ABDPRO #81 - Como os cooperativistas explicariam a obligatio romana? ENSAIO – parte 1

17/04/2019

Coluna ABDPRO

 

Como é notório, o direito obrigacional goza de importância ímpar. Santo Tomás de Aquino escreveu que “a palavra devido implica uma certa ordem de exigência ou necessidade de um ser em relação a outro, ao qual se ordena. Ora há uma dupla ordem a se considerar nas coisas. Uma, pela qual uma criatura se ordena para outra; assim, as partes, ao todo, os acidentes, às substâncias, e cada coisa, ao sem fim. Outra, pela qual todas as criaturas se ordenam para Deus. Por onde, o devido também pode ser considerado à dupla luz, quanto à obra divina. Ou enquanto algo é devido a Deus, ou, a uma criatura. E de um e outro modo, Deus paga o devido. Pois, é devido a Deus o cumprirem os seres aquilo que sua sapiência e a sua vontade estabeleceram e que manifesta a sua bondade. E deste modo a justiça de Deus concerne à sua dignidade, atribuindo-se a si o que lhe é devido” [SANTO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica, v.1 (Ia pars). Trad. Alexandre Correia. Campinas: Ecclesiae, 2016, p. 182]. Vislumbrando justamente esses trechos da Suma Teológica, notou António Manuel Hespanha que “como existe uma ordem entre as criaturas que cria dívidas recíprocas entre elas, pode dizer-se que as relações estabelecidas nessa ordem constituem deveres. E, logo, que a ordem institui um direito, um direito natural. E como a soma dos deveres das criaturas entre si é também devida à ordem, ou seja, a Deus, o cumprimento dos deveres recíprocos é, em certa medida, um dever para com Deus e, logo, o tal direito natural acaba por ser um direito divino” [HESPANHA, António Manuel. Cultura Jurídica Europeia. Coimbra: Almedina, 2017, p. 110]. Pela importância tomista que se dá ao debitum, já se nota a carga cultural do direito obrigacional. É recorte epistêmico que denuncia o espectro axiológico de toda uma civilização.

Em 1851, Lourenço Trigo de Loureiro escreveu que é possível definir a obrigação como um vínculo jurídico, que nos liga de um modo “que nos põe na necessidade de fazer, ou deixar de fazer alguma cousa segundo as Leis” [LOUREIRO, Lourenço Trigo de. Instituições de Direito Civil Brasileiro, extrahidas das Instituições do Direito Civil Lusitano do eximio jurisconsulto portuguez Paschoal José de Mello Freire, na parte compatível com as instituições da nossa cidade e augmentadas nos lugares competentes com a substancia das leis brasileiras, t. II. Recife: Typographia Commercial de Meira Henriques, 1851, p. 120]. Os civilistas clássicos realmente se apegavam a essa ideia de impor uma “limitação” ou uma “necessidade”... Clóvis Beviláqua escreveu – com o vernáculo de seu tempo – que “na idéa de obrigação, facilmente descobre a analyse dois elementos essenciaes: a limitação, o encadeamento da liberdade psychica, refreiando a expansão da personalidade, e, concomitantemente, um estímulo que vem determinar a vasão, por um determinado sulco, das energias assim refreiadas. O primeiro desses dois elementos, de acção negativa, age sobre o nosso espirito, falando á razão e ao sentimento, para nelle impedir o surto de volições contrarias ás que vier a provocar o segundo elemento, ou para que sejam sacrificadas as que, não obstante, sobrenadarem na mente agitada, em ordem a que não transponham as orlas do mundo psychico, externando-se por factos. Da combinação dessa força inhibitoria, com esse estimulo, resulta o estado de consciência, a que se dá o nome de — obrigação, — o qual só apparece, nitido e vigoroso, nos caracteres equilibrados e fortes, porque, sómente nesses, a bôa orientação da intelligencia e das emoções permitte a disciplina da vontade. [...]. Não basta, por consequencia, dizer que obrigação é necessidade moral de agir; é preciso accrescentar: — é a necessidade moral de agir de um determinado modo” [BEVILÁQUA, Clóvis. Direito das Obrigações. 5.ª ed. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1940, p. 11-12].

Enquanto o direito natural tratou a obrigação como uma “necessidade correlata ao Direito” (jus est obligatio sunt correlata), o Direito Romano não seguiu esse princípio na sua inteireza. A expressão obligatio “não corresponde em Direito Romano a essa necessidade”, sendo que “foi só na epocha classica, no 3.º periodo da historia do Direito Romano que se consagrou a expressão ou vocábulo — obligatio. Na Lei das XII taboas não encontramos essa palavra, mas a expressão — nexum, que exprime a mesma idéa ennunciada pelos Jctos Romanos no termo — oblitatio. Com effeito, a obligatio é caracterisada por um vinculo que prende o sujeito activo e sujeito passivo de uma relação juridica, e a expressão nexus vem do verbo nectere, que significa ligar, atar. Os Jctos Romanos, portanto, ligavão ao vocábulo obligatio o mesmo sentido que as fontes antigas ennunciavão pela expressão nexus” [PINTO JUNIOR, João José. Curso Elementar de Direito Romano. Pernambuco: Typographia Economica, 1888, p. 49].

Nas Institutas de Justiniano, constou que “obligatio est vinculum juris quae necessitate adstringimur, alicujus solvendae rei, secundum nostrae civitatis juris”. Há muito os estudiosos de direito romanístico já criticavam a redação das Institutas (nesse particular de definição da obrigação): segundo João José Pinto Junior (com o vernáculo da época), há, nela, “uma idéa preconcebida pelo legislador e que não se acha expressa na definição — a idéa do dever. Completão os commentadores esta definição, introdusindo a pessoa do titular da obrigação, e aquelle em favor de quem se deve fazer a prestação. Na obrigação se deve distinguir o credor do devedor e o vinculo do Direito; mas, além desse terceiro elemento devemos tambem fallar da prestação” [PINTO JUNIOR, João José. Curso Elementar de Direito Romano. Pernambuco: Typographia Economica, 1888, p. 50]. Maria Helena Diniz oferece a seguinte tradução: “a obrigação é um vínculo jurídico, pelo qual somos compelidos pela necessidade de pegar a alguém qualquer coisa, segundo os direitos de nossa cidade”. E também ela noticia a crítica dada ao texto justinianeu: “nessa definição há falhas relativas ao objeto, não só porque há obrigações que não têm por fim o pagamento de uma coisa, mas também porque não se especifica se esse objeto é material ou imaterial” [DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro – Teoria Geral das Obrigações. 21.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2006, p. 31]. Antes, Miguel Maria de Serpa Lopes avisara: “nesse modo de definir, nota-se uma falha em relação ao seu objeto — alicuius solvendae rei — por isso que há obrigações que se destinam ao pagamento de uma res concebida como coisa material” [SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil – obrigações em geral. 2.ª ed. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1957, p. 10].

Orlando Gomes, igualmente, comentou esse trecho das Institutas: “conquanto mereça, ainda, aplausos dos civilistas, o conceito não é inteiramente satisfatório em razão das interpretações que comporta a expressão ‘solverem rem’. Tomada no sentido literal e restrito de pagar uma coisa, não abrange todas as espécies de obrigação; na acepção ampla da prestação, compreende todos os deveres jurídicos. Admite-se, no entanto, que a expressão se refere a todas as prestações patrimoniais” [GOMES, Orlando. Obrigações. 17.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 17].

Realmente. Silvio Rodrigues parece ter levado em conta, diretamente (digamos assim), que o texto abrangeria apenas prestações de cariz patrimonial. Ele ofereceu a seguinte tradução: “diz o texto justinianeu tratar-se de um vínculo de direito que compele alguém (devedor) a fornecer uma prestação (alicujus solvendae rei), segundo o direito do país. Com efeito, na idéia de obrigação apresentam-se três elementos conceituais: vínculo jurídico; as partes na relação obrigatória, isto é, credor e devedor; um objeto da prestação devido por uma à outra” [RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – parte geral das obrigações. 30.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 4].

É “a patrimonialidade [que] revela o caráter econômico do direito obrigacional, que procura regular as relações jurídicas que visam à transferência ou restituição da posse ou propriedade de bens móveis e imóveis (obrigação de dar), ou por vezes exigir uma determinada atitude de outrem (obrigação de fazer), ou, mesmo, a inação, o que releva a possibilidade de uma obrigação inativa (obrigação de não fazer)” [MEDINA, José Miguel Garcia; ARAÚJO, Fábio Caldas de. Código Civil Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 277].

Paulo Nader – que reconhece a antiga divergência doutrinária sobre haver ou não necessária patrimonialidade no direito obrigacional – assevera que “os direitos subjetivos privados não patrimoniais são de duas categorias: personalíssimos e familiais. Tais direitos se apresentam, naturalmente, em relações jurídicas, onde o sujeito passivo apresenta dever jurídico e não uma obrigação. O fato de alguém violar o dever jurídico de respeitar a honra alheia, que não apresenta valor econômico, constitui fato jurídico que instaura uma outra relação jurídica, já de natureza obrigacional, onde o sujeito passivo deve reparar a lesão moral provocada, mediante o pagamento de uma importância a ser estimada pelo juiz condutor da causa. O elemento econômico figura na relação obrigacional autônoma ou derivada. A primeira modalidade, por exemplo, se faz presente em um contrato de locação, enquanto a obrigação de ressarcimento por dano à honra exemplifica a relação obrigacional derivada. Neste caso, a obrigação de indenizar decorre da violação do dever de respeitar a honra alheia” [NADER, Paulo. Curso de Direito Civil – Obrigações. 8.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016. Livro eletrônico].

Parece preponderar, mesmo, que a obrigação civil encerra um plexo situacional de cariz patrimonial. Segundo Dilvanir José da Costa, a obrigação seria vínculo jurídico (vinculum juris) “de natureza econômica ou cujo conteúdo possa se converter em dinheiro”, distinguindo-se “das obrigações no âmbito do direito de família, a começar pelo vínculo matrimonial, do qual decorre um complexo de obrigações de natureza não econômica ou supra-econômica, a exemplo do dever de fidelidade”. E “mesmo a obrigação de prestar alimentos, embora de conteúdo econômico, não contém os caracteres do econômico tipicamente obrigacional: o caráter irrenunciável dos alimentos afasta essa obrigação do direito obrigacional, onde predomina a autonomia da vontade” [COSTA, Dilvanir José da. O Conceito de Obrigação Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 30, n.º 117, jan./mar. 1993, p. 352].

As fontes lusitanas mostram bem a influência romanística (e a longa história da divergência). O artigo 397.º do Código Civil de Portugal, p. ex., conceitua a obrigação como “o vínculo jurídico por virtude do qual uma pessoa fica adstrita para com outra à realização de uma prestação”. Depois, o item n.º 2 do artigo 398.º diz: “a prestação não necessita de ter valor pecuniário; mas deve corresponder a um interesse do credor, digno de protecção legal”.

Ainda que não haja unanimidade a respeito da distinção entre debitum e obligatio (e há até quem conteste a utilidade da diferenciação – José Fernando Simão defende que a chamada “teoria dualista do vínculo” é, sim, útil para explicar as noções de vínculo jurídico do Código Civil brasileiro [SIMÃO, José Fernando. A teoria dualista do vínculo obrigacional e sua aplicação ao direito civil brasileiro. In: CHUAHY DE PAULA, Fernanda Pessoa; MENEZES, Iure Pedroza; CAMPELLO, Nalva Cristina Barbosa (orgs.). Direito das obrigações: reflexões no direito material e processual. São Paulo: Método, 2011, v. 1, p. 253]), é de bom alvitre posicionar, aqui, uma diferença entre tais categorias jurídicas.

A princípio, haverá coincidência entre debitum e obligatio. Mas há a possibilidade de baralhar a presença (e a falta) de um e de outro. Analiticamente, quatro situações obrigacionais são possíveis: a) de debitum sem obligatio; b) de obligatio sem debitum próprio; c) de obligatio sem debitum atual; d) de debitum sem obligatio própria [GOMES, Orlando. Obrigações. 17.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 19].

Exemplo de debitum sem obligatio: uma obrigação natural.

Exemplo de obligatio sem debitum próprio: uma garantia real oferecida por terceiro.

Exemplo de obligatio sem debitum atual: uma fiança (onde o fiador é responsável, sem débito atual. A obligatio nasce antes do debitum).

Exemplo de debitum sem obligatio própria: uma obrigação imperfeita, garantia por um terceiro [GOMES, Orlando. Obrigações. 17.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 19].

Os alemães chamaram debitum de Schuld e obligatio de Haftung. E foi Alois Brinz “que no fim do Século XIX, fazendo uma releitura das fontes romanas, desenvolveu a chamada teoria dualista do vínculo pela qual este se decompõe em dois elementos”, i. e., dívida (Schuld ou debitum) e responsabilidade (Haftung ou obligatio) [SIMÃO, José Fernando. A teoria dualista do vínculo obrigacional e sua aplicação ao direito civil brasileiro. In: CHUAHY DE PAULA, Fernanda Pessoa; MENEZES, Iure Pedroza; CAMPELLO, Nalva Cristina Barbosa (orgs.). Direito das obrigações: reflexões no direito material e processual. São Paulo: Método, 2011, v. 1, p. 241].

Jusnaturalistas e positivistas concordam que há dois momentos da obrigação civil: o primeiro é de debitum (Schuld). O segundo é o de obligatio (Haftung). Mais didaticamente, Dilvanir José da Costa propôs a divisão em momentos: no primeiro momento, há o débito, a dívida (Schuld) – “momento interno, correspondente à consciência do devedor de que deve pagar e do credor de que pode exigir determinada prestação”. No segundo momento, há a responsabilidade ou garantia (Haftung) – “momento externo ou material, correspondente ao poder de agressão ao patrimônio do devedor”.

A divergência mesmo estava em saber qual dos momentos predominariam para a caracterização da obrigação civil. O que Alois Brinz defendeu – e o seu ponto de vista é positivista – foi a caracterização da obrigação civil como “a garantia ou responsabilidade” [COSTA, Dilvanir José da. O Conceito de Obrigação Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 30, n.º 117, jan./mar. 1993, p. 353]. Nessa concepção, sintetiza Fábio Konder Comparato, “não há na obrigação uma pessoa que deve, mas, sim, alguém ou algo que responde. Compreende-se muito bem, então, que a prestação não possa nunca ser para Brinz o objeto de uma obrigação, pois, como a prestação poderia ser, ao mesmo tempo, objeto da responsabilidade e objeto pelo qual se responde? Deve-se, portanto, considerá-la simplesmente como o ‘porquê’ (wofür) da responsabilidade, como seu motivo ou sua razão de ser. Além disso, a obrigação entendida como responsabilidade não é uma relação estática, mas recebe, ao contrário, uma evolução ao longo de sua existência. O débito (Schuld), para Brinz, é somente uma fase da responsabilidade, um estágio ulterior desta, caracterizado pela exigibilidade” [COMPARATO, Fábio Konder. Essai d'analyse dualiste de l'obligation en droit privé. Paris, Dalloz, 1964, p. 10. Segui a tradução de Maurício Baptistella Bunazar].

A bem da verdade, o jeito mais didático de explicar a diferença entre um e outro acabará abraçando o direito processual. A dívida “pura” (débito, Schuld ou debitum) abarca o vínculo jurídico propriamente dito entre o credor e o devedor. Há um liame jurídico entre eles: um fato jurídico qualquer, como um contrato (negócio jurídico), existe tendo credor e devedor. No âmbito situacional (leia-se: feixe eficacial do fato jurídico), há a carga obrigacional. Simples assim. A possibilidade de manejar coerção estatal ou jurisdicional contra um patrimônio, porém, significa um espectro bem peculiar desse campo situacional: aí há a categoria da exigibilidade (responsabilidade, Haftung ou obligatio).

Por isso, numa compra e venda qualquer entre A (credor do dinheiro) e B (devedor do dinheiro), este último terá, em regra, Schuld (débito) e Haftung (responsabilidade). Se quedar inadimplente, provavelmente será condenado em juízo a ressarcir o credor A, sobrevindo título judicial que confere força eficacial executiva para atacar o patrimônio do devedor até que a dívida seja satisfeita. É o que ocorre na maioria dos casos.

Mas é possível Schuld sem Haftung; além de Haftung sem Schuld. Exemplo de Schuld sem Haftung seria o caso de uma dívida de jogo: “as dívidas de jogo ou de aposta”, diz o art. 814, caput, do Código Civil, “não obrigam a pagamento; mas não se pode recobrar a quantia, que voluntariamente se pagou”. Aí há dívida: o sistema jurídico não nega a existência de Schuld (débito), tanto que assevera que, se se pagar a tal dívida, então não caberá repetição (porque não há indébito). Mas afasta a possibilidade de Haftung (responsabilidade). O mesmo ocorre com a prescrição: o sujeito que é devedor de uma dívida com pretensão prescrita continua sendo devedor... Mas a pretensão, dilacerada por tal fato jurídico stricto sensu, retira a obligatio: mais uma vez, Schuld sem Haftung (ou debitum sem obligatio, tanto faz).

O contrário, como se afirmou, também ocorre: Hatung sem Schuld. Aqui é só lembrar do caso de um ato ilícito praticado por um menor. Se uma criança travessa resolve explodir uma bomba no pátio da escola, causando danos ao piso da quadra, o responsável civil – seus pais – terá responsabilidade (Haftung), embora não sejam, rigorosamente falando, devedores (Schuld). Mais um caso clássico de Haftung sem Schuld (ou obligatio sem debitum, tanto faz).

Agora fica mais claro os exemplos dados por Orlando Gomes e que foram anteriormente citados [GOMES, Orlando. Obrigações. 17.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 19]: a obrigação natural traz caso de Schuld sem Haftung. A garantia real oferecida por terceiro perfaz Haftung sem Schuld própria. O fiador é alguém com Haftung sem Schuld atual (sua obligatio nasce antes do debitum) (“pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra”, art. 818 do Código Civil). Finalmente, uma obrigação imperfeita, garantia por um terceiro, abrange situação de Schuld sem Haftung própria.

Não foi com essas palavras acima (que são de nossa autoria) que José Carlos Moreira Alves descreveu o fenômeno, mas a lição do eminente romanista é bastante pertinente nessa altura: “Brinz, estudando a obrigação no direito romano, chegou à conclusão de que ela se decompunha em dois elementos – o debitum (débito; Schuld) e a obligatio (responsabilidade; Haftung) – que, além de surgirem em momentos diversos (o debitum, desde a formação da obrigação; a obligatio só posteriormente, caso o devedor não realize a prestação devida), são substancialmente diferentes: o debitum é um elemento não coativo (o devedor é livre para realizar, ou não, a prestação); a obligatio é um elemento coativo (se o devedor não realiza a prestação, surge para ele a responsabilidade decorrente do inadimplemento). Esses dois elementos podem referir-se a pessoas diferentes (assim, no antigo direito romano, havia o contrato de praediatura, em que o debitum cabia ao manceps, e a obligatio – que surgia se o manceps, que era o devedor, não efetuasse a prestação –, a um terceiro, o praes, que seria responsabilizado pelo inadimplemento por parte do manceps), ou a uma única pessoa (o que, geralmente, ocorria nas obrigações, nos períodos clássico e pós-clássico, nas quais devedor e responsável são uma pessoa só). Para Brinz, portanto, ao lado da obligatio rei (como sucede no penhor, em que a coisa empenhada responde pelo débito), existia a obligatio personae (primitivamente, era o próprio corpo do devedor que respondia pelo débito; mais tarde, a responsabilidade se deslocou para o patrimônio do devedor), abrangidas ambas num conceito único: relação pela qual uma coisa ou uma pessoa é destinada a servir de satisfação ao credor por uma prestação. De onde se verifica que, segundo Brinz, o elemento responsabilidade patrimonial ou pessoal não é eventual, nem é subordinado ao elemento dever de prestação (debitum) – como afirma a doutrina tradicional –, mas exatamente o oposto. Essa tese teve grande aceitação, e vários autores procuraram demonstrar que situação idêntica se verifica em outros direitos antigos (assim, por exemplo, no germânico, no assírio-babilônico, no longobardo) e no próprio direito moderno” [MOREIRA ALVES, José Carlos. Direito Romano. 18.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018. Livro eletrônico].

Enfim: é esse “elemento coativo” que traz a diferença entre Schuld, de um lado, e Haftung, de outro. Miguel Maria de Serpa Lopes escreveu, justamente, que “a responsabilidade, no direito germânico, é a subordinação ao poder de agressão, ou seja ao direito de agir por parte do não satisfeito na prestação que lhe devera de ter sido prestada. O objeto da responsabilidade pode ser uma pessoa, uma coisa ou um patrimônio, de onde a distinção entre a responsabilidade da coisa ou real, da responsabilidade pessoal e a patrimonial” [SERPA LOPES, Miguel Maria de. Curso de Direito Civil – obrigações em geral. 2.ª ed. São Paulo: Livraria Freitas Bastos, 1957, p. 15]. Na prática, há quem prefira vislumbrar uma fusão de ambos: “los tratadistas alemanes del siglo pasado al estudiar estos aspectos de la obligación, em alemán, schuld (deuda) y haftung (responsabilidad), – que em el nexum recaían sobre dos personas distintas –, llegaron a la conclusión de que en el momento em que ambos se fusionaron para incidir em uma sola persona – el deudor –, nació el concepto unitario de obligación que actualmente conecemos” [IDUARTE, Marta Morinea; GONZÁLEZ, Román Iglesias. Derecho romano. San Rafael: Oxford University Press México, 1998, p. 144].

Na verdade, os processualistas não foram tão receptivos com a colocação de Brinz. Eles “reagiram contra a inclusão da garantia como elemento da obrigação. Para eles, a responsabilidade ou poder de agressão de projeção do credor sobre o patrimônio do devedor, a fim de tornar efetiva a prestação, confunde-se com a ação judicial, que é o direito público subjetivo e autônomo de provocar o pronunciamento do Estado, diante da contestação e da violação de um direito subjetivo” [COSTA, Dilvanir José da. O Conceito de Obrigação Civil. Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 30, n.º 117, jan./mar. 1993, p. 353-354]. Mas afirma-se, mesmo entre os civilistas, que os “processualistas, fundados nessa distinção, têm procurado sustentar que o elemento dívida (Schuld) é de direito privado; o elemento responsabilidade (Haftung) é instituto de direito processual” [RODRIGUES, Silvio. Direito Civil – parte geral das obrigações. 30.ª ed. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 6].

Mas é sabido que a teoria dualista, tão bem desenvolvida pelos alemães, acabou tendo muito sucesso. Foi largamente aceita, p. ex., pela legislação francesa [cf. CUMYN, Michelle. Responsibility for Another’s Debt: Suretyship, Solidarity, and Imperfect Delegation. McGill Law Journal, 55 (2), 2010, p. 227]. Essa concepção é extremamente famosa: encontrei-a, inclusive, num trabalho de doutoramento da Sérvia (Belgrado), de Marko S. Perović [PEROVIĆ, Marko S. Solidarnost dužnika u obligacionim odnosima. Universidade de Belgrado, 2018].

Depois deste pequeno e humilde esforço, gostaria de tecer algumas considerações sobre o que vem se chamando de “cooperativismo processual”. O que peço encarecidamente ao leitor é que não seja ignorado o caráter coercitivo da obligatio romana (a Haftung de Brinz).

Constou do art. 6.º do Código de Processo Civil que “todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva”. A doutrina entusiasta costuma afirmar que ao juiz foi imposto alguns “deveres”: i) esclarecimento; ii) lealdade; iii) diálogo; iv) consulta; v) prevenção; e vi) auxílio. Diz Daniel Mitidiero que “juiz tem deveres de esclarecimento, de diálogo, de prevenção e de auxílio para com os litigantes”, e “é assim que funciona a cooperação” [MITIDIERO, Daniel. A Colaboração como Modelo e como Princípio no Processo Civil. Disponível em: https://goo.gl/1KpDrS. Acesso em 20 mar. 2019]. Esse linguajar foi brilhantemente questionado por Diego Crevelin de Sousa, num texto antológico que imputou ao modismo uma “dobra de linguagem”: “falar de tais deveres”, diz o nosso autor, “é promover nada mais é que uma dobra de linguagem completamente dispensável. O mesmo pode ser dito do dever de auxílio, se entendido como cumprimento de deveres funcionais judicantes (que, a rigor, nada tem de auxílio). Mas se for entendido como autorização para o juiz exercer função de parte e/ou de advogado (quando, de fato, presta auxílio), aí sim teremos institutos novo e autônomo, dotado de conteúdo, regime e efeitos próprios, justificando-se epistemologicamente. Encerrará ganho político, como acima adiantado, pois redefinirá os poderes do juiz no processo, o que é próprio de uma teoria política do poder (definir quem pode fazer). Será, contudo, de acachapante inconstitucionalidade, ante a violação, no mínimo, das garantias do contraditório e da imparcialidade, o que impõe sua reprovação dogmática e proscrição do foro” [SOUSA, Diego Crevelin de. O caráter mítico da cooperação processual. Empório do Direito, Florianópolis, dez. 2017. Disponível em: https://goo.gl/Er4Mxy. Acesso em 20 mar. 2019].

A categoria da obligatio, como visto, envolve o avanço coercitivo sobre os bens do devedor. De acordo com Orlando Gomes, “ao se decompor uma relação obrigacional, verifica-se que o direito de crédito tem como fim imediato uma prestação, e remoto, a sujeição do patrimônio do devedor. Encarada essa dupla finalidade sucessiva pelo lado passivo, pode-se distinguir, correspondentemente, o dever de prestação, a ser cumprido espontaneamente, da sujeição do devedor, na ordem patrimonial, ao poder coativo do credor. Analisada a obrigação perfeita sob essa dupla perspectiva, descortinam-se os dois elementos que compõem seu conceito. Ao dever de prestação corresponde o debitum, à sujeição a obligatio, isto é, a responsabilidade. A esta responsabilidade patrimonial empresta-se grande importância no direito moderno, a ponto de se infirmar que a obrigação é uma relação entre dois patrimônios” [GOMES, Orlando. Obrigações. 17.ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008, p. 18-19].

Esse avanço coercitivo deve respeitar, sempre, o plexo da garantia do processo. O fundamento é o texto constitucional. Cite-se, só para exemplificar, o inciso LIV do art. 5.º da Constituição da República: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Como se percebe, a garantia é revista de legalidade, não de “cooperatividade”. O texto é óbvio e clarividente. Mas, como havia dito G. K. Chesterton, “chegará o dia em que teremos que provar ao mundo que a grama é verde”... Pois bem: chegou o momento de a processualística tentar provar ao mundo certas obviedades.

Neste primeiro momento, a reflexão que quero impor é a seguinte: as situações processuais, em todas as categoriais eficaciais imagináveis, poderiam ser enxugadas em apenas na SUJEIÇÃO? Não custa lembrar que, etimologicamente, “co + operar” significa “operar em conjunto”. Politicamente, afirma-se, e. g., que a cooperação pode ser a chave de um reencontro de direita e esquerda, p. ex.: lados que passam a se ver como colaboradores num processo maior, não como inimigos [assim, cf. CANAL BRASILEIRINHOS. Não Tenhais Medo ep. 2: Confiança e Controle. Disponível em: https://goo.gl/9ugdNB].

Mas o problema, aí, não é puramente semântico. Durante o 3.º Encontro Nacional da Associação Brasileira de Direito Processual, mais precisamente, no grupo de pesquisa de n.º V, tema “CONSTITUIÇÃO E COOPERAÇÃO PROCESSUAL PENAL”, Diego Crevelin de Sousa logrou falar palavras precisas para o tema: o CPC/2015 positivou a tal “cooperação”. Cooperação como norma, portanto. E aí surge o problema de “qual é o limite”, i. e., até onde “uma parte tem de cooperar com a outra”. E isso logra outra camada de problema quando os adeptos da cooperação falam em “cooperação para o processo”: trata-se de subterfúgio linguístico que não explica nada. Absolutamente nada. O que é “cooperação para com o processo”? O que significa “divisão equilibrada de tarefas entre os sujeitos processuais”? [v. SOUSA, Diego Crevelin de. GRUPO DE PESQUISA V - TEMA: "CONSTITUIÇÃO E COOPERAÇÃO PROCESSUAL PENAL", 3.º Encontro Nacional da ABDPRO. Curitiba, 2018. Disponível em: https://goo.gl/v8CZEh, a partir do trecho em 1h02min].

Se o processo é instituição de garantia contra-jurisdicional, o que legitima transformar a obligatio – uma categoria de coerção estatal, basicamente – num ato cooperativo? Qual trecho da Constituição da República, o habitat natural do processo, legitima essa mudança gnosiológica?

O discurso do garantismo processual representa verdadeira quebra de paradigma: afasta o mainstream instrumentalista e repercute, p. ex., em temas como “igualdade”: a legalidade jamais deve ser enfraquecida por um “discurso igualizante” – “no âmbito procedimental civil [só para exemplificar], geralmente, quando se pensa em desigualdade, pensa-se em vulnerabilidade ou fragilidade processual a partir de um amálgama enredado de critérios socioeconômicos, socioculturais e técnicos. Tudo seria simples se o critério fosse único, porém: o pobre seria vulnerável em relação ao rico; a representação letrada menos conceituada seria vulnerável em relação à mais conceituada; a parte inculta seria vulnerável em relação à culta; o litigante menos experiente seria vulnerável em relação ao mais experiente (embora nenhum desses critérios seja plenamente objetivável e, consequentemente, objetivante). A dificuldade aumenta quando dois critérios se combinam (ex.: parte rica inculta X parte pobre culta; representação menos conceituada de parte rica X representação mais conceituada de parte pobre; litigante inexperiente rico X litigante experiente pobre; litigante inexperiente culto X litigante experiente inculto). Entretanto, tudo ainda se torna mais opaco quando três ou mais critérios se combinam (ex.: litigante experiente, pobre, culto e representado por advogado mais conceituado X litigante inexperiente, rico, inculto e representado por advogado menos conceituado)” [COSTA, Eduardo José da Fonseca. A igualdade processual como problema normativo. Empório do Direito, Florianópolis, mai. 2018. Disponível em: https://goo.gl/9KfrXz. Acesso em 15 mar. 2019].

Na parte I deste ensaio, trago as bases para o problema. Lanço mais perguntas, como se nota. Mas já trago alguns pressupostos que terão de permanecer firmes. O desafio aos cooperativistas está lançado. Exibirei minha versão da querela na parte II deste ensaio.

Em suma: (i) o devedor deverá “cooperar” para a satisfação do Haftung ou da obligatio?; (ii) o texto constitucional autoriza o enxugamento do plexo situacional do direito material numa grande sujeição jurisdicional?; (iii) qual a legitimidade epistêmica da “cooperação” na ruptura das cargas obrigacionais do direito material?

É o que tentarei responder numa próxima ocasião.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Painted Hall at Old Royal Naval College  // Foto de: Radek Lát // Sem alterações

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