Coluna ABDPRO
A objetividade e a força da realidade perderam espaço em todo o mundo para o subjetivismo e o descaso pelos fatos. Veja-se, como ilustração elucidativa, o que ocorre no meio político: uma mistura de emotividade tóxica e enviesamento ideológico que sobrepuja, com larguíssima vantagem, reflexões calcadas na sensatez da razão, desembocando numa espécie de vale-tudo, similar ao que se lê em distopias literárias, cuja regra fundamental, adotada até por parcela da intelectualidade, é a atuação partidária enfocada apenas e tão somente na persuasão.
O cenário, que espelha o evangelho do relativismo, tem como alguns de seus atributos cardeais a defesa do mistério e da incognoscibilidade da verdade, a ascensão de narrativas aleatórias e conjecturais (“achismos” e apostas) e a pregação verborrágica desatrelada daquilo (textos, eventos, existências individuais e coletivas) que se interpreta. A linguagem, julgada tirânica por seus apologistas, tornou-se objeto de desconfiança, a exemplo, e por implicação, do fazer historiográfico e dos valores universais.
Mesmo a imprensa, que deveria jogar alguma luz nesse breu de frivolidades, só faz coadjuvar o estado de coisas: planta notícias sem a devida checagem, distorce e fantasia acontecimentos (as chamadas fake news), produz escritos com intensa adjetivação manipuladora e desdenha a cobertura de ocorrências políticas e sociais relevantes. Deliberadamente ou não, parece esfumaçar o primado de que o bom jornalismo faz-se com isenção e equidade, a partir de uma dedicação honesta ao público leitor na oferta de informações tão precisas quanto possível, avesso que é a prática dissimulada da militância.
Mas que tormenta arrastou a todos nós até aqui? Uma hipótese, merecedora de investigação cuidadosa, encontra raízes no Desconstrucionismo, movimento proclamado de Pós-Moderno que surgiu depois da Segunda Guerra e teve em Jacques Derrida o mentor mais proeminente. Embora concebido como método de crítica literária, estribado numa espécie de solipsismo cético e com forte apelo pragmático, seu aproveitamento em áreas diversificadas (artes, religião, moral, ciência, política, história, sociologia) não tardou a ocorrer. Parece inegável que tal construção teórica cooperou para a formação do alicerce que sustenta a atual “Era do Eu” e seus frutos perversos (desorientação, desinformação, perda de discernimento, desprezo pelo raciocínio lógico-científico, superficialidade, sentimentalismo desonesto, eliminação do senso de identidade, atomização do indivíduo, ojeriza às tradições e aos costumes, desenfreada polarização ideológica, revanchismo superficial e por aí vai).
De mais a mais, fazendo um recorte endereçado a leitores especializados, é fora de dúvida que o cenário (esquizofrênico, niilista e narcisista) acima descrito foi, e permanece sendo, bastante fecundo para a germinação e sustentação de doutrinas jurídicas antidemocráticas e antirrepublicanas – entre as quais o famigerado instrumentalismo processual (e também os neoconstitucionalismos da moda) –, que apostam, quase milagrosamente, na suplementação da jurisdição. Pois sementes foram lançadas e o mal do ativismo judicial ganhou volume, alastrou-se de modo avassalador, abrindo passagem para a deturpação de determinadas garantias individuais cujo escopo é sobretudo refrear desvios ou abusos eventualmente praticados por juízes e tribunais.
Indo direto ao ponto: a instituição de garantia contrajurisdicional chamada processo (= devido processo legal),[2] e todo o conjunto de garantias individuais que lhe conferem substância, sofrem, pela via da retórica interpretativa, flexibilizações intensas e rotineiras a permitir que a atividade jurisdicional opere desimpedida de entraves na implementação dos seus ideais de justiça. Os exemplos de argumentos que ilustram o fenômeno relativista são inúmeros, muitos dos quais, pelo prestígio conquistado, já ganharam status normativo: i) busca da verdade real e poderes instrutórios do juiz (afronta à imparcialidade, à ampla defesa e à paridade de armas); ii) parcialidade positiva do juiz (ofensa à imparcialidade, à ampla defesa e à paridade de armas); iii) ponderação normativa, proporcionalidade e razoabilidade (usurpação discricionária da legalidade, frequentemente diminuindo a força das garantias processuais, em proveito de certos valores ou intenções); iv) coisa julgada inconstitucional (insulto à segurança jurídica); v) taxatividade mitigada (“pé de cabra retórico”, linguisticamente inconsistente, erigido pelo Superior Tribunal de Justiça para esgarçar o rol normativo fechado do art. 1.015 do CPC, em detrimento da legalidade e da segurança jurídica); vi) interpretações extensiva e sistemática (expressões comumente utilizadas não como métodos de interpretação, e sim para a inserção de contextos de sentido impossíveis de se extrair do dispositivo legal examinado, em ultraje à legalidade e à segurança jurídica).
É preciso dizer alto e bom som: o voluntarismo judicial é um acinte ao Estado de Direito. Quem destila hostilidade à Constituição e às leis está a negar, ainda que não o diga expressamente, a vontade soberana do povo de ser representado pelos parlamentares democraticamente eleitos. Juiz com atitudes progressistas (= ativistas) desveste-se da legitimidade popular,[3] torna-se um franco atirador habilmente apto a desconstruir tudo aquilo – inclusive as garantias individuais – que se apresente como percalço no caminho por ele próprio traçado a partir da sua subjetividade.
Notas e Referências
[1] O presente texto será publicado no editorial da Revista Brasileira de Direito Processual , 105, ainda no prelo.
[2] FONSECA COSTA, Eduardo José. O processo como instituição de garantia. Consultor Jurídico, 2016. Disponível: <www.conjur.com.br>. Acessado: 18/02/2019.
[3] Sobre o tema: FONSECA COSTA, Eduardo José. O Poder Judiciário diante da soberania popular: o impasse entre a democracia e a soberania. Empório do Direito, 2019. Disponível: <www.emporiododireito.com.br>. Acessado: 18/02/2019.
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