ABDPro #51 - PREMISSAS FUNDAMENTAIS PARA ENTENDER OS PRECEDENTES JUDICIAIS NO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL

26/09/2018

Coluna ABDPro

A edição do Código de Processo Civil incrementou o interesse da doutrina brasileira no estudo dos precedentes judiciais e causou uma mais ostensiva presença do tema na prática jurídica, tanto judicial quanto extrajudicial. Dado esse quadro, é preciso ter uma compreensão adequada sobre o assunto para que não se repristinem velhas e superadas crenças erigidas para o direito legislado, revigoradas pelo único fato de serem inadvertidamente aplicadas ao novo objeto, frustrando a eficácia das recentes disposições legais e prejudicando a exploração de todas as suas potencialidades para solucionar várias dificuldades que a teoria e a prática  impuseram ao Direito mais recentemente.

São apresentados, aqui, três aspectos gerais que devem ser considerados como premissas fundamentais para a devida abordagem da legislação codificada. Naturalmente, não se descem a minúcias, porque não seria este o espaço próprio, mas se deseja chamar atenção para pontos que merecem reflexões mais detidas.

 

1. Precedente é um tema da Teoria Geral do Direito, sendo, apenas em um segundo plano, matéria do direito processual civil ou mesmo da Teoria do Processo.

Antes de se querer aplicar qualquer disposição do Código de Processo Civil, é preciso responder algumas perguntas. O que é um precedente? Toda decisão forma um precedente? Por que e como os precedentes vinculam? Eles são aplicados da mesma maneira como são aplicadas as normas legislativas? Qual as funções dos precedentes no Direito de um modo geral e no direito processual de um modo específico? Essas são apenas algumas das muitas questões a serem respondidas

O uso de casos anteriores é tão comumente integrado na realidade de quem lida com o Direito, que algumas dessas indagações podem parecer simples e óbvias de serem respondidas. Afinal, quem já não fez alusão à jurisprudência ou súmulas em trabalhos acadêmicos, peças processuais ou consultas jurídicas? Tais indagações, no entanto, contêm um grau elevado de complexidade. As respostas que se derem a elas influenciarão firmemente a intepretação e a aplicação das disposições do Código de Processo Civil.

Cada indagação dessa natureza comporta múltiplas respostas, e cada opção trará consequências plenamente diversas – muitas delas mutuamente excludentes – para compreensão dos vários artigos codificados. São questões que extravasam o mero uso dos precedentes como instrumento de uniformização jurisprudencial, demandando investigação sobre os limites jurígenos dos poderes estatais, sobre as fontes do Direito, a teoria da norma e do ordenamento jurídico, hermenêutica e mesmo epistemologia.  

É teoricamente possível considerar um precedente como uma norma do tipo regra, expressa por uma linguagem canônica (ampla e abrangente), expedida apenas por tribunais superiores e em determinados processos previamente indicados em lei, aplicada por subsunção, tendo por função constranger, de cima para baixo, a atividade hermenêutica de todos os julgadores situados no escalão hierárquico inferior, cuja vinculação é imposta apenas pela autoridade da corte emissora e não pelo conteúdo.

Nessa perspectiva, é possível se falar de uma hierarquia rígida dos pronunciamentos do art. 927 do Código de Processo Civil, e que a tese fixada em um IRDR deve ser aplicada como premissa maior de um silogismo jurídico no caso posterior, não podendo o juiz ou tribunal seguinte avaliar se foi uma decisão boa ou ruim, para, assim, considerar sua aplicação ou não, porquanto não poderá interpretar a decisão, mas, quando muito, buscar seus estratos formais, já que inteiramente delineado pela corte emissora, sob pena de ter a decisão cassada por reclamação, e o juiz posterior sofrer sanção disciplinar.

Por outro lado, também é possível teoricamente dizer que o precedente é uma resposta hermenêutica a um caso concreto, que não pode ser encapsulada em uma regra, fruindo de uma vinculação variável no caso posterior, por razões de ordem formal e material (como integridade, coerência e fundamentação), e que é construída em um diálogo entre a experiência hermenêutica do passado e a presente. Isso importa que os pronunciamentos do art. 927 não são estagnados em uma hierárquica fixa, ainda que desfrutem de um peso formal maior que, no entanto, poderá ser compensado por uma menor qualidade material. Sob essa óptica, a tese fixada em IRDR deverá ser compreendida segundo o labor hermenêutico contido no julgamento subjacente, dele não se desprendendo, e reinserido no novo caso não por uma subsunção a partir de seu texto, mas por uma relação hermenêutica.

Como se vê, não é o texto legal que irá apontar as decisões teóricas. Os enunciados normativos não se prestam a tanto, é papel que cabe à doutrina. Por isso, não se pode afirmar que o Código de Processo Civil de 2015 escolheu expressamente qualquer dos vários referenciais teóricos existentes, cabendo aos autores apresentarem suas conjecturas de maneira que melhor compreendam as disposições codificadas entre si, em cotejo com a realidade prática, inclusive jurisprudencial, e o restante da ordem jurídica, sobretudo a Constituição Federal, de modo a erigir uma explicação que abranja todos esses aspectos. Será a maior agudeza desse labor interpretativo a fazer prevalecer a compreensão mais adequada.

Isso não é algo estranho ao processo, pois também acontece com seus vários institutos. Por exemplo, teorizar e descrever as normas de processo, pressupõe, antes, uma teoria geral das normas jurídicas, que subjaz ao estudo, segundo uma teoria geral que englobe todos os ramos jurídicos.

É justamente por ser uma questão de Teoria Geral do Direito que não se pode prescindir de uma análise do tema na tradição inglesa e americana. É certo que o Brasil não está adotando o common law, o que pode ser explicado por inúmeros aspectos, sendo o mais destacado o fato de lá o stare decisis ser uma doutrina erigida pelos tribunais, sem qualquer prescrição constitucional ou legislativa, enquanto, aqui, vêm sendo incrementados os diplomas legais sobre o assunto. Contudo, não se pode relegar as várias décadas de conhecimento teórica erigido naquela tradição, sobretudo porque muitos desafios a serem enfrentados são comuns. Não há, pois, uma importação, mas, certamente, uma convergência para uma evolução comum.

Não lançar luzes sobre esses pressupostos teóricos, ou não querer discuti-los sob o pretexto de ser “a escolha do Código”, é encobrir a discussão e já tomar uma decisão irrefletida, porque causará o trato do tema mediante o senso comum existente, o qual foi moldado em torno de um direito legislado incompatível.

 

2. O Código de Processo Civil não exauriu o disciplinamento dos precedentes, mas enfatiza uma de suas funções acessórias.

Como colocado no item anterior, vários questionamentos acerca dos precedentes judiciais são próprios da Teoria Geral do Direito e se relacionam a aspectos que tocam a ordem jurídica como um todo, e não apenas o direito processual. É possível destacar, exemplificativamente, outros campos de estudos, como a necessidade de se erigir uma nova teoria da separação dos poderes, considerando uma visão renovada da criação jurídica realizada pelo Judiciário, mediante os precedentes. Poderia haver um capítulo do texto constitucional sobre o assunto. No mesmo sentido, é possível expandir o disciplinamento da vinculação dos precedentes para o âmbito administrativo.

Com isso em mente, percebe-se que o Código de Processo Civil de 2015 tratou apenas de uma pequena fração da aplicação e uso dos precedentes, prestigiando sua função de uniformização de entendimentos em processos repetitivos para abreviação do tempo de tramitação. Mesmo no âmbito processual, haveria outros aspectos a serem explorados, como o uso de precedente em casos difíceis, ou seja, em casos que podem não se repetir em quantidade, mas que servem de parâmetro geral para a realização de escolhas axiológicas, que moldam vários outros aspectos da ordem jurídica não diretamente relacionadas ao específico caso decidido. Nem mesmo exauriram-se todas as potencialidades de uniformização, porque nada trouxe sobre decisões conflitantes em premissas jurídicas utilizadas em situações fáticas ou ramos do Direito diversos.

Isso significa que explorar o rico tema dos precedentes orientado apenas pelos enunciados codificados ocasionará um estudo precipuamente formal e bastante restrito, podendo levar a conclusões parciais e incoerentes mesmo com os demais aspectos amplos do tema. Usar e compreender precedentes deve se dar de uma maneira holística.

De fato, o CPC atual enfatiza instrumentos formais como as decisões em casos repetitivos e elege a reclamação como meio para assegurar a vinculação aos precedentes. São instrumentos úteis, sem dúvidas, mas não podem ser superestimados no posicionamento dos precedentes no Direito como um todo, pois efetivam apenas uma função acessória dos mesmos.

A principal função de um precedente é enriquecer o sistema jurídico do ponto de vista hermenêutico, por conter escolhas entre interpretações em conflito ou novos significados surgidos em razão das circunstâncias reais da demanda em julgamento. Somente partindo desse ganho hermenêutico é que se pode falar das funções acessórias, como segurança jurídica (enquanto integridade e coerência) e igualdade, mediante uniformização que evite desintegração ou hiperintegração do sistema jurídico, bem como se abreviem processos mediante economia argumentativa. Explica-se.

Nem toda decisão judicial forma um precedente. Não fosse assim, toda norma legislativa ou constitucional só angariaria plena eficácia após ser confirmada em decisões judiciais, o que é uma afirmação claramente equivocada.

Destaque-se: os precedentes vinculam; assim, se todas as decisões que aplicam normas jurídicas fossem precedentes, haveria, então, normas constitucionais e legislativas que por não terem sido objeto de um julgamento possuiriam uma eficácia menor, pois não contariam com o reforço da vinculação do precedente que as aplicou. Por outro lado, se é afirmado que nem toda decisão forma um precedente, é porque a eficácia das normas constitucionais e legislativas já se impunham autonomamente, emergindo um precedente apenas quando a decisão realiza um papel relevante na solução de conflitos interpretativos em torno dessas normas. O precedente judicial emerge, portanto, pela função autônoma e distinta de trazer um ganho hermenêutico a essas prescrições constitucionais e legais.

É por isso que se define precedente como uma resposta hermenêutica a um caso, que importa ganho interpretativo, sendo sua função principal enriquecer o sistema jurídica mediante a escolha entre significados legais ou constitucionais controvertidos em uma lide ou obtendo sentidos novos à luz de fatos e argumentos não concebidos em uma análise abstrata.

Com esteio nesse ganho hermenêutico, uniformizam-se entendimentos de maneira íntegra e coerente, não apenas em casos repetitivos em um processo ou instrumento processual específico (como IRDR, RESP ou REXT), mas em toda e qualquer decisão futura que, de maneira direta ou indireta, invoque as mesmas questões hermenêuticas.  Somente assim será obtida segurança jurídica em todos os casos – não somente para os repetitivos – e se evitará que o precedente seja aplicado a situações incabíveis (hiperintegração) ou se o deixe de aplicar a situações cabíveis (desintegração).

É por essa razão que são consideradas, aqui, as disposições mais importantes do Código de Processo Civil sobre o tema o art. 489, §1º, V e VI, que estatui quando uma decisão não será fundamentada ao utilizarem-se precedentes, bem como o art. 926, que fornece os critérios substanciais segundo os quais se deve uniformizar a jurisprudência –  de maneira estável, íntegra e coerente.

Portanto, embora não exauriente, e mesmo prestigiando o trato de casos repetitivos, há valiosas prescrições codificadas que orientação seu uso de uma maneira geral no âmbito do direito processual civil.

 

3. Todo precedente vincula, havendo apenas uma variação de sua força por razões de ordem formal e material

Ressalte-se: todo precedente vincula. Isso é uma imposição de ordem substancial, determinada pela racionalidade que subjaz ao Estado de Direito, que demanda coerência e integridade de seus agentes e aplicadores do Direito. Não se pode conceber válido e irrelevante para o Direito um tribunal decidir de uma maneira em um dia e mudar no dia seguinte sem qualquer razão. Também não é racional admitir que um juiz de primeiro grau possa, sem qualquer razão sistêmica para tanto, impor sua particular compreensão sobre uma questão, mesmo estando ela pacificada no âmbito dos tribunais superiores. Ainda que não haja uma prescrição formal e expressa impondo essa vinculação, ela existe por uma imposição principiológica do Estado de Direito Constitucional. Daí por que todo precedente vincula, sendo equivocado dividi-los em vinculantes e meramente persuasivos.

O ponto é saber o que significa essa vinculação e como ela se opera. Em se considerando essa vinculação apenas como um dever formal, porque imposto por uma regra expressa, assegurado por uma sanção disciplinar ou a possibilidade de cassação da decisão, é possível se falar de precedentes não vinculantes, como, por exemplo, os precedentes do próprio tribunal. No entanto, não se pode falar que esse sentido de vinculação seja a que validamente se aplique a um Estado de Direito Constitucional, porque deixaria livre para oscilar em suas decisões a corte mais elevada hierarquicamente.

No Brasil, corresponderia a dizer que o Supremo Tribunal Federal não se encontra vinculado a seus próprios precedentes, podendo variar os critérios decisórios como bem entendesse, o que não procede, justamente por ofender essa dimensão material, que impõe coerência e integridade. Quando o art. 926 do CPC insiste em decisões íntegras e coerentes, não inova na ordem jurídica, apenas explicita imposições subjacentes ao próprio Estado de Direito Constitucional.  Mesmo que não houvesse uma sanção formal a essa desobediência material – e, no Brasil, ela existe, justamente no art. 489, §1º, V e VI –, certamente há uma sanção substancial, como a perda de credibilidade do tribunal ou mesmo do Judiciário como um todo, podendo levar a grave crise institucional. É o que, em certa medida, está em evolução em relação ao STF, muito criticado justamente por oscilação jurisprudencial que causa incerteza, insegurança e um difuso senso de injustiça.

Vincular, portanto, não significa subjugar plenamente a corte posterior ao que fora decidido pela anterior, nem significa um tribunal está inarredavelmente preso aos seus próprios paradigmas pretéritos. Precisamente, vincular se traduz no dever de considerar o que foi realizado no passado mediante análise de forma e de conteúdo, a fim de orientar a decisão presente. Por essa razão, é feliz o art. 927 do CPC ao trazer que os tribunais devem observar as disposições que indica em seus incisos, mesmo dispondo de instrumentos formais (como a reclamação) para fazer valer o entendimento da corte emissora. Observar, nessa linha, significa considerar e somente não reproduzir o mesmo entendimento se houver razões objetivas suficientes, e não o mero entendimento individual dos julgadores seguintes.

Com essa constatação, é possível se falar que um precedente sempre vincula, mas segundo uma força vinculante variável, em uma escala que se inicia em precedentes sem instrumento formais que sancionem a inobservância e estimulem a observância, mas sejam íntegras, coerentes, estáveis, bem fundamentadas, chegando àqueles precedentes que, também com essas características materiais, desfrutem, adicionalmente, dos instrumentos formais de promoção e proteção.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Código de Processo Civil // Foto de: Senado Federal // Sem alterações

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