Abortamento, saúde pública, STF, democracia – Por Léo Rosa de Andrade e Bruna Caroline de Oliveira

07/12/2016

Abortamento não é contraceptivo de uso ordinário. É um recurso extremo deliberado nas instâncias pessoais de alguém que sempre pagará os custos morais decorrentes. É difícil desconsiderar as prédicas antiaborto pautadas por sermões falaciosos fundados no senso comum. Ninguém o pratica com compreensão social, mas apesar da incompreensão da Sociedade.

Pensamos que ao menos seis aspectos devem ser considerados na discussão do assunto: a condição de gênero; o foro íntimo; a questão religiosa; o saber médico-científico; o ordenamento jurídico; a interferência estatal.

Sobre gênero, divergimos sobre a responsabilidade da discussão ser apenas do feminino. Isso corresponderia a afirmar que câncer de próstata é problema unicamente masculino, quando, logicamente, é tema de saúde pública. O assunto é pertinente somente à mulher se considerada uma gravidez especifica.

Em face da gravidez, a condição feminina e as escolhas existenciais decorrentes são a exclusiva importância incidente. A autoridade sobre um corpo grávido é da mulher-corpo-psique implicada. É seara de foro íntimo; o Estado e mesmo a Sociedade se devem abstrair de intromissão não solicitada. Aí advém a questão religiosa.

O religioso é um militante que não age com ânimo persuasivo acerca de seus credos. O religioso pretende a generalização da sua crença: não apenas deixa de praticar aborto; seu desiderato é que ninguém o faça. Na sanha de obstaculizar opções pessoais, os devotos tornam-se invasivos.

Estão na contramão dos fatos: “a ampla maioria de mulheres (70%) que optam pelo aborto de gestações indesejadas possuem algum vínculo com a fé cristã” (Gospel, http://migre.me/vEdBI). O abortamento é tão generalizadamente praticado que o chefe dos católicos, ciente de que seu rebanho acabaria pastando na realidade, cede no seu dogmatismo e autoriza que padres possam “perdoá-lo”.

Isso talvez abrande a angústia das “almas” que periclitam diante da danação eterna. Mas na verdade a justificação para a decisão pela medida extrema – o aborto – está disponível na literatura médico-científica. O Conselho Federal de Medicina arrazoou em defesa da não criminalização do aborto até o terceiro mês de gravidez. Esta fase da ciese é embrionária. Inexiste cérebro.

Claro, como médicos não legislam, sua conduta deve seguir a norma geral. Em sendo abortamento conduta penalmente tipificada, a obediência à lei afasta eventual responsabilidade penal. Mas, impedido o médico de socorrer a paciente, remetida está a mulher a uma aventura em que o risco é a sua vida.

Há três sabidas situações legais permissivas para a realização do abortamento, a saber: (i) em caso de estupro; (ii) quando há risco de vida à gestante; ou, (iii) em caso de feto anencéfalo. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal considerou uma quarta hipótese para não se punir a gestante que aborta.

Os olhos sociais se voltaram à inovação jurídica que repercutiu nos costumes, nos valores populares. Segundo decisão da 1ª Turma da Corte Suprema (HC 124.306/RJ), o abortamento até o 3º mês de gestação não pode ser considerado crime. Conforme os ministros que a compõem, reputar crime à conduta de interrupção voluntária da prenhez no primeiro trimestre viola diversos direitos fundamentais da mulher.

Sopesando o impacto da referida criminalização sobre mulheres pobres, as quais não possuem acesso a médicos e clínicas privadas, fator que as leva a se submeterem a procedimentos clandestinos e precários, o STF trouxe o tema para o ponto adequado: a criminalização do aborto não é a melhor política pública para tratar do assunto.

O Supremo Tribunal Federal tem feito valer uma pauta republicana. Com, talvez, alguns erros, mas, seguramente, com mais acertos, faz o País saber que não há temas intocáveis em um Estado Democrático de Direito laico. A ideologia cristã já não pode ser defendida com o envio de seus dissidentes para os cárceres.

Edito Luís Roberto Barroso, ministro do STF (Estadão, http://migre.me/vEfwU): “Obrigar pela via do direito penal uma mulher a manter uma gestação que não deseja, isso viola claramente a Constituição. Quem é contrário não apenas não precisa fazer (o aborto), como tem todo o direito de pregar a posição contrária. A única coisa que não é razoável é criminalizar a posição divergente.

O Estado não deve tomar partido nessa briga. Ele deve permitir que cada um viva a própria crença. No espaço público, você não pode utilizar argumentos que excluam o outro do debate. Se você utiliza um argumento religioso, você exclui do debate quem não compartilha dele. No espaço público, os argumentos de razão pública são argumentos laicos e tratam a todos com respeito e consideração.”


 

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