Coluna ABDPRO
O ativismo judicial é algo presente em qualquer discussão jurídica hodierna, seja a partir do campo pragmático ou doutrinário. Para alguns, é um remédio necessário diante da “(in)justiça do caso concreto”, para outros, tem lugar diante da inércia do Poder Legislativo e, mais recentemente, assumiu uma feição de autoritarismo mais escancarado, ocorrendo mesmo diante do texto normativo claro em sentido contrário. Essa última espécie assume o cariz mais criticável – porque parece mais aviltante, mas não deixou de ser forte o bastante para ser a que mais se encontra nas terras brasileiras. Em uma esquina vestido sob o manto da “justiça social”, em outra sob o pretexto de ouvir a “voz das ruas” ou, o que parece mais absurdo, sob a alegação de “atualização” do texto, o ativismo parece antever o Poder Judiciário como sendo dotado daquilo que Gustavo Corção identifica em teologia como presença da imensidade.
A presença de imensidade, em teologia, representa a Causa Primeira fundadora do ser e que, exatamente por isso, está em toda parte, olhando e agindo sobre tudo. O Poder Judiciário, em termos de Estado de Direito, deve ser exatamente o contrário disso: a sua ação não é plenipotenciária, tampouco pode ser imotivada ou usurpadora das outras funções estatais. O Judiciário deve agir apenas quando convocado e, na sua ação, encontra limites explícitos no texto normativo. A tomada da política e das liberdades públicas pelo Poder Judiciário parece uma inversão da Ordem Constitucional tão sabiamente preconizada no art. 2º da Carta da República, afinal, são Poderes da União o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Não é exagero dizer que esse Poder, sobretudo nas Cortes Superiores, procura ser como um ente que perpassa todos os outros, agindo para além da solução de crises jurídicas em manifesta tentativa (e tentação) de se afirmar como um superpoder: um Poder acima do bem e do mal, que sente e sabe melhor das dores do mundo do que todos os outros.
Isso pode ser sinal, à primeira vista, ao menos para o público externo, de que há uma supremacia fundamentada de um poder, que é teoricamente menos afetado por influências não jurídicas, diante de injustiças em um país tão pródigo na prática delas. O juiz pode ser Robin Hood no âmbito civil, se precisar; pode ser Hamurábi no processo penal, quando a desgraça social parece se revelar grande. Se juridicamente as posturas ativistas são defendidas e, sobretudo, adotadas na prática por razões pretensamente boas e justas (“e quem nos livrará da bondade dos bons?”), em verdade, agora no campo sociológico, o ativismo parece revelar uma fraqueza, uma doença tão bem nomeada por Theodore Dalrymple no campo social como sentimentalismo tóxico.
A bem da verdade, as posturas voluntaristas deveriam ser sempre rechaçadas em direito, deveriam ser objeto de preocupação e afastamento, tanto mais nobres são os agentes jurídicos se mais distantes eles estão das influências externas (a autopoiese precisa ser entendida e levada a sério). Mas, se as atitudes ativistas são fundamentadas pela – segundo consta nos autos – justiça, moral e vontade de fazer o bem, vamos procurar que sentimentos são esses. Afinal, é de bondade mesmo que estamos falando?
O ativismo, quando desnudado, não revela exatamente sentimentos bons porque, cá entre nós, quem quer fazer muito pela justiça social tem uma oportunidade ímpar – ainda mais em tempos de crise – de se candidatar a um cargo público, principalmente do Executivo. Se, por outro lado, pensa que o Legislativo carece de mais atuação, postular uma vaga na Câmara dos Deputados é uma ótima opção. Para a persecução penal pura e simples, um cargo de Delegado revela-se como um nicho ideal. O sentimento, nesses casos, parece se aproximar da coragem. No Poder Judiciário, entretanto, a tomada de decisões pelos outros poderes revela, ao contrário, um desrespeito às regras estabelecidas como se elas fossem meros fingimentos institucionais. A separação de poderes seria apenas uma desculpa para que o Judiciário não pudesse suprir as omissões ou corrigir as incoerências do Legislativo. A imparcialidade judicial é mera desculpa para impedir que o juiz, diante da injustiça, possa se portar como um verdadeiro agente da Justiça agindo ativamente para ajudar o mais fraco. A impossibilidade de atuação de ofício é uma mera desculpa para impedir que o julgador possa atuar direta e voluntariamente quando vir uma lesão sendo praticada. Enfim, as construções teóricas e dogmáticas são dissimulações, são todas menores e menos importantes do que os sentimentos altruístas de um juiz situado concretamente naquele momento da vida de algum cidadão.
Dalrymple diz que “nada excita mais os reformadores do que a hipocrisia e a incoerência, sobretudo quando eles mesmos estão possuídos pelo desejo skimpoliano de ser livres como borboletas. Fora com a hipocrisia! Fora com a frustração! Fora com os desejos ocultos! Fora com a tentação resistida! Vivamos agora como quisermos, sem as deformações trazidas pela dissimulação, vivamos à plena luz do dia! Deixemos que a vida inteira, de fato, seja um livro aberto, de modo que a partir de agora a aparência seja igual à realidade!”. Ora, é exatamente essa fuga da realidade normativa em direção à idealidade mental do sujeito – que ele julga ser a justiça – que faz a postura ativista ser contra o estado de coisas em direção a algo melhor, é uma postura rebelde, mas não exatamente daquele naipe dos poloneses se levantando contra o nazismo, é mais sentimentalismo tóxico, sem causa, é uma postura desmedida de um poder que foi extremamente bem tratado pela Constituição Federal, sendo dotado de direitos e garantias para assegurar a liberdade e a independência do julgador diante do arbítrio dos demais poderes.
Não sabia o constituinte, com toda certeza, que os outros poderes, perdidos entre a incompetência e a corrupção, seriam engolidos pelo Judiciário, que, em uma reunião administrativa vinculante (apenas para ironizar com o novo paradigma do processo civil brasileiro), decidiu que precisava mudar o mundo, não exatamente atendendo a critérios científicos, mas aos sentimentos de homens que parecem menos homens do que os outros, no sentido de que erram menos e são quase infalíveis, por isso as chaves da sociedade devem ser dadas aos juízes, únicos seres capazes de transformar essa realidade terrível em algo bom. O problema é que o sentimentalismo é incontrolável, ele vem como uma Hidra que sempre renasce e se manifesta de diferentes formas. Assim, haverá tantos tipos de ativismos quantos forem os tipos de sentimentos. A ideia é meio adolescente, com todo respeito, é algo próximo daquele lema juvenil de que “aquele garoto queria mudar o mundo”.
Entretanto, assim como na vida, o desprezo pelas regras no direito tem sempre um preço amargo: esse preço começa a ser pago com o desrespeito aos direitos de uma empresa no processo trabalhista, passa pela instrumentalização do processo penal para punir um réu que a opinião pública inteira sabe ser culpado e chega à mais dura cobrança – que é a destruição da razão de existir do Estado de Direito: cobra-se a liberdade.
Assim, um realista, e não um sentimentalista, percebe com clareza que algumas injustiças podem ser cometidas porque o processo diz assim e esse modo de ser pode custar a crítica da opinião pública imediata, mas ele sabe que esse preço precisa ser pago em nome de garantias maiores, tais como a manutenção do Estado de Direito, da separação de poderes e do respeito às regras do jogo. Segundo Dalrymple, “um realista, mas não um sentimentalista, jamais ignoraria que o único modo de eliminar a hipocrisia da existência humana é abandonar todo e qualquer princípio; e que para os seres humanos, com suas mentes extremamente complexas, que mesmo assim não são capazes de compreender (porque nenhuma explicação de nada chega a ser definitiva) uma única ação sua, é impossível viver de maneira totalmente aberta. Basta um único experimento mental, bem simples, para estabelecer que, mesmo que fosse possível viver de uma maneira totalmente aberta, isso não seria desejável”.
O direito brasileiro, em 2019, está mais próximo de viver de uma maneira totalmente aberta, cada vez mais voluntarista. E isso não é revelador de que o Poder Judiciário se afirmou socialmente e tem agora a autoridade (aqui no sentido dado por Hannah Arendt) para que as suas decisões sejam respeitadas, pelo contrário. Em verdade, é sinal de que o sentimentalismo tóxico está vencendo a Justiça e, por fim, está por matar a ciência. Não se trata de poder, mas de arbítrio; não é revolta contra a injustiça (porque dissemos os caminhos para lutar contra ela), é sentimentalismo tóxico; não se trata de boas intenções, porque por causa delas a humanidade já padeceu com os piores martírios; não se trata de força, mas de fraqueza.
Ativismo é fraqueza. Uma postura ativista, em vez da grandeza imaterial de respeitar às regras postas, reafirmando-as para a comunidade, representa a fraqueza de fazer o fácil, mesmo que isso custe a integridade do sistema com a informação clara de que a norma é e sempre será aquilo que o juiz quiser. Assim, o que tiramos do processo judicial brasileiro não é algo salutar, tão caro aos ingleses, no sentido de que devemos seguir as regras comuns impostas à comunidade para termos o direito de nos afirmarmos assim, como comunidade. Aqui, a única lição que aprendemos a cada dia – e o Supremo Tribunal Federal tem dado aula no assunto – é aquela que ouvimos dos nossos pais: manda quem pode, obedece quem tem juízo. Ficamos consternados, pois não acreditamos jamais que o Estado possa ser bom como os nossos pais foram.
Ativismo não é poder, é tirania. Não é luta, é rebeldia sem causa.
Para terminar, a informação mais relevante: o título do livro de Theodore Dalrymple (publicado pela Editora É Realizações) é Podres de mimados – As consequências do sentimentalismo tóxico. Para falar de ativismo, esse bem poderia ser também o título do presente artigo.
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