Abolicionismos e Cultura Libertária: Piratas e Mapas (Epílogo do autor) - Por Guilherme Moreira Pires

13/12/2017

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"Anseias por te unir ao vento, ao vento que percorre um ano numa noite." (René Char). 

Já com o livro fechado, pronto para publicação, me deparei com um passagem em Cabezas de Tormenta: ensayos sobre lo ingovernable, que merece menção, não como citação (morta e pedante), mas como uma experimentação aliada, potencialmente disposta a desencarcerar imaginações, é dizer, desamarrar potenciais libertários.

Muito visualmente em dois dos escritos reunidos nesse livro "Trono e Poder: Navegar sem temer as ruínas (destronando autoridades)" e "A castração da imaginação e os Etapismos de um Amanhã prolongado, eternizado, que nunca vem: imaginação capturada e ativadora de novas-velhas capturas", se esboça um navegar não encarcerado a códigos e mapas do poder, sem obediência às linhas pontilhadas delimitadas por referenciais sistêmicos e hegemônicos, bem como por governos e autoridades em geral; sem uma obediência às cartografias do possível (e do poder), delineadoras do que julgam e permitem como possível, um possível tolerado, artificial, fictício, que se cristaliza como norte de (falsa) medida do possível: cartografias do possível, cartografias da violência, cartografias do poder, com reiteradas legitimações das demais produções do poder instituído, estruturante de culturas repressivas.

Essas e tantas outras provocações, são tensionadas nesses e em inúmeros outros escritos presentes neste livro, Abolicionismos e Culturas Libertárias, atacado como um não-lugar à luz de culturas repressivas; não-lugar proibido, jamais catalogado como tangível pelo poder, mas como existências irrelevantes, "utópicas" ante as pretensões de mapeamento dogmático que delineiam e impõe um limite do campo do possível, sacrificando outras possibilidades que se sobressaem com a critica e práxis libertaria; e que assim o fazem, assumindo profundidades indesejáveis pelo poder e suas autoridades; profundidades de contornos inimagináveis pelas cartografias artificiais do possível instituído; de proporções e experimentações imprevisíveis.

E segue a passagem: 

"Brújulas, teodolitos y mapas son imprescindibles para cartógrafos y exploradores; también para propietarios de tierras y gobernantes. No obstante, la tierra también ha sido hollada por caravanas nómades, expediciones perdidas, errancias, diásporas, odiseas y éxodos. El espacio físico no es un dato material constante; por el contrario, es la arcilla hendida y modificada continuamente por las leyes humanas del espaciamiento, en cuya jurisdicción rigen el esfuerzo y la imaginación [...] los pasos perdidos, los senderos olvidados, las rutas desusadas [...] hacer intersectar los atlas imaginarios (literarios, utópicos, legendarios) y los dramas biográficos. La imaginación se superpone e imprime sobre la materia [...] creatividad lingüística de exploradores y pioneros: el humor y el delirio se [...]. Inútil consultar los mapas de la geografía espiritual en busca de 'energías cósmicas' u horizontes turísticos novedosos, pues en ellos sólo resalta la materia emocional que un historiador atento debería rescatar de los escombros, documentos y relatos orales. El buen cartógrafo aprende a desconfiar de las mediciones precisas, pues a cada espacio físico corresponde un atlas simbólico. [...] Hombres como Malatesta, Orllie, Antoine o los colonos galeses, querían confirmar que en las grandes extensiones hay libertad. No una libertad metafísica. [...] Pero a la libertad geográfica perfecta, que es polar, la naturaleza no le es propicia. Promover el lirismo de la libertad expedicionaria o la nostalgia de los pioneros y otros hombres de frontera resulta inconducente, pues si estos ejemplos sirven de algo, es para pensar al impuso centrípeto de los últimos cien años, es decir la creciente mengua de la capacidad humana para anhelar e imaginar libertades." (FERRER, 2006, p. 48-50) 

De fato, mapas (e mapeamentos) são imprescindíveis para governantes e proprietários de terra. Uma comparação deste último escrito com o primeiro (que abre o livro), nos apontará para o enérgico repúdio ante cada autoridade que destroça, tritura, subjuga, brinca com vidas (há também uma poesia neste livro sobre isso); autoridades, que enxergam no mundo uma espécie de jardim pessoal.

Jardins enquanto playgrounds, como representações de territórios cujo conteúdo neles circunscritos pertencem de algum modo às autoridades, aos donos e senhores, e às leis e regras que regem esses espaços (pense na dinâmica do poder punitivo com seu sequestro do conflito, como exemplo óbvio, e sigamos além - muito além).

Ao invés de focarmos na naturalização e mapeamento do possível empregando como norte senhores e governantes, autoridades e autoritarismos de toda sorte, e de todos os tempos, optamos por exercitar nossa imaginação nas existências autônomas, não tragáveis nesses lindes; das caravanas e expedições perdidas à noção de piratas navegando sem temer, sem tesouros e castelos (e aqui, reivindicar o espaço metafórico se faz importante); andarilhos solitários ou agrupamentos libertários, propiciando apoio mútuo num caminhar sem fronteiras e sem destinos necessariamente pré-estabelecidos e milimetricamente catalogados com pretensões dogmáticas; enfim, tantas são as imagens, dos que respiram ou respiraram, que não desejamos reduzir nossos mundos aos direcionamentos implantados pelo poder; não desejamos pensar encarcerados e condicionados pelas linguagens repressivas que atravessam o mundo, aos seus limites e mapeamentos pré-estabelecidos; suas naturalizações e aberrações.

Essa é também uma passagem contra os cálculos, limites e fechamentos absolutos anunciados pelos pretensiosos especialistas encarregados de tais aferições simetricamente precisas (no sistema penal, os conjuradores do poder punitivo, que lhe legitimam, ainda que com discursos residualmente legitimantes "contencionistas").

Cabe reivindicar mais do que a literalidade mastigada, desencarcerando as análises das produções e leituras não totalizantes, atreladas ao resgate da nossa imaginação e potencial crítico, um resgate da linguagem e capacidade de interpretação, capacidade inventiva! - um resgate possibilitador e potencializador de liberdades, celebrador da chama do único e suas singularidades.

Pensadores libertários também questionam os mapeamentos, as circunscrições de qualquer catálogo, mapa, código, tábua de verdades, não comprando ficções estruturantes de culturas repressivas; anarquizando os discursos legitimantes do poder, contra capturas, controles, hierarquias e suas autoridades insanas - representantes de mundos gosmificados.

Recobrar a criatividade inventiva dos pioneiros e exploradores libertários (não conquistadores baratos) é preciso, imaginando e traduzindo liberdades; assim, as vidas tornam-se um espaço compartilhado e simultaneamente único, uma pintura de liberdades, não de controles e autoridades.

Cada pintura é única, uma arte; a arte de, contra todos os direcionamentos e forças, contra todas as probabilidades, não ser governado; uma arte do impossível (segundo cada autoridade).

Contra todas as chances, e sendo abundantemente sabotados, seguimos transformando, traduzindo e materializando, no curso de nossas existências, essa sublime arte de não ser governado, saboreando momentos de liberdades, energizando abolições e complexidades.

Autoridades e seus playgrounds (deuses brincando com vidas) - suas vidas, suas produções, seus governos, são apenas pegadas, marcas autoritárias, poeiras das produções do poder; vestígios de culturas repressivas que não valem nada; os cemitérios estão lotados de representantes desses mundos brutalizantes, compondo dejetos sedimentados.

Não se enganem, não se fascinem com seus jardins.
Essas autoridades vorazes devoram mesmo seus admiradores mais leais.
Também condicionam e encarceram.
Te possuem e te governam. 

 

Notas e Referências: 

[1] PIRES, Guilherme Moreira. Epílogo. Piratas e Mapas. In: CORDEIRO, Patrícia; PIRES, Guilherme Moreira. Abolicionismos e Cultura Libertária: inflexões e reflexões sobre Estado, democracia, linguagem, delito, ideologia e poder. Florianópolis: Empório do Direito, 2017.

FERRER, Christian. Cabezas de Tormenta: ensayos sobre lo ingovernable. Buenos Aires: Utopia Libertaria, 2006.

 

Imagem Ilustrativa do Post: El pirata // Foto de: Dani Vázquez // Sem alterações

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