ABDPro #50 É O JUS POSTULANDI UM ONTOLOGISMO CONCEITUALISTA DIANTE DA EVOLUÇÃO TECNOLÓGICA?

19/09/2018

Coluna ABDPro

1. Restrição conceitual do ius postulandi

A capacidade postulatória aparece na Constituição Federal, capítulo 4, seção III, “Da Advocacia”. Expressamente, põe o art. 133 que “o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei”.

Já o Estatuto do Advogado tem sua redação iniciada com a seguinte estipulação:

Art. 1º São atividades privativas de advocacia:

I - a postulação a qualquer órgão do Poder Judiciário e aos juizados especiais;       

II - as atividades de consultoria, assessoria e direção jurídicas.

Por seu turno, o NCPC, no art. 103, cuida de afirmar: “A parte será representada em juízo por advogado regularmente inscrito na Ordem dos Advogados do Brasil”.

O ius postulandi, como capacidade de postular em juízo, pode ser entendido, de forma analítica, como a capacidade de comunicar informações específicas em juízo, dentro dos limites legais[1].

Para Roberto Campos Gouveia Filho, especificamente, a capacidade postulacional derivaria de uma matriz, a própria capacidade jurídica, dando conta de que o tema está ligado, por derivação, a uma dimensão teórica (teoria geral do direito), imune ao direito positivo - que cuidaria, apenas, da supressão de incapacidades.

De acordo com Araken de Assis, a indispensabilidade do advogado à administração da justiça nasce de uma atribuição cognoscitiva: “lhe incumbe traduzir as aspirações das partes na linguagem jurídica, com o fito de ‘facilitar a obra do juiz no interesse do Estado’”[2].

Pontes de Miranda, por outro lado, fala da “capacidade postulacional” como a atividade da “aposta” no sistema processual do Estado, sendo tal capacidade definida (restrita ou ampliada) pelas regras processuais, diferente do conceito de “advogado”[3]. Guardemos essa distinção.

As últimas acepções podem ser direcionadas, no que, em Gouveia Filho, aparece como “capacidade para a prática válida de atos processuais postulatórios”, ou seja, praticar os atos de solicitação de alguma providência ao Estado-Juiz[4].

2. A afetação do tema pelo paradigma tecnológico

A automação do trabalho jurídico é apenas capítulo do processo geral de automação do trabalho. Assim sendo, ele deve se situar no contexto geral de um horizonte de expectativas, no qual se visualiza, para os próximos 10/20 anos, a substituição do elemento humano das cadeias produtivas (motoras, criativas e intelectuais).

Automação, é, portanto, a retirada do elemento humano de uma cadeia de trabalho, forçando o seu deslocamento para atividades consideradas subalternas (ainda que indispensáveis) e para atividades sofisticadas, cuja história demonstra ficarem restritas a uma elite social seletiva, poderosa e bem remunerada.

Falar de automação do trabalho, portanto, é falar de robôs em chão de fábrica, robôs atendentes e prestadores de serviço doméstico, mas é, também, a lembrança de que processos de automação bem-sucedidos não estão ligados somente a uma disrupção da cadeia - ou seja, uma mudança drástica na forma do trabalho de um setor.

Igualmente, devemos lembrar dos braços mecânicos em instrumentos que já existiam pós-revolução industrial, da aplicação das tecnologias de aumento de produção (e produtividade!), de tecnologias médicas que resolvem doenças com menor invasividade. É a automação que vai sendo absorvida pelo mercado de forma paulatina, evolutiva, aprimorando o trabalho humano e potencializando sua capacidade.

Muito do que se tem hoje, em todos os ambientes, guarda relação com a curva geral de automação da sociedade. O problema principal, no qual o senso comum (e, especialmente o senso comum teórico da classe jurídica), que constitui a mentalidade do profissional do direito (como do cidadão médio), é a ideia de que a automação num processo evolutivo não seria perceptível e a automação disruptiva, por outro lado, seria o verdadeiro e único caso de automação. É Ícaro subindo aos céus, ficando maravilhado com a luz solar, e ignorando que suas asas de cera estão derretendo.

No mundo jurídico, especificamente, a implementação de tecnologias que virtualizam o processo, mudando a forma de gerir autos, de praticar atos etc., já é um esforço de automação - tenham percebido isso os idealizadores ou não. O Processo Judicial Eletrônico (PJe), por exemplo, é um grande banco de dados para a coleta e tratamento de informações processuais. Ao tempo em que ele facilita a indexação e criação de estatísticas processuais fidedignas, ele coloca, no ambiente computacional, o próprio processo, permitindo a criação de programas, com base na “chamada” I.A (inteligência artificial), substituindo os afazeres dos profissionais do direito - do carimbador de processos ao magistrado.

Mas não só de PJe vive esse tema. Sistemas de gestão implementados em escritórios, e, por vezes, tendo como infraestrutura supercomputadores, como o IBM Watson, retiram da dimensão administrativa da atividade jurídica, o elemento humano, antes visto como necessário. Sistemas como Seven ou Merídio apresentam clareza na ordenação de um acervo de causas, erram menos e, em combinação com outras tecnologias, permitem a produção de minutas de petição de forma mais rápida, clara e acertada.

Celeridade, previsibilidade são alguns dos “valores jurídicos”, que aparentam, de acordo com os relatórios mais atuais, terem melhor implementação por máquinas.

3. A mutação no corpo de habilidades do “fazer jurídico”, a partir da vontade da técnica

O fim de setores de trabalho e de segmentos de uma mesma linha não é novidade. A questão é o “além disso”. Se por um lado a automação exige uma discussão sobre o futuro da renda na sociedade – tendo em vista que o recebimento de valores não poderá mais ser atrelado a diversos ramos do trabalho socialmente regulamentado ou não –, também se levanta, de forma urgente, a discussão sobre “para onde” os trabalhadores vão migrar e quais aspectos de trabalhos específicos irão sobreviver, mudar ou passar a existir.

A automação do trabalho jurídico é um fato, uma realidade. Seja em relatórios de empresas como Delloite ou do Mckinsey Global Institute, para citar dois exemplos, a realidade é que: sem levar em conta o potencial evolutivo e disruptivo da tecnologia do futuro (futurologia), com o que existe hoje, já se poderia automatizar 50% das funções de trabalho no planeta.

(Fonte: Mckinsey & Co)

Entre os setores, o jurídico não é exceção. Em adendo, as previsões não garantem a possibilidade de rearranjo dos profissionais no mesmo setor ou, sequer, em setor diverso. A tendência histórica mostra que a automação descamba em demissão em massa (considerados os diversos setores) e mudança, com elitização, das carreiras que se mantém como trabalho viável.

Se de um lado o futuro é a catástrofe, do outro ele demanda o exercício quase futurologista de imaginar o que será útil no horizonte histórico largo? Qual o direito do futuro, então? De pronto, é possível afirmar duas coisas: demandas repetitivas irão desaparecer, em prol de uma atividade de autômatos e as habilidades exigidas pelo mercado irão mudar radicalmente.

Eu gostaria de dedicar especial atenção à mudança de habilidades mencionada. E isso pelo simples fato de que os setores repetitivos serão subjugados pelo processo econômico de adaptação e pela chamada “vontade da técnica” – ou seja, padrões tecnológicos funcionais e úteis serão adotados naturalmente pelas pessoas e empresas, dando à tecnologia a capacidade de fazer aquilo que ela puder fazer em determinado estado da arte, de forma inexorável.

Um exemplo que pode ilustrar esse ponto é a criação do “data officer”. São empresas responsáveis por adequar a atuação de outras empresas e pessoas físicas, através de atividade consultiva, aos regramentos de proteção de dados pessoais - a tão falada GDPR, na Europa, e a lei nacional que está em processo de sancionamento, aqui no Brasil. Advogados poderão investir nessa nova carreira, mas o conjunto de habilidades a ser fornecido difere, fundamentalmente, das catequeses diárias realizadas nas Faculdades de Direito.

De um lado as faculdades insistem num tradicionalismo, envoltas nos dualismos metafísicos, tão criticados por Nelson Saldanha, por exemplo, em “Da Teologia à Metodologia”, que instauram verdadeiras discussões superficiais não apenas no âmbito das disciplinas zetéticas, mas, especialmente, em hipóstases forjadas pelo ensino de cadeiras dogmáticas. Ensino que Pontes de Miranda, ao falar justamente da capacidade postulatória, classifica de “râncido, reacionário, oficial, artificial, superficial, oratório [...]”[5].

Do outro, as profissões jurídicas do futuro demandam: capacidade analítica superior (inerente ao campo da pesquisa), capacidade de manejo de linguagens formalizadas (não apenas matemática, como lógicas - e aqui não apenas a caricatura que é feita ao se falar de lógica deôntica, até o domínio do campo apodítico, lógica fuzzy etc.), capacidade de reconstrução/formalização de dados de fato. Só nesses três corpos de habilidades, já há verdadeira ruptura paradigmática entre a “mentalidade” jurídica atual (ainda e infelizmente!) e as exigências do estrato de tempo futuro.

Apesar de uma visão cética/pessimista, eu não me atrevo a predizer muito mais do que isso, com base em dados já existentes no presente.

4. Fato contra norma e o estado atual do trabalho autômato indiferenciado do trabalho humano

Daí para uma convergência: o ius postulandi, conceituado alhures, corresponde a um direito historicamente situado ou recai em ontologismo conceitualista?

Por direito “historicamente situado”, me refiro a um direito hábil a fazer a conversão do indicativo fático, colhido via atividade científica interdisciplinar, ao imperativo normativo - cuja manifestação social não desaparecerá, mas ganhará contornos diversos.

Por ontologismo conceitualista, entendo a praxis juricialiforme que enxerga haver na norma força para além da realidade fática, ignorando aquilo que Pontes de Miranda chamava “eficácia de segundo grau”, ou “eficácia adaptativa”, afora a eficácia intra-sistemática, dogmática, do mundo dos pensamentos e pela qual o jogo e a lógica jurídica operam.

Fato contra norma: direito que não tem respaldo na realidade, que não tem eficácia social, permanece direito, escudado pela justificativa normativista de sua validez pelo sistema? Ou seu futuro é a esclerose normativa e desaparecimento?

Se a regra processual é a do ius postulandi (capacidade postulacional), pertencente ao ramo mais rente à vida, como tantas vezes é anunciado, mas a definição de advogado escapa a essa dimensão jurídica, como é que sua caracterização, no processo de construção do mundo da “vida vivida” ao mundo do direito, pode ignorar a mudança na estrutura de um labor, ocasionada pela automação?

Em que se diferencia, estruturalmente, o trabalho do advogado e o do robô em decisões de massa e casos fáceis e médios? Parece-me que, em pouco e, no horizonte médio, em nada. A estrutura de um determinado trabalho tem relação com as habilidades empregadas na sua execução. Assim sendo, se um carpinteiro imprime ao seu trabalho uma técnica eficaz que reproduz com exatidão peças em massa para serem vendidas e o robô, empregando uma mimeses do agir humano, consegue as mesmas peças com maior quantidade, qualidade (rebaixando a taxa de erro) e produtividade, qual a escolha racional a ser feita?

Pontes de Miranda nos dá uma luz no imbróglio, dada sua verve sociológica: se o direito está inserido na natureza (conceito largo), sendo possível atribuir às entidades criadas pelo homem “capacidade de ser parte”, como a capacidade postulacional não poderia ser reconhecida àquilo que nasce do engenho do homem, da mesma forma que aos entes despersonalizados é simulada a capacidade humana? Aqui, permitida seja a digressão, o esforço metafórico e inventivo do direito ressalta e claramente se percebe a genética que transpôs do homem ao “criado pelo homem” as formas jurídicas eficazes à gestão da sociedade.

Parece uma afirmação absurda? Escritórios de Pernambuco já percebem que o uso do autômato reduz o risco de erros na redação das petições, aumenta a produtividade e, por outro lado, permite analisar padrões de comportamento dos tribunais, criando verdadeiros gráficos de tendência decisória - não pretendo entrar aqui no aspecto psicológico que as ferramentas impõem ao direito. Inteligências artificiais hoje são capazes de avaliar, com maior precisão, o sentimento envolvido no discurso/ação de humanos, ou seja, o horizonte possível para uma IA reconstruir as nuances da vida vivida ao caso jurídico é infinito[6].

Resta então, com o próprio valor posto no ordenamento jurídico, a pergunta fatal: o que garante o acesso à justiça – expressão doce na boca dos estudantes aos processualistas renomados – efetivamente? Celeridade nas petições e decisões, com menor taxa de erro (menor taxa de erro é a “tradução” à linguagem jurídica, como posto em Araken de Assis) e garantia da resposta jurisdicional conforme os padrões estabelecidos pelo próprio sistema ou a subsistência de uma categoria por escolha político-ideológica?

Pensemos de forma mais comezinha, com a virtualização dos autos, atos do advogado como carga, vistas, já encontram hoje tecnologia apta a mimeses eficaz e cabal - o que levou Gouveia Filho a afirmar que a capacidade postulatória não se confunde com a atividade advocatícia[7].

Por outro lado, na redação das minutas, na análise dos casos, reconstruídos com maior perfeição a cada ano (no chamado “processo de formalização”), a única coisa que salvaguarda o ius postulandi é o ato de criticar o texto e assinar o papel, físico ou eletrônico (salvaguarda que vem sendo atacada cada dia mais por técnicas de aprendizado por máquinas). Mantida a capacidade postulatória, já que a redação é automática, a assinatura derivaria, só e apenas, da pessoa.

Comparemos os casos de dispensa da representação técnica: o escopo valorativo, a proteção da vida pela tipificação (processo de juridificação), a urgência dos casos e a exceção ao conhecimento técnico necessário, em nada diferem dos índices alcançados pelo autômato na execução da maioria dos atos processuais que o humano executa, sempre com menor eficácia. O ordenamento, portanto, excetua a técnica dogmática por uma escolha arbitrária e não fundada em fato - dado que o contexto histórico e horizonte tecnológico mudou radicalmente.

A atividade de “administrador da justiça” mudará o seu sentido, derrotando a pecha (fundada na realidade) de trabalho/classe de trabalhadores existentes devido a um cartel e uma casta. A administração da justiça ganhará contornos e funções diversas, como proposto antes, retirando do mundo um labor que a economia e a vontade da técnica, de forma contundente, vão julgar desnecessário. A tal exigência de um conhecimento técnico, dentro de uma estrutura dogmática lógica, ou seja, passível de formalização, pode ser suprida, portanto, por robôs. O que se afirmar sobre a capacidade postulacional, obviamente poderá ser estendido ao âmbito do gênero do qual ela é espécie, afetando todos os atores do jogo jurídico. 

Ora, o direito contrafático é, em grande medida, contra a sociedade. Aqui cria-se ligação vital entre o processo de automação e o espraiamento do saber jurídico e a livre revelação do direito, conforme lição de Pontes de Miranda. Isso num cenário ideal de acesso ao conhecimento, no qual irão atuar jogos reveladores da crescente elitização do saber e hiperespecialização.

A máquina decretará a vitória do fato contra a norma, num primeiro momento, da vida vivida sobre a abstração opressiva de um direito construído para preservar o próprio castelo. Num segundo (e urgente!) momento, fora do sono dogmático, virá a necessidade de refletir sobre os padrões éticos adotados, a aprendizagem máquina-a-máquina, com as técnicas de machine e deep learning e a reforma do direito na sociedade homem-máquina.

Contudo, para tal estágio de democracia e espraiamento do saber jurídico, é imprescindível o “acordar dos juristas”, fora da cristalização histórica de uma estrutura de saber, conceitual e mentalidade do passado. Entre o real e o virtual, não poderemos contar com Morfeu para realizar essa façanha.

 

Notas e Referências

[1] Quem vem estudando, no Brasil, o processo como comunicação, a partir de Niklas Luhmann, é, também, Roberto Campos Gouveia Filho.

[2] ASSIS, Araken de. Processo civil brasileiro. Volume II. - 2. ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2016.

[3] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I. - Rio de Janeiro, Forense; Brasília, INL, 1973, p. 247.

[4] Gouveia Filho, Roberto Pinheiro Campos. A capacidade postulatória como uma situação jurídica processual simples: ensaio em defesa de uma teoria das capacidades de direito. Dissertação (Mestrado) - Universidade Católica de Pernambuco, 2008.

[5] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo I. - Rio de Janeiro, Forense; Brasília, INL, 1973, p. 240.

[6] Cf. Havard Business Review. 3 Ways AI Is Getting More Emotional. Disponível em: <https://hbr.org/2018/07/3-ways-ai-is-getting-more-emotional>.

[7] Op. cit. p. 118.

 

 

Imagem Ilustrativa do Post: Close up Courthouse hammer // Foto de: Pixabay // Sem alterações

Disponível em: https://www.pexels.com/photo/close-up-court-courthouse-hammer-534204/

Licença de uso: https://www.pexels.com/creative-commons-images/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura