ABDPRO #49 - O PROCESSO CIVIL BRASILEIRO E SEU DESAFIO PÓS-REFORMA

12/09/2018

Coluna ABDPro

Átrio

Quando recebi o convite para escrever neste espaço destinado à Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro, passei um bom período decidindo sobre a escolha do assunto que seria problematizado através desta coluna. O ponto de partida: era preciso falar de processo, claro. Neste contexto, era tentador escrever sobre jurisdição, quando o tema central de sua pesquisa, o que acontece no meu caso, sempre foi a discussão que envolve o papel do Judiciário e os limites de sua atuação[1].

Ao mesmo tempo, enraizada e influenciada por uma tradição que encontra na intenção filosófica elementos para a reflexão jurídica (a Crítica Hermenêutica do Direito, referencial teórico desenvolvido por Lenio Streck[2]), seria confortável que a escrita seguisse o caminho das discussões de fundo (aquelas que versam sobre pressupostos jurídicos), algo que gira em torno dos debates próprios da Teoria do Direito. O rascunho (mental) da proposta deste texto, então, tendia a seguir dois rumos diferenciados de abordagem: um de cunho institucional (sobre o Judiciário e suas capacidades) e outro, paradigmático.

 Seguindo essas duas possibilidades de roteiro, não seria tarefa complicada demonstrar como as alterações legislativas processuais civis recentes (que, até pouco tempo atrás, em seu conjunto, levavam conhecidamente o nome de “Novo CPC”) institucionalizaram e refinaram critérios para atuação do Judiciário (a partir da introdução de dispositivos como o 489 e seus parágrafos, por exemplo). Também não seria difícil trazer aqui as importantes considerações que a Teoria do Direito (Processual Civil) vem construindo como reflexão jurídica (seja antes ou depois da última reforma legislativa neste âmbito). Qual poderia ser o desafio, então? Construir unidade – e o desafio, neste caso, no caso de uma análise crítica do processo civil brasileiro, não é apenas textual (sobre como construir melhor esta coluna), mas prático, como veremos a seguir.

 

O filme “A Origem” (“Inception”) e a construção de uma metáfora

Em “A Origem” (“Inception”)[3], Dom Cobb (interpretado por Leonardo DiCaprio no filme) é uma personagem dotada de uma capacidade extraordinária: acessar o inconsciente das pessoas durante o sonho, implantando ideias. Por isso o nome original do filme na língua inglesa: inception. Este processo é composto basicamente por três estratégias, todas elas executadas com profissionalismo em um plano onírico: a existência de um cenário perfeito (um ambiente propício, elaborado inclusive com a participação de arquitetos); a apresentação de uma ideia pronta de modo natural; e a criação, de forma muito tênue e não aparente, do necessário discurso de convencimento no imaginário da pessoa, que é articulado por intermediários conscientes da importância de seu papel e das consequências de suas atitudes para atingir um fim, a implantação da ideia.

Considerando esses elementos de contextualização, que são o cerne da trama, em determinada cena, Dom Cobb, estabelecendo um diálogo com outra personagem (Arthur), questiona sobre qual seria o parasita mais resistente, sugerindo: “Uma bactéria? Um vírus? Um verme intestinal?”. Na sequência, sem muito esperar a iniciativa de seu interlocutor na apresentação de respostas possíveis ao seu questionamento, ele mesmo replica: “Uma ideia. Resistente e altamente contagiosa. Quando uma ideia se apossa do cérebro, é quase impossível erradicá-la. Uma ideia totalmente formada e compreendida, penetra fundo e fica na mente, em algum lugar”.

O roteiro deste filme é muito interessante e suscita reflexões com distintos recortes teóricos (que vão além da leitura que aqui se pretende realizar). No entanto, associando o diálogo de Dom Cobb transcrito acima com o desenvolvimento de uma reflexão jurídica, a ênfase ganha um objetivo muito claro: a crítica à naturalização de discursos no Direito brasileiro, que impedem e criam obstáculos a importantes transformações e avanços, rupturas com o status quo. Aliás, não por acaso, a fala final de Dom Cobb faz lembrar a seguinte crítica de Lenio Streck em relação ao Direito brasileiro: “Um comportamento que se naturaliza leva muitos anos para ‘desnaturalizar’. Transforma-se em dogmática, eliminando o tempo e as coisas [...]”[4].

Brincando um pouco com a metáfora construída através do filme, a afirmação de Streck poderia quase perfeitamente ser encaixada como parte do diálogo de Dom Cobb. A diferença está no tom (ou nas distintas finalidades): o jurista se pronuncia com desânimo e tom crítico diante desta realidade; a personagem, no entanto, com o brilho da ambição nos olhos de quem é profissional na arte de implantar ideias. Ou seja, Streck, ao longo de sua trajetória acadêmica, vem apontando para os efeitos nocivos de uma ideia enraizada acriticamente (sem o despertar reflexivo), tematizando, como forma de combater discursos de naturalização, a importância de revolver os sentidos, o que, numa linguagem heideggeriana, aponta para a necessidade de revisitar os pré-conceitos acumulados nas transformações da linguagem ao longo dos tempos.

Assim, a associação elaborada a partir de “A Origem” pode ser útil para problematizar algo que está no cerne da ideia de avanços jurídicos: quais são as condições necessárias para que ocorra uma verdadeira ruptura em relação a certos temas no Direito? Como é possível fazer a travessia que rompe com concepções, conceitos ou ideias que aparecem, no cenário jurídico (em especial, da dogmática processual civil), como naturais e pouco questionáveis? A aproximação feita com este filme não é capaz de responder a estas inquietações, mas, certamente, através dela, chega-se àquilo que constitui o seu contrário: um discurso naturalizado fixa-se no imaginário pela ausência de elementos de provocação – eles se tornam, na verdade, invisíveis. Diante de uma ideia implantada, a dúvida, então, é inexistente, porque não se pensa sobre ela, porque ela se torna padrão.

 

Por que isso importa para o Processo Civil brasileiro?

A Constituição completa 30 anos agora, em 2018. Por mais que ela seja o fundamento de todo o sistema jurídico brasileiro (há 30 anos!), alguns elementos constitucionais, elevados inclusive ao status de direito fundamental, foram desconsiderados (ou não levados tão a sério, para se aproximar de uma terminologia dworkiniana) em diversas áreas do Direito brasileiro. Neste sentido, é possível dizer que as recentes mudanças legislativas que ocorreram no Processo Civil fizeram parte de um contexto de constitucionalização abrangente, ou melhor, de busca pela concretização do projeto constitucional de modo amplo, invadindo, como mote e consequência, a esfera processual civil.

Com isso, é possível dizer que, para além das alterações que mais claramente aparecem como próprias da sistemática processual (aquelas relacionadas às experiências jurisdicionais cotidianas, como é o caso das modificações atinentes à interposição de agravo, por exemplo), parcela considerável das medidas de reforma fazem parte de um movimento de atualização e de adequação processual (civil) ao que a Constituição brasileira já havia instituído desde 1988. Mas o que se quer dizer com isso, que a promulgação da Constituição foi incapaz de impactar o Direito Processual Civil brasileiro? Não exatamente, afinal de contas, a Teoria do Direito Processual Civil vem produzindo doutrina crítica há algum tempo, mesmo antes de 2015 (quando foi dado início às mudanças estruturais), a partir da noção de constitucionalismo forte, que se irradia para todas as esferas do Direito, de modo normativo e, por isso mesmo, vinculante. O que se pretende evidenciar, sim, é que qualquer tipo de avanço jurídico depende de uma série de condições, que possuam, pelo menos, duplo alcance: institucional e teórico (paradigmático).

O atual Código de Processo Civil trouxe uma série de novos mecanismos institucionais capazes de promover a coerência da legislação processual civil com a Constituição brasileira. A existência deste processo de ruptura institucional no Brasil relacionada ao processo (lato sensu) foi – e ainda é, veja-se o caso dos projetos de reforma do Código de Processo Penal – fundamental para superar velhos contextos legislativos. Mas é preciso compreender que, paradoxalmente, grandes transformações não se concretizam simplesmente com o surgimento de novos textos. Assim, fica claro que, para que aconteça um efetivo rompimento com o status quo, é necessário, além de uma mudança que se opere no âmbito da institucionalidade, a construção de um imaginário social que incorpore esses avanços, o que depende da existência de uma postura reflexiva que seja capaz de atribuir sentido às modificações ocorridas, materializando, desse modo, o projeto constitucional-processual. Aliás, como mesmo afirma José Reinaldo Lima Lopes[5], diante de processos de transformações radicais (que poderíamos também chamar de profundas), há duas posturas possíveis a serem seguidas: de rejeição, pela qual se procura um retorno aos modelos tradicionais (numa negativa às alterações); ou de aceitação, o que exige a busca por compreender os sentidos que podem ser atribuídos ao movimento ruptural, numa espécie de compreensão de seu significado.

 

Encerramento

A primeira parte deste texto foi escrita sob um título específico: átrio. Átrio, em termos de arquitetura, pode ser o local de entrada de um prédio, a peça que lhe dá acesso por primeiro, uma recepção, por assim dizer. Contudo, átrio também é parte do coração, sob a responsabilidade de transportar o sangue para o resto do corpo. De um modo ou de outro, resta caracterizada a pretensão da escolha do nome – é algo fundamental.

Assim, para além de tudo o que foi exposto, no átrio desta coluna está a questão fundamental que move sua escrita, que agora aparece de forma conclusiva: se quisermos avançar sincronizados com as alterações institucionais que foram tão significativas para o processo civil brasileiro (como reforma estrutural ao Código de 73), é preciso também construir uma prática que dê conta disso, o que, inevitavelmente, passa por um processo de ruptura com certos discursos de naturalização que circundam a doutrina do direito processual civil brasileiro, como é o caso da crença de que a verdade é fruto tão-somente de elementos fáticos-probatórios ou, então, em sentido contrário, da consciência do juiz.

Em outras palavras, conquistas institucionais devem ser aliadas a discussões teóricas paradigmáticas, que sejam capazes de movimentar e mobilizar a comunidade jurídica em debates que objetivem compreender sua importância, modificando, assim, o imaginário jurídico e, fundamentalmente, a prática dos atores que fazem parte deste contexto. Em relação ao direito processual civil brasileiro, o grande passo (institucional) já foi dado; resta agora uma caminhada rumo à assimilação dessas mudanças. Como dito no átrio, é preciso dar unidade: é necessário que aspectos institucionais sejam aliados à compreensão do que eles significam no contexto de uma nova Teoria do Direito (Processual), possibilitando, assim, práticas convergentes. Este é o desafio.

 

Notas e Referências

[1] TASSINARI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites à atuação do Judiciário. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[2] STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: quarenta temas fundamentais da teoria do direito à luz da Crítica Hermenêutica do Direito. Belo Horizonte:

[3] A ORIGEM. Direção: Christopher Nolan. Produção: Christopher Nolan, Emma Thomas. Produtoras: Legendary Pictures, Syncopy. 2010.

[4] STRECK, Lenio Luiz. O Rubicão e os quatro ovos do condor: de novo, o que é ativismo? In: ______; ROCHA, Leonel Severo; ENGELMANN, Wilson (Orgs.). Constituição, sistemas sociais e hermenêutica: anuário do Programa de Pós-Graduação em Direito da Unisinos – mestrado e doutorado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2016. n. 12. p. 97-104. Especificamente, p. 102.

[5] LOPES, José Reinaldo de Lima. O direito na história. 2. ed. São Paulo: Max Limonad, 2002. p. 17.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Código de Processo Civil // Foto de: Senado Federal // Sem alterações

Disponível em: https://www.flickr.com/photos/agenciasenado/22622155783

Licença de uso: https://creativecommons.org/publicdomain/mark/2.0/

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

Sugestões de leitura