ABDPRO #52 - Desistência do Recurso: Pode a parte ser obrigada a ver seu recurso ser julgado?

03/10/2018

Coluna ABDPro

Nos últimos dias, o STJ viveu momentos de flashback[1] propiciados pela Min. Andrighi[2] no julgamento do REsp. n. 1.721.705/SP[3], do qual era relatora. A discussão consistia em definir se a operadora de plano de saúde estaria autorizada a negar tratamento prescrito, sob o fundamento de que a utilização em favor do paciente está fora das indicações descritas na bula/manual registrado na ANVISA (uso off-label). Contudo, o ponto de análise aqui[4] será uma questão “paralela”, qual seja, o acolhimento da questão de ordem suscitada pela relatora para fins de negativa ao pedido de desistência do recurso formulado pela recorrente (AMIL ASSISTÊNCIA MÉDICA INTERNACIONAL S.A).

O julgamento foi designado para a sessão do dia 28/08/2018, sendo publicada no dia 20/08, e, o pedido de desistência da recorrente protocolizado no dia 24/08(sexta-feira). Os autos foram conclusos no dia 27/08 (segunda-feira).

De acordo com a Min., chancelar a desistência seria permitir a jurisdicionados manipular a atividade jurisdicional do STJ e, em última análise, os destinos da jurisprudência.

Assim, segundo a Min., a parte possui o direito desistir do processo, mas, verificada a existência de interesse público, o relator pode, mediante decisão fundamentada, promover o julgamento do recurso para possibilitar a apreciação da questão de direito. 

No que tange à desistência do recurso e a influência de argumentos de origem publicista[5] sobre o mesmo, no intento de esvaziar seu conteúdo eficacial, faz-se interessante relembrar o ocorrido, em dez./2008, no caso representativo de controvérsia contido no REsp. n. 1.063.343, que também era de relatoria da Min. Andrighi.

Uma vez verificada a existência de multiplicidade de recursos versando sobre mesma matéria, foi instaurado o procedimento de julgamento de recursos repetitivos, fazendo-se a comunicação aos Presidentes dos TRF’s e dos TJ’s, determinando, a suspensão do processamento dos REsp.s que versassem sobre mesma temática. Ocorre que, após a inclusão do processo em pauta para julgamento, mas antes de iniciada a sessão, foi apresentado pelo recorrente, que teve seu recurso selecionado como “causa piloto”, pedido de desistência.

Diante dessas circunstâncias, a Corte Especial do STJ, frisando ser da essência do sistema de processamento e julgamento de recursos especiais repetitivos o interesse coletivo da questão posta em juízo, decidiu pela impossibilidade de desistência recursal por parte do recorrente que teve seu Recurso Especial selecionado como representativo da controvérsia.

Na ocasião, Min. Andrighi levantou questão de ordem, demonstrando inconformismo com o fato de os advogados terem pedido desistência de dois recursos depois que foram colocados na pauta de julgamento pela sistemática de julgamento de Recursos Repetitivos. Conforme a min. afirmou, depois que o recurso é encaminhado à seção ou à Corte Especial, o interesse na definição da causa deixa de ser apenas das partes e passa a ser público, não surtindo efeitos o pedido de desistência após o recurso estar preparado para julgamento pelo incidente de recursos repetitivos.

É importante frisar que o segundo caso narrado ocorreu em 2008, sob a égide do CPC/73, que, ainda que possibilitasse a desistência do recurso a qualquer momento pela parte[6], sem necessidade de homologação[7], o que já evidenciava o equívoco da decisão à época,  não possuía previsão similar ao parágrafo único do atual 988 do CPC/15, que dispõe que “a desistência do recurso não impede a análise da questão cuja repercussão já tenha sido requerida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos”. Em suma, a decisão proferida na questão de ordem suscitada no julgamento do REsp. em questão se mostra incompatível com o CPC/15, já que viola conteúdo eficacial de negócio processual unilateral.

Negócio processual, de acordo Didier e Nogueira, é o “ato jurídico voluntário em cujo suporte fático esteja conferido ao respectivo sujeito o poder de escolher a categoria jurídica ou estabelecer, dentro dos limites fixados no próprio ordenamento jurídico, certas situações jurídicas processuais[8]. Leonardo Greco, a seu turno, os define como “atos de disposição das partes que subtraem questões processuais da apreciação judicial ou que condicionam o conteúdo de decisões posteriores”, podendo o ato ser praticado no processo ou fora dele, mas” para nele produzir efeitos”.[9]

Conforme já abordado em estudo específico[10], o universo dos negócios processuais é amplo. Significativa parcela dos atos procedimentais praticados pelas partes pode ser enquadrada como autênticos negócios processuais.

Nos termos do art. 200 do CPC/15, que apresenta idêntica redação ao art. 158 do CPC/73, é possível visualizar negócios processuais unilaterais (que se perfazem pela manifestação de apenas uma vontade), como a desistência e a renúncia, e negócios bilaterais (que se perfazem pela manifestação de duas vontades), como é o caso da eleição negocial do foro e da suspensão convencional do procedimento.

Marcela Faria, considerando a desnecessidade de manifestação da parte contrária para que o negócio processual unilateral produza efeitos, ressalta: “estes são usualmente típicos, ou seja, encontram previsão no diploma processual[11]. Não obstante, “os seus efeitos são vinculados, ou seja, regidos por norma cogente. A vontade da parte subsiste tão somente com relação à categoria que se quer enquadrar o negócio jurídico”, uma vez que “os efeitos são regulados por lei, não podendo ser modificados por vontade das partes, sob pena de descaracterizá-lo”.[12]

A título de exemplo, a autora discorre acerca da desistência do recurso, que é negócio processual unilateral, o qual “depende exclusivamente da manifestação de vontade da parte recorrente, e produz efeitos tão logo manifestada a vontade, independentemente de homologação judicial ou concordância da parte contrária”. Não obstante, os efeitos decorrentes da desistência, como o trânsito em julgado da decisão ou a possibilidade de execução do julgado na hipótese de o recurso possuir efeito suspensivo, “decorrem de previsão legal e não poderão ser alterados pela vontade da parte que opta pela realização do negócio processual unilateral”.[13]

Na mesma linha, e, analisando a questão relativa à produção de efeito dos negócios processuais, Nogueira aduz que não parece convincente a ideia de que negócios processuais estariam sempre a depender da intervenção ou intermediação judicial para produzir os seus efeitos. Assim, “é preciso não confundir os efeitos processuais do ato do processo e os efeitos da cadeia procedimental como unidade”. A desistência do recurso, consoante Barbosa Moreira, já produz o efeito de transitar em julgado de imediato a decisão recorrida[14], sem que se necessite da intermediação judicial para a sua propagação. Com efeito, se às partes é dada a possibilidade de manifestar vontade abdicando do direito de recorrer e o ordenamento jurídico valora e recebe esse querer, dando-lhe (inclusive) primazia sobre os provimentos jurisdicionais posteriores que o contrariem, “é porque está reconhecido o poder de autorregramento da vontade no processo”.[15]

Barbosa Moreira salienta que há negócios processuais que precisam ser homologados pelo juiz, como o caso da desistência da ação, e outros que não precisam dessa chancela, como o negócio tácito sobre modificação da competência relativa ou a desistência do recurso.[16] Frisa-se que a necessidade de homologação judicial não descaracteriza o ato como negócio[17], assim como “não deixa de ser negócio jurídico o acordo de divórcio em que há filhos incapazes, apenas porque se submete à homologação judicial[18].

A regra, consoante art. 200 do CPC, é a dispensa de homologação judicial do negócio processual, sendo certo que esta, quando necessária, será prevista em lei, tal como ocorre na hipótese da desistência da ação[19]. Vale ressaltar aqui o teor do Enunciado nº. 260 do Fórum Permanente de Processualistas Civis, que dispõe que: “A homologação, pelo juiz, da convenção processual, quando prevista em lei, corresponde a uma condição de eficácia do negócio..

Com efeito, a desistência do recurso prevista no art. 998 do CPC, consiste em negócio processual unilateral, na qual o recorrente possui faculdade de exigir que seu recurso, anteriormente interposto, não seja apreciado, independentemente da anuência do recorrido ou dos eventuais litisconsortes, bem como de chancela do órgão julgador. Assim, não subsistem razões que respaldem os fundamentos trazidos pelo STJ para impedir a desistência do recurso, por ser este representativo de controvérsia, esvaziando o conteúdo eficacial do referido negócio processual.

No intento de impedir o referido equívoco, bem como visando equacionar o interesse público (do julgamento da temática) com a garantia de eficácia da desistência do recurso, o CPC prevê, no parágrafo único do art. 998, que “a desistência do recurso não impede a análise da questão cuja repercussão já tenha sido requerida e daquela objeto de julgamento de recursos extraordinários e especiais repetitivos”. Ou seja, oportuniza-se o julgamento da “tese” representativa da controvérsia, sem negar eficácia ao negócio processual.

Desse modo, tem-se por insubsistentes os argumentos utilizados no julgamento de ambas as questões de ordem ora analisadas, uma vez que visam esvaziar o conteúdo eficacial do negócio processual, mostrando-se evidente que o direito processual pátrio não possibilita que a parte seja “forçada” a ter seu recurso julgado sob o argumento de suposto “interesse coletivo” na discussão.

Faz-se indispensável o rompimento com as premissas do protagonismo judicial, que visam o total enfraquecimento do papel das previsões legais em prol da discricionariedade de atuação do julgador, como canal convergente dos valores da sociedade no processo.

No paradigma do Estado Democrático de Direito, a função jurisdicional é atividade-dever do Estado, prestada pelos órgãos competentes indicados no texto da Constituição, somente exercida mediante a garantia do devido processo constitucional, não havendo legitimidade em decisões como as ora comentadas.

 

 

 

Notas e Referências

[1] A referida situação já havia ocorrido, em 2008, conforme demonstraremos a seguir.

[2] Vide Voto da Ministra: https://www.conjur.com.br/dl/voto-nancy.pdf

[3] Vide Acórdão: https://www.conjur.com.br/dl/acordao-nancy.pdf

[4] Este artigo é resultado do grupo de pesquisa “Processualismo Constitucional democrático e reformas processuais”, vinculado à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais e cadastrado no Diretório Nacional de Grupos de Pesquisa do CNPQ http://dgp.cnpq.br/dgp/espelhogrupo/3844899706730420). Esse grupo é membro fundador da “ProcNet – Rede Internacional de Pesquisa sobre Justiça Civil e Processo contemporâneo” (http://laprocon.ufes.br/grupos-de-pesquisa-integrantes-da-rede)”.

[5] Para melhor compreensão da influência publicista na compreensão do processo e na interpretação dos negócios processuais: FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios Processuais no Modelo Constitucional de Processo. Salvador: JusPodvm, 2016.

[6] Art. 501. O recorrente poderá, a qualquer tempo, sem a anuência do recorrido ou dos litisconsortes, desistir do recurso.

[7] Art. 158 - CPC/73. Os atos das partes, consistentes em declarações unilaterais ou bilaterais de vontade, produzem imediatamente a constituição, a modificação ou a extinção de direitos processuais.

[8] DIDIER JR., Fredie; NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Teoria dos Fatos Jurídicos Processuais. 2. ed. Salvador: JusPodvm, 2013 p. 59

[9] GRECO, Leonardo. Os atos de disposição processual – Primeiras Reflexões. Revista Eletrônica de Direito Processual, 1ª Edição – Outubro/Dezembro de 2007. p. 08.

[10] FARIA, Guilherme Henrique Lage. Negócios Processuais no Modelo Constitucional de Processo. Salvador: JusPodvm, 2016

[11] Com fulcro neste entendimento, Marcela Faria aduz que o artigo 745-A do CPC/73 (Art. 916 do CPC/15) “traz a possibilidade de as partes realizarem verdadeiro negócio jurídico processual unilateral típico. Por meio deste, o executado escolhe como será realizado o pagamento, sujeitando-se aos efeitos determinados pela lei. A despeito de se tratar de um direito potestativo material do executado, este apenas poderá ser exercido no plano processual.” (FARIA. Marcela Kohlbach de. Negócios Processuais Unilaterais e o requerimento de parcelamento do débito pelo executado. In: CABRAL, Antônio do Passo; NOGUEIRA, Pedro Henrique (Coords). Negócios processuais. Salvador: JusPodvm, 2015. p. 288) Em suma, trata-se de um ato decorrente da vontade de uma das partes que produz efeitos diretamente na forma de condução da execução.    

[12] FARIA. Marcela Kohlbach de. Negócios Processuais Unilaterais e o requerimento de parcelamento do débito pelo executado. p. 285.

[13] FARIA. Marcela Kohlbach de. Negócios Processuais Unilaterais e o requerimento de parcelamento do débito pelo executado. p. 285.

[14] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil, V. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense 2008. p. 335.

[15] NOGUEIRA, Pedro Henrique Pedrosa. Sobre os acordos de procedimento no Processo Civil Brasileiro. p. 81.

[16] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. 11ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2005, v.5, p. 333.

[17] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. Comentários ao Código de Processo Civil. p. 90.

[18] DIDIER JR., Fredie. Curso de direito processual civil: introdução ao direito processual civil, parte geral e processo de conhecimento. 17. ed. Salvador: JusPodivm, 2015. p. 379

[19] Art. 200, Parágrafo único. A desistência da ação só produzirá efeitos após homologação judicial.

 

Imagem Ilustrativa do Post:Scales of Justice // Foto de: Michael Coghlan // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/mikecogh/5653819568/

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura