim ao escândalo da prosperidade do malvado e do infortúnio do justo. O maravilhoso da morte, escreve S. Bossuet citando a Santo Antônio, “es que, para el cristiano, no pone punto final a la vida, sino a los pecados y peligros a los que ha estado expuesto. Al abreviar nuestros días Dios abrevia nuestras tentaciones, es decir, todas las ocasiones de perder la verdadera vida, la vida eterna, puesto que el mundo tan sólo es nuestro común  exilio”. Nada obstante, como a «fé» parece não ser suficiente para diminuir nem o «temor» nem a «dor» da morte de alguns devotos, Richard Dawkins faz, com atino, esta sensata reflexão: “Si uno cree de veras en la vida después de la muerte, cómo es que no reacciona como el abad de Ampleforth que, cuando Basil Hume le dijo que estaba moribundo, le repuso: «¡Felicidades, hombre! Es una noticia maravillosa. Me encantaría poder acompañarte»”.

[2] Há que ter em conta que quando um tema se moraliza (ou se «politiza») não o deixamos à livre decisão de cada um, senão que consideramos que essa norma moral é de aplicação para todo o mundo. É impossível tratá-lo de uma maneira razoada ou sensata: tomamos uma postura e a partir daí o mundo se divide entre as pessoas boas que pensam como nós e os malvados que pensam distinto. Se estás lutando pelo bem absoluto, pela “vida” ou por Deus, tudo está justificado, e qualquer que se oponha a isso demonstra sem nenhum gênero de dúvidas que é um malvado, porque, quem pode opor-se à utopia, ao bem absoluto, à “vida”, a Deus, senão os malvados puros? O certo é que há situações em que cumprir (ou simplesmente pretender levar a efeito) as normas de etiqueta da racionalidade dialógica resulta praticamente inviável, para não dizer impossível. A ideia de que podemos fazer que as discussões públicas importantes, sejam religiosas, filosóficas, jurídicas, científicas ou políticos cumpram os protocolos “habermasianos” é uma ridiculez. As intuições dos indivíduos acerca de questões morais e pessoais se fazem sentir com muito mais intensidade do que pensamos ou imaginamos. É muito provável que os seguidores de Habermas evitem inspecionar suas próprias crenças, intuições e emoções morais com demasiado cuidado quando defendem com tanto fervor e entusiasmo a validez e a eficácia da ação comunicativa. Afinal de contas, como já fez notar a escritora Isabel Allende: “El que busca la verdad corre el riesgo de encontrarla.”


Atahualpa FernandezMembro do Ministério Público da União/MPU/MPT/Brasil (Fiscal/Public Prosecutor); Doutor (Ph.D.) Filosofía Jurídica, Moral y Política/ Universidad de Barcelona/España; Postdoctorado (Postdoctoral research) Teoría Social, Ética y Economia/ Universitat Pompeu Fabra/Barcelona/España; Mestre (LL.M.) Ciências Jurídico-civilísticas/Universidade de Coimbra/Portugal; Postdoctorado (Postdoctoral research)/Center for Evolutionary Psychology da University of California/Santa Barbara/USA; Postdoctorado (Postdoctoral research)/ Faculty of Law/CAU- Christian-Albrechts-Universität zu Kiel/Schleswig-Holstein/Deutschland; Postdoctorado (Postdoctoral research) Neurociencia Cognitiva/ Universitat de les Illes Balears-UIB/España


Imagem Ilustrativa do Post: Fecundación // Foto de: Daniel Lobo // Sem alterações Disponível em: https://www.flickr.com/photos/daquellamanera/4560490081/ Licença de uso: http://creativecommons.org/licenses/by/4.0/legalcode

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