Coluna ABDPRO
Para Alfredo Buzaid,1 a palavra “crise” advém do grego e tem sentido próprio em patologia; em sentido figurado, geralmente, significa estado de perturbação e mau funcionamento do órgão ou da função. Antigamente, existiu a crise do Supremo Tribunal Federal. De alguns anos para cá, o tema da vez é a crise do Superior Tribunal de Justiça, denominado Tribunal da Cidadania. Mas esta crise também se evidencia no Poder Judiciário como um todo, pela quantidade de ações em andamento na Primeira Instância, tanto nos tribunais estaduais quanto federais.
A questão federal para o recurso especial ainda pode ser qualificada como simples e, portanto, para que o recurso especial seja admitido, é desnecessário demonstrar que a mesma ostenta repercussão geral, fato que a diferencia da questão constitucional que, por sua vez, deve ser qualificada para que o recurso extraordinário seja admitido, em razão da existência da repercussão geral.2
Com iminente aprovação da PEC 10/20173 pelo Senado Federal, estará prejudicado o direito do jurisdicionado, que tem garantido pela Constituição Federal o amplo acesso à justiça. Diz-se amplo, pois demanda a possibilidade de ver o seu direito individual analisado e reconhecido pelo STJ.
Existem outras preocupações sobre a possível aprovação da PEC 10/2017, sendo algumas delas abordadas por Luciano de Souza Godoy. A primeira refere-se aos casos de direito privado que, dificilmente, serão avaliados pelo STJ, se a decisão de Segunda Instância estiver baseada em provas. Será a confirmação majestática da Súmula 7 do STJ (“A pretensão de simples reexame de prova não enseja recurso especial”). Casos julgados com base em provas (documental, testemunhal ou pericial) não apresentarão, em regra, a relevância exigida; cada caso é um caso, uma vez que as peculiaridades da prova lhe conferem um conteúdo único.4
Diferentemente da repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso extraordinário, a inserção da relevância da questão federal como requisito de admissibilidade do recurso especial atingirá, com muito mais frequência, os direitos dos cidadãos, visto que a legislação infraconstitucional trata de questões bem mais corriqueiras do que as constitucionais, como por exemplo: direito civil, direito do consumidor, direito comercial, direito previdenciário, direito bancário, direito securitário, direito penal, etc.
Em 15/03/2017, a Comissão de Constituição e Justiça e Cidadania da Câmara dos Deputados (CCJ) aprovou a PEC 10/2017, fazendo-a, no entanto, conforme o texto original, e não de acordo o substitutivo apresentado. Em 20/03/2017, a matéria foi encaminhada ao Senado5 para aprovação. Desde 19/02/2019, o projeto está com o senador Rodrigo Pacheco para emissão do relatório final.
O texto a ser aprovado refere que “§1.º - No recurso especial, o recorrente deverá demonstrar a relevância das questões de direito federal infraconstitucional discutidas no caso, nos termos da lei, a fim de que o Tribunal examine a admissão do recurso, somente podendo recusá-lo pela manifestação de dois terços dos membros do órgão competente para o julgamento”.
Oportuno registrar a insatisfação da advocacia, em relação a todo e qualquer filtro recursal que possa ser utilizado para obstar a análise do mérito de determinado recurso (direito) levado a juízo envolvendo o caso concreto. A OAB, inclusive, manifestou-se contrária à proposta, referindo que: ”De acordo com o pensamento do Prof. ARRUDA ALVIM, a criação do Superior Tribunal de Justiça haveria de representar forma de ampliar - jamais de restringir - a tutela jurisdicional, com vistas à preservação da unidade do direito federal. O que se pretende, agora, é exatamente o contrário. Segundo se pode ver do trecho da justificação da PEC, acima transcrito, o que esta almeja, no fundo, é ressuscitar o velho instituto da arguição de relevância da questão federal, o qual seria regulado em lei, a partir da noção adrede fixada de que como tal haver-se-á de considerar a questão que apresente repercussão geral. E isto como meio de reduzir a apreciação de recursos especiais pelo Superior Tribunal de Justiça”.6
Estamos cientes de que boa parte da doutrina, além da totalidade dos Ministros do STJ (por razões óbvias), defende a necessidade de que a Corte Superior, denominada como Tribunal da Cidadania (não sabemos até quando tal adjetivo será mantido), julgue casos que não se restrinjam ao caso concreto (tutela individual), mas que tenham reflexo na tutela objetiva e influenciem diretamente outros casos idênticos; contudo, quanto mais filtros, mais violado será o direito constitucional do amplo acesso à Justiça.
Em aditamento ao voto da Proposição n.º 49.0000.2012.009403-3/COP7, em que o Conselho Federal da OAB se manifestou sobre a repercussão geral nos recursos especiais, sabiamente, o professor José Miguel Garcia Medina trouxe importantíssima sugestão sobre a possibilidade de se afastar a necessidade de tal preliminar nos recursos especiais fundados em dissídio jurisprudencial (Constituição, art. 105, III, “c”).8 Tal sugestão é oportuna, uma vez que o fundamento desta hipótese recursal é exatamente trazer uniformidade para o direito, sendo despicienda qualquer tipo de questão preliminar de relevância da questão federal.
Sob este ponto de vista, pode ser inconveniente a adoção da relevância da questão federal como filtro de admissibilidade para o recurso especial, pois o STJ deixaria de se pronunciar sobre muitas questões federais que atingem toda a população. Além disso, são temas que acabam por apresentar grande divergência na sua interpretação, em todo o amplo território nacional. A particular atenção do constituinte a este tema, ao criar o recurso especial por divergência jurisprudencial, restaria maculada, possivelmente. Desse modo, justamente a missão constitucional do STJ (unificação da interpretação federal) poderia restar desatendida.9
Sobre a controvérsia, Arlete Inês Aurelli e Izabel Cristina Pinheiro Cardoso Pantaleão demonstram ser “a favor da aprovação da repercussão geral para o recurso especial, mas não do jeito que se encontra hoje nas propostas já comentadas, sob pena de reduzir-se a possibilidade de se interpor o recurso, ferindo, assim, o consagrado princípio da inafastabilidade da tutela jurisdicional, um dos basilares da nossa Constituição cidadã”.10
No mesmo sentido é a crítica de Tiago Asfor Rochal Lima e Lucas Asfor Rocha Lima, ao referirem que a exigência da demonstração da relevância das questões de direito federal, pelo menos da forma como está posta na PEC 209/2012, é um contributo para a insegurança jurídica, a incerteza da aplicação do direito, depõe contra o conceito de federalismo e pode retirar do STJ a principal função que lhe foi conferida pela ordem constitucional: uniformizar a interpretação de normas federais infraconstitucionais.11
Temos a singela impressão de que muitos casos (mesmo que em percentual baixo, se comparado à quantidade de recursos existentes na Corte Superior) que não teriam a menor chance de sequer chegar ao STJ, se já houvesse sido implementada a relevância da questão federal, foram salvos de um julgamento equivocado pelos tribunais estaduais e federais, que também sofrem com a crise e abarrotamento do Poder Judiciário.
Aprovar mais este filtro recursal, ao invés de pensar em aumentar o número de ministros (e por que não de assessores?), por exemplo, é quase reduzir, substancialmente, as mínimas chances ainda existentes de melhor análise do caso concreto do jurisdicionado, pois aquele caso individual do cidadão, por mais que não tenha reflexo no direito objetivo e influencie outras ações análogas, muitas vezes, é tudo no qual acredita e, portanto, deverão ser observadas todas as garantias constitucionais e processuais para que se possa ter uma decisão justa.
No site do Senado Federal, há a possibilidade de participar e opinar, votando “sim” ou “não” acerca do projeto,12 onde já deixei registrado o meu ponto de vista em defesa de manter o adjetivo CIDADANIA ao STJ. E você? O que pensa disso?
Notas e Referências
1 BUZAID, Alfredo. A crise do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Processual Civil, v. 3, n. 6, p. 25-58, jul./dez., 1962, p. 39.
2 MEDINA, José Miguel Garcia. Prequestionamento, repercussão geral da questão
constitucional, relevância da questão federal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 120.
3 Na Câmara dos Deputados, o PEC possui o n.º 209/2012
4 GODOY, Luciano de Souza. Da relevância da questão federal ao foro privilegiado: o foro privilegiado no STJ. 2017. Disponível em: <https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/luciano- godoy/da-relevancia-da-questao-federal-ao-foro-privilegiado-03052017>. Acesso em: 18 jun. 2019.
5 SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda à Constituição n.º 10, de 2017. 2019. Disponível em:
<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128403>. Acesso em: 10 jun. 2019.
6 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Proposição n.º 49.0000.2012.009403-3/COP. 2012. Disponível em: <https://www.oab.org.br/arquivos/pec-da-repercussao-geral-no-stj-voto-no- pleno.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2019
7 Ementa n.º /2012/COP: Proposta de Emenda Constitucional instituindo o incidente de Repercussão Geral no Recurso Especial para o Superior Tribunal de Justiça. Manifestação contrária do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, em virtude da restrição que isso importaria no acesso ao STJ, renegando, mesmo, a razão histórica determinante da criação desse Tribunal Superior pela Constituição de 1988. Amplitude que devem ter, em tese, os recursos de natureza extraordinária para o Supremo Tribunal Federal e o Superior Tribunal de Justiça, dado o seu fim precípuo, que é o de manter a unidade do direito federal.
8 ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Proposição n.º 49.0000.2012.009403-3/COP. 2012.
Disponível em: <https://www.oab.org.br/arquivos/pec-da-repercussao-geral-no-stj-voto-no- pleno.pdf>. Acesso em: 18 jun. 2019.
9 SERAU JUNIOR, Marco Aurélio; DONOSO, Denis. Recurso Especial: aprovação da relevância da questão federal como requisito de admissibilidade. 2017. Disponível em:
<https://emporiododireito.com.br/leitura/recurso-especial-aprovacao-da-relevancia-da-questao- federal-como-requisito-de-admissibilidade-por-marco-aurelio-serau-junior-e-denis-donoso>. Acesso em: 18 jun. 2019.
10 AURELLI, Arlete Inês; PANTALEÃO, Izabel Cristina Pinheiro Cardoso. A repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso especial - Medida adequada? In: NERY JUNIOR, Nelson;
ALVIM, Teresa Arruda. (Coord.). Aspectos Polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 45-75.
11 LIMA, Tiago Asfor Rocha; LIMA, Lucas Asfor Rocha. A relevância da questão federal para o STJ: problema ou solução? In: O papel da jurisprudência no STJ. GALOTTI, Isabel. et al. (Coord.). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 825-834.
12 Antes de finalizar este artigo, consultei o site e consta no placar: 31 votos para SIM e 90 para NÃO. Ora, vivemos ou não em uma Democracia? SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda à Constituição n.º 10, de 2017. 2019. Disponível em:<https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128403>. Acesso em: 24 jun. 2019.
AURELLI, Arlete Inês; PANTALEÃO, Izabel Cristina Pinheiro Cardoso. A repercussão geral como requisito de admissibilidade do recurso especial - Medida adequada? In: NERY JUNIOR, Nelson; ALVIM, Teresa Arruda. (Coord.). Aspectos Polêmicos e atuais dos recursos cíveis e assuntos afins. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
BUZAID, Alfredo. A crise do Supremo Tribunal Federal. Revista de Direito Processual Civil, v. 3, n. 6, p. 25-58, jul./dez., 1962.
GODOY, Luciano de Souza. Da relevância da questão federal ao foro privilegiado: o foro privilegiado no STJ. 2017. Disponível em:
<https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/luciano-godoy/da-relevancia-da- questao-federal-ao-foro-privilegiado-03052017>. Acesso em: 18 jun. 2019.
LIMA, Tiago Asfor Rocha; LIMA, Lucas Asfor Rocha. A relevância da questão federal para o STJ: problema ou solução? In: GALOTTI, Isabel. et al. (Coord.). O papel da jurisprudência no STJ. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014.
MEDINA, José Miguel Garcia. Prequestionamento, repercussão geral da questão constitucional, relevância da questão federal. 7. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017.
ORDEM DOS ADVOGADOS DO BRASIL. Proposição n.º 49.0000.2012.009403-3/COP. 2012. Disponível em: <https://www.oab.org.br/arquivos/pec-da-repercussao- geral-no-stj-voto-no-pleno.pdf>. Acesso em: 18 jun. 2019.
SENADO FEDERAL. Proposta de Emenda à Constituição n.º 10, de 2017. 2019. Disponível em: <https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128403>. Acesso em: 24 jun. 2019.
SERAU JUNIOR, Marco Aurélio; DONOSO, Denis. Recurso Especial: aprovação da relevância da questão federal como requisito de admissibilidade. 2017. Disponível em: <https://emporiododireito.com.br/leitura/recurso-especial-aprovacao-da- relevancia-da-questao-federal-como-requisito-de-admissibilidade-por-marco-aurelio- serau-junior-e-denis-donoso>. Acesso em: 18 jun. 2019
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