Coluna ABDPRO
O Estatuto da Pessoa com Deficiência [Lei n.º 13.146/2015] incorreu numa aberração lógica. Revogou praticamente todas as formas de incapacidade absoluta do art. 3.º do Código Civil, que ficou apenas com o caput [menores de 16 anos].
A mensagem do EPD foi a seguinte: “daqui em diante, quero tratar todos, em regra, como capazes”. A exceção máxima é a relativa incapacidade, cercada aos casos dos incisos do art. 4.º do Código Civil: maiores de 16 e menores de 18 anos [inc. I]; ébrios habituais e viciados em tóxico [inc. II]; aqueles que, por causa transitória ou permanente, não puderem exprimir sua vontade [inc. III]; e os pródigos [inc. IV].
Para alguns, o EPD significou um baluarte emancipatório. Um pergaminho de significações pomposas. Uma ode ao politicamente correto. É feio tratar alguém com o “incapaz”, ainda que a incapacidade, aí, esteja no campo metalinguístico jurídico. Era preciso “revolucionar”, mudar. Era preciso a água benta da racionalidade de uma razão suprema capaz de mudar a dureza brutal da realidade. Chamarei essa parte doutrinária de otimista-progressista.
Para outros, o EPD causou perplexidade[1]. Um gesto equivocado dos parlamentares, uma inconsequência do politicamente correto. Não é “feio” tratar alguém como “incapaz”, pois a incapacidade é instituto de proteção jurídica. Era preciso conservar, ser prudente. Era necessário encarar a dureza da realidade: as coisas como são. E essa parte doutrinária receberá, aqui, o nome de conservadora-pessimista.
Não intitulo esse texto de “direito vivo da interdição” à toa. A inspiração vem de magnífica dissertação de mestrado de Eduardo José da Fonseca Costa, O “Direito Vivo” das Liminares. Nela, o autor explica o que quer dizer com “direito vivo” com as seguintes palavras:
[...] a expressão “Direito vivo” (lebendes Recht) – a despeito de sua banalidade – foi cunhada com significado especial na terminologia jurídico-científica pelo pai da sociologia do direito Eugen Ehrlich. Tomamo-la aqui de empréstimo porque este estudo busca compreender como os juízes inter-relacionam na vida prática os pressupostos para a concessão de liminares. Isto dá a entender que há um “direito morto” nos textos de lei que não coincide com o “direito vivo” da prática forense[2].
É com esse sentido [mas sem tanta profundidade, para o fim dessa coluna] que encaro o EPD. Pretendo interseccionar três pontos: i] a mudança nas incapacidades pelo EPD [e não o restante do EPD, que não é de todo ruim]; ii] a pós-modernidade filosófica da mudança; e iii] a repercussão prática disso nos tribunais – como eles lidam com a realidade das coisas.
Sobre o ponto i, i. e., sobre a mudança nas incapacidades no Código Civil, todos estão fartos. Todos já tiveram tempo para absorver a mudança legislativa. Basta o que escrevi nos primeiros parágrafos.
Quero explorar melhor os pontos ii [filosofia pós-moderna nos bastidores do EPD] e iii [repercussão prática da mudança das incapacidades nos tribunais].
Pós-modernidade e arrogância interpretativa: busquemos em Aristóteles um aspecto básico ignorado pela filosofia pós-kantiana. Na filosofia aristotélica, fala-se em três causas: a causa formal; a causa material e a causa eficiente. A tríade forma-matéria-eficiência, em Aristóteles, é bem explicada por Mário Ferreira do Santos. Ele dá o exemplo do vaso de barro. Num vaso de barro, o “de barro” é a causa material [a matéria é o barro]. A forma “de vaso” é a causa formal [a forma é de vaso]. Finalmente, a ação humana que o modelou é a causa eficiente [o barro se tornando um vaso][3].
Não há espaço para aprofundamento nesse texto, mas note-se como Aristóteles não menosprezava a quididade, a natureza real das coisas. Essa questão descambou em espíritos esclarecidos como o de Miguel Reale: adaptando Aristóteles ao texto de Reale, podemos vislumbrar a tríade aristotélica causal em ser/ontologia [causa material], em dever ser/deontologia [causa formal] e em ser enquanto dever ser/axiologia [causa eficiente][4].
Adriano Soares da Costa notou algo similar em Karl Popper: ele, como Frege, “percebeu nitidamente a insuficiência da dualidade do mundo material/mundo mental sobre a qual se ergueu a Filosofia”, propondo “três mundos: o primeiro é o mundo material, ou mundo dos estados materiais; o segundo é o mundo mental, ou mundo dos estados mentais; o terceiro é o mundo dos inteligíveis ou das idéias no sentido objetivo”[5].
O que [ou quem] é este sujeito pós-moderno, que legislou sobre as incapacidades? Em primeiro lugar, este texto não imputa críticas a um indivíduo específico. Trata-se, na verdade, de uma especulação filosófica sobre a estranha gnosiologia que se apresenta diante de nós no século XXI. A proposta é parecida com a de Richard M. Weaver, embora ele tenha ido mais além, notando e denunciando esses problemas já na modernidade:
[...] na realidade de sua existência, o homem é impelido por um sentimento de afirmação vital e impulsionado por alguma concepção de como ele deveria ser. O grau em que sua vida é moldada pelas condições do mundo físico é indeterminável, e, por ser grande o número de supostas limitações superadas, devemos ao menos admitir a possibilidade da vontade de ter alguma influência sobre elas.
O objetivo mais importante a ser alcançado por ele [o homem moderno] é a descrição imaginativa daquilo que, de outro modo, é um fato empírico bruto, um conjunto de hipóteses sobre o mundo. Então, sua capacidade racional estará a serviço de um lado de ver as coisas que preservará do sentimento sua opinião sobre o mundo[6].
Faço aqui uma crítica da razão de um sujeito da pós-modernidade. Procedo, assim, com um exame sobre aquele que conhece na contemporaneidade. Trata-se de um julgamento crítico-analítico de um sujeito vaidoso e narcisista, engrandecido com suas rarefeitas “visões de mundo”.
O sujeito cognoscente de nossos tempos estourou as estribeiras dos limites cognitivos. Alçou um voo imaginário e autopoiético: criou uma realidade jamais vivida. N’alguns casos, impôs a sua imaginação totalitária [como diz Francisco Razzo][7] para e contra o outro.
O “legislador” brasileiro alçou esse mesmo voo fantasioso. Criou um mundo distópico, na doce ilusão de que ele, do alto de sua função típica de legislar, poderia criar um mundo cor-de-rosa, com unicórnios, no qual pessoas com deficiência são, necessariamente, seres dotados de imensa luz cognitiva[8]. Busca-se, incessantemente, proteção linguístico-semiótica. Ignora-se, solenemente, a ontologia bruta da realidade. Como um novo Kant, o legislador se vangloriou: tornou-se uma espécie de “super-herói”. E ele terá o dom divino de construir objetos segundo sua livre representação [ou “poder nomotético do espírito”, como diz Adriano Soares da Costa][9].
Uma pessoa em coma está em sono profundo, i. e., numa situação ôntica bastante clara: o leigo pensa justamente em “sono profundo”. A metalinguagem da medicina verá variações, mas o leigo imediatamente pensará em alguém deitado numa cama: sinais vitais presentes, dormência constante. Em geral, pessoas que simplesmente não podem manifestar vontade, ponto.
O legislador, todo poderoso, impôs dois tipos ideais simplórios para essa pessoa em coma de nosso exemplo: em regra, ela é absolutamente capaz [?]. Excepcionalmente, será relativamente incapaz [?!], mediante assistência [??!!].
Este é, pois, o sujeito cognoscente da pós-modernidade: alguém infantilmente amedrontado com a realidade ôntica das coisas, que sempre sofrerão distorções cognitivas do seu anseio de construção “ideal”. É claro que este sujeito mimado acaba aceitando, quando convém, a estrutura a priori do ser: mas isso ocorre apenas quando a realidade exterior se harmoniza com sua agenda partidária ou ideológica.
Essa questão gnosiológica é tão importante para a filosofia – e peço desculpas por insistir nisto – que descamba mesmo na discussão sobre Deus. Ainda com sustentação na filosofia de Mário Ferreira dos Santos, pode-se dizer que o “infinitivo” não conta com esse caractere da crisis [krisô, diriam os gregos], pois “nele [neste ser infinito] não há limites, pois estes são fronteiras que separam os seres, e aquele, fonte e sustentáculo de todos os outros, não tem fronteiras, mas apenas perfil, na linguagem tão poética e tão clara de Parmênides, porque não há outro que a ele se oponha”[10]. Neste ponto, “por maiores dissenções que se deem entre os filósofos para saber qual a essência desse ser, que tudo antecede, quase todos estão de acordo em um ponto: que há de qualquer forma um ser primevo, que a tudo antecede, e que não pode ter tido um princípio, ser que absolutamente e simplesmente é. E, se é o primeiro, não teria de outro a sua essência, pois esse outro o antecederia e, portanto, este seria o Ser”[11].
Por isso, digo sem hesitar: o sujeito pós-moderno, desconhecendo limites, tomou o lugar do Ser, nessa lógica da charmosa Filosofia da Crise, de Mário. A experiência nos mostra, ainda de acordo com o filósofo brasileiro, que “a experiência que todo ser finito é limitado, e além disso determinado” – tal determinação “se apresenta antes [a parte ante] e num depois [a parte post]”. Logo, “determinado antes, determinado durante e determinado no termo do seu existir, o ser finito caracteriza-se por essa tríplice determinação que não o abandona nunca, que lhe estabelece limites. E tudo isso é a crisis”. Porém, “o Ser Supremo, que não teve um prévio determinante, não pode ter um determinante depois, porque não há outro para sobre ele exercer uma delimitação”. É precisamente isso o que cinde os conceitos de finitude e de infinitude[12].
O legislador brinca de ser Deus. Quer Ser desconhecendo e ignorando os limites do ser. Quer mudar o imutável. Quer se propor a legislar que, doravante, a gravidade não mais terá aceleração de valor aproximado de 9,80665 m/s; quer legislar que maçãs podem ser laranjas; quer impor, na lei, que uma pessoa ontológica e absolutamente incapaz deve ser, em regra, capaz.
Michael Oakeshott, enfrentando o assunto ainda na gênese da “modernidade”, bem mostra os efeitos políticos do racionalismo vivido pela Europa de Bacon: o sujeito cognoscente “racional”, diz M. Oakeshott, “quando não é arrogante ou hipócrita [...] pode passar a impressão de não ser um personagem antipático. Ele almeja deveras chegar à verdade, embora infelizmente nunca a conseguirá”[13]. Esse exacerbar da “razão” traz, segundo referido escritor, dois atributos perigosos para o pensador moderno:
Sem pretender alarmarmos com males imaginários, penso que podem ser elencadas duas características em particular do racionalismo político que o deixam excepcionalmente perigoso para a comunidade. [...].
Primeiro, como eu havia interpretado, o racionalismo na política sofre de um erro claramente identificável, qual seja, o entendimento incorreto em relação à natureza do conhecimento humano, descambando para uma corrupção total da mente. Dessa forma, ele se apresenta sem poder algum para corrigir seus fracassos; não dispõe de qualidade homeopática; é impossível escapar a seus erros sendo mais sincero ou mais racionalista. Vale a pena ressaltar que isso é um dos revezes de viver ao pé da letra [...]. Desliga-se a luz e depois reclama que não é possível enxergar nada. [...]. A bem da verdade, é nisso em que a política atual está se degenerando: o hábito político e a tradição, os quais há pouco tempo eram de posse comum entre os mais ferozes oponentes da política inglesa, foram suplantados por uma mera predisposição mental racionalista.
Entretanto, em segundo lugar, uma sociedade que abraçou a causa racionalista na política logo se verá sendo conduzida e rumando em direção a uma educação em geral exclusivamente racionalista. [...]. E, quando uma forma exclusiva de educação racionalista é implantada, a única esperança de libertação reside na descoberta feita por algum pedante qualquer, «retirando de uma montanha de velhos pergaminhos e documentos mofados», indícios do que o muno era antes de o milênio o tragar. [...]. Ele [o homem moderno e que se diz racionalista] acredita sinceramente que um treinamento em conhecimento político seja a única forma de educação que valha a pena, crendo que um treino em «administração pública» é a defesa mais segura contra as bajulações do demagogo e as mentiras do ditador[14].
Já tratei desse assunto em outras ocasiões, talvez mais marcantemente na resenha que fiz da obra Teoria da Incidência da Norma Jurídica, de Adriano Soares da Costa. Na ocasião, escrevi o seguinte:
A grande luta intelectual travada por Adriano Soares da Costa, ao menos no âmbito jurídico, é a de nos avisar que o sujeito cognoscente (o jurista) não pode tudo. Ele tem freios, limites. A linguagem tem de ser construída sobre o mundo empírico em que vivemos; sob pena de abstrações inúteis ou, mesmo de um engrandecer perigoso do sujeito cognoscente, que tudo pode... Inclusive transformar “vinte” em “quinze” (vide o exemplo do enunciado n.º 251 do CJF); criar teses contra legem; autorizar o Poder Judiciário a fazer as vezes do Poder Executivo; possibilitar a execução provisória da pena, sem trânsito em julgado (contra a lúcida redação do inciso LVII do art. 5.º da Constituição Federal) — o que autoriza o jurista a operar com “hermenêutica” que altere o significado de “trânsito em julgado”?[15]
Curiosamente, nessa mesma oportunidade dei o exemplo de alguém claramente INCAPAZ que seria tido por capaz [ou, no máximo, relativamente incapaz] pela mentalidade imprudente do corpo parlamentar brasileiro responsável por esse trecho do EPD. Citei o personagem Johnny, do filme Johnny Got His Gun, de Dalton Trumbo [1971]. Esse é o filme cujos trechos são exibidos no clipe da música One, do Metallica [letra de Lars Ulrich, o baterista, e de James Hetfield, o vocalista][16].
Em guerra, Johnny se depara com um petardo que acaba impondo-lhe gravíssima lesão. Daí em diante, ficou apenas com o tato que restou em seu tronco e em sua testa [já que perdeu os membros superiores e inferiores, os olhos e a audição]. O filme é uma verdadeira lição para quem se diz maior que o objeto [maior que o mundo da vida].
Johnny após o estouro da bomba. Sem braços, sem visão, surdo e ontologicamente incapaz [como se nota]. Para a lógica otimista-progressista de nossa doutrina, que cegamente [sic] apoia a mudança nas incapacidades no Código Civil, Johnny está salvo. É “capaz”. “Pode ser assistido”. A dignidade da pessoa humana impera no reino fantasioso dos ursinhos carinhosos dessa mentalidade de cariz distópico...
Ao final do filme, Jhonny consegue se comunicar com a junta médica militar que dele cuidava através de Código Morse. Pedia, desesperadamente, o fim de sua vida. O pedido lhe é negado; o fim do filme é um melancólico Jhonny sobre a cama clamando S.O.S. Isso explica, aliás, a letra de One: “Landmine has taken my sight, taken my speech, taken my hearing, taken my arms, taken my legs, taken my soul... Left me with life in Hell” [tradução livre: “o campo minado retirou minha vista, minha fala, minha audição, meus braços, minhas pernas, minha alma. Me deixou com vida no inferno”].
Como os tribunais encaram o assunto? O que faz um magistrado prudente que, no seu cotidiano, lida com um Johnny?
Farei um recorte específico, curto (apenas 3 casos) e recente no Tribunal de Justiça do Paraná [até o dia 21 de novembro de 2018, todos os casos listados abaixo não tinham segredo de justiça. Além disso, não citarei o nome de nenhuma pessoa envolvida].
Vejamos.
Caso 1: TJPR, Apelação Cível n.º 6858-55.2017. Rel.ª Des.ª Ivanise Maria Tratz Martins, 12.ª Câmara Cível. Julgado em 14 de novembro de 2018.
O juízo a quo indeferiu a inicial argumentando que o EPD extirpou as incapacidades civis tradicionais entre nós. Com a apelação, o TJPR cravou: “parece mesmo equivocado supor que, a partir do Estatuto da Pessoa com Deficiência, calcado na premissa de que abolido o conceito de incapacidade absoluta, de plano poderia extinguir-se o feito por falta de interesse processual no presente caso”. Na ementa, consta: “mesmo com o advento do Estatuto da Pessoa com Deficiência, não há que falar em presunção de plena capacidade”.
Observação: a parte da causa seria portadora de inabilidade intelectual [CID F70.0], TDAH [CID F90] e epilepsia [CID G40].
O TJPR cassou a sentença e determinou seu regular trâmite.
Caso 2: TJPR, Apelação Cível n.º 288-47.2017. Rel.ª Des.ª Lenice Bodstein, 11.ª Câmara Cível. Julgado em 08 de novembro de 2018.
O juízo a quo indeferiu a inicial. O argumento é claro: o EPD trata a pessoa com deficiência como capaz. Com a apelação, o TJPR frisou que “há interesse da autora na interdição de seu filho por outros motivos que não apenas o benefício do INSS em favor do mesmo. Há necessidade de regular instrução probatória, com realização de perícia médica (que é imprescindível nos termos do artigo 753 do CPC) e a oitiva do interditando no feito, descabendo nova extinção da demanda por falta de provas”.
Observação: o agente dessa causa teria retardo mental moderado [CID 71.8].
O TJPR nulificou a decisão recorrida e determinou nomeação de curador especial para o interditando [!], com curatela provisória.
Caso 3: TJPR, Apelação Cível n.º 12215-86.2017. Rel. Juíza Substituta em 2.º Grau Sandra Bauermann, 12.ª Câmara Cível. Julgado em 1.º de novembro de 2018.
O juízo a quo reconheceu a incapacidade do interditando, submetendo-o à curatela apenas para aspectos patrimoniais e negociais [fundamento no art. 85 do EPD].
Segundo relatórios médicos, a parte sofrera traumatismo crânio encefálico [TCE] com 2 anos de idade, resultando em perda da coordenação e de movimentos, de comprometimento cognitivo e intelectual e epilepsia.
O TJPR reconheceu que “não é mais possível considerar o interditando V. como absolutamente incapaz, como busca a apelante, diante da nova sistemática e compreensão do instituto da capacidade trazidos pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, mas a jurisprudência tem admitido a ampliação do alcance da curatela para que se dê não somente sobre os aspectos patrimoniais e negociais do curatelado, mas também sobre outros demais atos da vida civil que demandem discernimento superior às possibilidades do interditando”.
Essas decisões estão formando a jurisprudência paranaense até o momento. A lei tenta mudar a realidade das coisas, mas a brutalidade ontológica do mundo da vida traz exigências outras. Daí se falar, no título desse texto, num “direito vivo” de interdições.
O EPD é, sim, bem-intencionado. Mas é perverso na teoria das incapacidades. Deixou de proteger a pessoa com deficiência, ao pretexto de vangloriá-la no plano meramente simbólico. Um sujeito de inexpressivo grau cognitivo que compre um aparelho útil para sua vivência diária, e. g., necessariamente conviverá [se “capaz” for – e a lei assim quer...] com prazos decadenciais contra eventuais vícios que macularem esse bem. A pessoa que tem imóveis distantes e que acaba se tornando ontologicamente incapaz continuará, pela lei, “capaz”: contra ela correrão prazos de usucapião.
Além disso, me parece pitoresca a revogação dos incisos II e III do art. 228 do Código Civil. De acordo com o inciso III, p. ex., não poderiam ser admitidos como testemunhas “os cegos e surdos, quando a ciência do fato que se quer provar dependa dos sentidos que lhes faltam”. Se há revogação, há uma razão para tanto... Notadamente quando a revogação decorreu da Lei n.º 13.146/2015 [o EPD!]. É dizer: para o “legislador” megapoderoso, é politicamente incorreto asseverar que um cego não tem capacidade de testemunhar sobre o que não enxergou e que o surdo não tem capacidade de testemunhar sobre o que não ouviu. Mas isso é assunto para outro momento.
Tem razão a doutrina que chamei de conservadora-pessimista: ela é provida de prudência. Desconfiamos de milagres legais, desconfiamos da crença no racionalismo exagerado, entendemos que, talvez, devamos aceitar que há algo de bom a ser conservado, e. g., na tradição romanística inerente às incapacidades civis. Um conservador, lembra Russel Kirk, “não se opõe a melhorias sociais” [mito freneticamente bradado por quem desconhece a literatura conservadora]. Nisso, “o conservador vê a necessidade de limites prudentes sobre o poder e as paixões humanas”, e “o conservador razoável entende que a permanência e a mudança devem ser reconhecidas e reconciliadas em uma sociedade vigorosa”[17]. O maior avanço (!) que nossa civilística poderia cogitar seria, atualmente, dar passos largos para trás, fincando vez mais a teoria das incapacidades no que absorvemos ao longo de séculos da tradição românico-canônica (leia-se: retorno àquela redação anterior dos arts. 3.º e 4.º do Código Civil).
Notas e Referências
[1] Assim, cf. SIMÃO, José Fernando. Estatuto da Pessoa com Deficiência causa perplexidade (Parte I). Consultor Jurídico, São Paulo, ago. 2015. Disponível em: https://goo.gl/9AdYM1. Acesso em 21 nov. 2018.
[2] COSTA, Eduardo José da Fonseca. O “direito vivo” das liminares: um estudo pragmático sobre os pressupostos para sua concessão. Dissertação [mestrado]. Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2009, f. 18.
[3] Para mais, ver SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017. Fiz análise audiovisual dessa obra aqui.
[4] Sobre minha interpretação da filosofia de Miguel Reale, cf. SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. O direito como experiência, de Miguel Reale - por Marcelo Pichioli da Silveira. Empório do Direito, Florianópolis, out. 2017. Disponível em: https://goo.gl/FQGzF4. Acesso em 21 nov. 2018.
[5] COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 50.
[6] WEAVER, Richard M. As Ideias Têm Consequências. Trad. Guilherme Araújo Ferreira. 2.ª ed. São Paulo: É Realizações, 2016, p. 33.
[7] Cf. RAZZO, Francisco. A Imaginação Totalitária. Rio de Janeiro: Record, 2016.
[8] Nota de esclarecimento importante: no sistema revogado, as pessoas com deficiência não eram, necessariamente, incapazes. Um autista ou um portador de Síndrome de Down não eram, necessariamente, interditados. E é evidente que essas pessoas merecem respeito. A preocupação, aqui, reside justamente na proteção jurídica, pois a teoria das incapacidades é vocacionada à proteção, não à discriminação.
[9] COSTA, Adriano Soares da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica. 2.ª ed. São Paulo: Malheiros, 2009, p. 148-149.
[10] SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 38.
[11] SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 39.
[12] SANTOS, Mário Ferreira dos. Filosofia da Crise. São Paulo: É Realizações, 2017, p. 40.
[13] OAKESHOTT, Michael. Conservadorismo. Trad. André Bezamat. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2016, p. 77.
[14] OAKESHOTT, Michael. Conservadorismo. Trad. André Bezamat. Belo Horizonte: Editora Âyiné, 2016, p. 78-82.
[15] SILVEIRA, Marcelo Pichioli da. Teoria da Incidência da Norma Jurídica, de Adriano Soares da Costa - por Marcelo Pichioli da Silveira. Empório do Direito, Florianópolis, nov. 2017. Disponível em: https://goo.gl/o35YMd. Acesso em 21 nov. 2018.
[16] Cf. https://www.youtube.com/watch?v=EzgGTTtR0kc.
[17] KIRK, Russel. A Política da Prudência. Tradução de Gustavo Santos e Márcia Xavier de Brito. São Paulo: É Realizações, p. 110-111.
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