ABDPro #38 - Ainda a polêmica sobre as medidas executivas atípicas: entre a efetividade e o processo como garantia democrática

20/06/2018

                    Coluna ABDPro

                        Certamente um dos temas mais polêmicos do Novo CPC, a previsão de medidas executivas atípicas no conjunto de poderes do juiz tem despertado grande interesse da comunidade jurídica. No plano do cotidiano forense, a criatividade tem sido pródiga: corte de energia elétrica de órgãos públicos, suspensão de serviço de redes sociais, bloqueio de contas e cartões de crédito, sequestro de verbas públicas em demandas de saúde, proibição do uso da área de lazer pelo condômino inadimplente etc. Parte da doutrina, em aval ao movimento pela efetividade a qualquer custo, passou a defender a possibilidade de adoção indiscriminada de técnicas de execução indireta, como apreensão do passaporte e/ou de carteira nacional de habilitação do executado, proibição de viajar, proibição de participar de concurso público ou de licitações públicas, entre outras. 

                     O assunto começa a bater às portas do Superior Tribunal de Justiça. Nos três primeiros habeas corpus ou recursos deles decorrentes que ali aportaram, a matéria de mérito não chegou a ser enfrentada sob o argumento de inadequação da via eleita (HC 428.553-SP, RHC 88.490-DF e HC 439.214-RJ). No último dia 05 de junho, porém, o RHC 97.876-SP, por decisão da lavra do Min. Luís Felipe Salomão, foi conhecido, pelo menos no tocante à apreensão de passaporte, dada a circunstância de que tal restrição, segundo o julgado, limita a liberdade de ir e vir. O primeiro pronunciamento da referida corte, felizmente, representou um alento para aqueles que enxergam o processo como uma garantia do cidadão contra o Estado, e não um mero instrumento a serviço da jurisdição[1].

                     De modo geral, pode-se dizer que o CPC de 2015 teve como uma de suas preocupações fundamentais a construção de um processo eficiente, atribuindo à parte o direito a uma decisão de mérito justa e efetiva (art. 6º). Nesse particular, o processo executivo sempre foi um dos maiores desafios em tema de entrega da prestação jurisdicional. É que a decisão não pode estar voltada exclusivamente à declaração do direito, sendo imprescindível o desenvolvimento de técnicas adequadas à efetividade do processo.

                   No tocante às novidades de maior relevo, merece destaque o famigerado inciso IV do art. 139, que autoriza o uso de qualquer medida voltada à efetivação da decisão judicial, inclusive em demandas de caráter pecuniário (tutela ressarcitória). Instituiu-se um “dever-poder geral executivo” que, ao lado da tipificação feita pelos arts. 513 a 538, disciplinadores do cumprimento de sentença, dirige-se à efetivação da tutela jurisdicional a partir de mecanismos que se apresentem como mais adequados para a satisfação da obrigação. Nesse ponto, é importante ressaltar que a atipicidade dos meios executivos não se consubstancia em uma regra aplicável a priori. Ao contrário, a regra do sistema continua a ser o da tipicidade dos meios executivos, embora mitigada pelo sistema atípico[2], cujo uso está autorizado quando frustrados todos os meios executivos típicos disponíveis.

                   O artigo 139 do CPC/2015, em seus incisos III e IV, define as medidas processuais punitivas e medidas processuais executivas aplicáveis ao processo civil brasileiro. Conquanto guardem os incisos relação de pertinência entre si, ali estão separadas duas modalidades de atuação distinta do magistrado. A partir deles, é possível aplicar medidas de coerção para viabilizar a execução das ordens judiciais (coercitive power) ou impor sanções (civil or criminal contempt) pelos atos de improbidade processual, como manifestação do contempt of court.

                   Não obstante, há que se ter em conta que a expressão para assegurar o cumprimento da ordem judicial revela a natureza instrumental da medida, que servirá como meio para se obter um resultado pretendido. Significa dizer que deve haver um liame necessário, lógico e razoável de instrumento e fim entre a medida coercitiva e o cumprimento da determinação judicial. Imposição de medidas que não obedecem a esse nexo etiológico mais se aproxima das medidas punitivas – que devem atingir fatos pretéritos e que obedecem à regra da tipicidade – do que de medidas coercitivas – que buscam a realização de um ato futuro e que não foram aprioristicamente elencadas pelo legislador[3].

                   Não por outra razão o uso dos mecanismos de pressão deve estar associado à real possibilidade de adimplemento da obrigação. Uma vez utilizados todos os meios típicos disponíveis visando à satisfação do direito do credor, o juiz somente estará autorizado a se valer dos meios atípicos se eles forem concretamente eficazes na tentativa de gerar o cumprimento. Se não há elementos que demonstrem ocultação patrimonial, existindo indícios de que o descumprimento se deve a uma manifesta impossibilidade financeira do devedor, não se revela legítima qualquer tentativa de constrangimento incapaz de gerar resultados concretos para a prestação jurisdicional.

                   Não se deve olvidar, também, que a contraface do maior poder de efetivação é o aumento do ônus argumentativo para o magistrado, como, aliás, infere-se do art. 489, § 1º, II, do CPC/2015, que alude à aplicação de conceitos jurídicos indeterminados. É dizer, antes de se valer da medida atípica o juiz deve justificá-la, demonstrando sua aplicação subsidiária e a relação de pertinência com o resultado almejado, notadamente quando o processo executivo se encontra informado pela diretriz da menor onerosidade possível (art. 805, CPC/2015).

                   Aliás, em relação a esses conceitos vagos, é importante lembrar que sua interpretação parte de um processo de qualificação da realidade. Longe de ser uma questão de natureza meramente semântica, o resultado de sua interpretação é um problema jurídico[4], de modo que esse resultado deve ser construído a partir de argumentos da mesma natureza, observando os limites impostos à atuação estatal pela Constituição e pelas leis. Com efeito, as diretrizes democráticas do processo moderno impedem que se atribua uma interpretação totalmente utilitarista ao dispositivo, de maneira a autorizar o juiz a adotar, a partir de argumentos econômicos, morais ou éticos, qualquer medida restritiva.

                   O dispositivo, de todo modo, impõe um desafio interpretativo no tocante à definição dos limites de atuação do magistrado, que obviamente não exerce competência discricionária. No ponto, impõe-se aqui o uso das técnicas de controle de constitucionalidade a fim de emprestar um sentido constitucionalmente válido à norma, especialmente a declaração de nulidade parcial sem redução de texto, de modo a excluir do espectro de sua abrangência situações que importem em malferimento de direitos fundamentais[5].

                   A lei, como é óbvio, deve ser compreendida à luz da Constituição, e não o contrário. No Direito contemporâneo, há uma pretensão imanente em favor do cidadão de não se ver limitado – a não ser na perspectiva patrimonial – em razão de dívida. Não se vislumbra possível que uma obrigação patrimonial possa ser satisfeita, ainda que indiretamente, por meio de medidas que recaiam sobre a pessoa do executado, especialmente quando se intenta estabelecer, a título de medida coercitiva, sanções que em processos penais ou ações de improbidade somente são cabíveis após juízo definitivo de cognição exauriente, assegurada a ampla defesa.

                  Ademais, a norma precisa ser interpretada em seu contexto sistêmico, de maneira que não se admite a adoção de medidas restritivas que importem, por via oblíqua, no aniquilamento de regras sobre impenhorabilidade de bens, por exemplo (art. 833, CPC/2015). Um balizamento importante, nessa ótica, pode ser feito a partir da pesquisa de fontes normativas que eventualmente já prevejam medidas específicas diversas. Outras providências heterodoxas, por sua vez, correm o sério risco de cair no nebuloso campo do arbítrio judicial.

                   Portanto, tais medidas, para serem legítimas, devem atender aos seguintes requisitos: (i) adequação, no sentido de que exista real possibilidade de que seu uso leve ao cumprimento específico da obrigação; (ii) necessidade, segundo a qual a medida eleita enseje o menor prejuízo possível ao devedor, consistindo no estritamente necessário para a efetividade do processo; e (iii) proporcionalidade, de maneira que o juiz, antes da escolha, sopese as vantagens e desvantagens de sua aplicação[6].

                   Ganha relevo no exame das medidas executivas o papel do diálogo entre juiz e partes, próprio do modelo cooperativo de processo. É que, antes de medidas unilaterais adotadas pelo magistrado, é possível que a aplicação da cláusula geral de negócio processual do novo estatuto (art. 190) gere resultados mais efetivos quanto ao cumprimento escalonado de dada obrigação[7]. Nesse sentido, é possível construir-se um quadro programático de cumprimento de decisões judiciais em diversas questões sensíveis, como o fornecimento de medicamentos ou tratamento médico, reintegrações de posse, recuperação ambiental etc., inclusive a partir de medidas estruturantes em demandas de maior complexidade[8] [9]. Essa perspectiva é capaz de gerar um processo de constante aprimoramento das decisões judiciais, tornando o processo decisório mais dinâmico com vistas a uma solução ajustada ao problema da efetivação de direitos[10].

            Finalmente, não se pode olvidar que o quadro crônico de inadimplência e dificuldade de recuperação de crédito no Brasil é também um problema metajurídico (política de concessão de crédito, carga tributária, crise econômica etc), que, como tal, ultrapassa o limite do Direito e das soluções que ele pode engendrar. A efetividade é um valor importante, mas não pode ser inimiga da sensatez, nem conquistada a qualquer preço, ainda que se reconheçam as boas intenções que norteiam o uso das providências voltadas à entrega do bem da vida perseguido. Aliás, sobre a lógica dos fins justificando os meios, o problema é que “ser bom é fácil; difícil é ser justo.” (Inspetor Javert, no romance “Os Miseráveis”, de Victor Hugo).

            Qualquer interpretação elastecida do dispositivo, portanto, redundará em retrocesso social aos tempos do Direito medievo, em que o sujeito pagava sua dívida com a liberdade ou com a própria vida. Essa perspectiva é importante para que o Direito não se afaste do seu locus originário, que é a tutela das garantias fundamentais de todo cidadão, entre as quais está o valor civilizatório que anima o devido processo legal.

[1] Embora a divulgação nas redes sociais tenha sido no sentido de que o STJ “autorizou” a apreensão da CNH, o fato é que daquela decisão apenas se pode extrair que, por ausência de restrição ao direito de locomoção, o remédio constitucional não seria o meio adequado para o enfrentamento do tema. Partimos, pois, de uma premissa “otimista” da posição inicial do STJ, de maneira que, uma vez manejados os instrumentos processuais cabíveis, aquela corte poderá agir na tutela dos direitos fundamentais em sua inteireza (remedies precede rights, diriam os ingleses). 

[2] MEDINA, José Miguel Garcia. Novo código de processo civil comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 241.

[3] “Não nos parece que seja lícito ao magistrado – ainda que esteja legitimamente bravo e irritado e indignado com os atos processuais do executado cafajeste – possa, incorretamente, denominar de ‘medida coercitiva’ uma ‘medida sancionatória’ e, com base na atipicidade de meios executivos, inventar uma medida processual punitiva atípica, portanto, que esteja fora do rol de sanções desta estirpe previstas pelo legislador. Não pode haver uma sanção, seja ela processual ou não, sem prévia lei que a defina, e sem contraditório ou devido processo que permita alguém contra ela se defender; [...]”. (RODRIGUES, Marcelo Abelha. O que fazer quando o devedor é um cafajeste. Apreensão de passaporte? Da carteira de motorista? Migalhas. 21 set. 2016. Disponível em: <http://m.migalhas.com.br/depeso/245946/o-que-fazer-quando-o-executado-e-um-cafajeste-apreensao-de-passaporte>. Acesso em: 18 jun. 2018. 

[4] Nesse sentido, cf.: MEDINA, José Miguel Garcia; WAMBIER, Luiz Rodrigues; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim. Repercussão geral e súmula vinculante. Relevantes novidades trazidas pela EC n. 45/2004. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coord.). Reforma do Judiciário. Primeiras reflexões sobre a Emenda Constitucional n. 45/2004. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 373-389.

[5]  Nesse sentido parece caminhar a recente ADI ajuizada pelo Partido dos Trabalhadores (ADI 5941), subscrita pelo processualista Guilherme Pupe da Nóbrega.

[6] Em sentido semelhante caminha a doutrina de Roberto Sampaio Contreiras de Almeida: ALMEIDA, Roberto Sampaio Contreiras de. Comentários aos arts. 139-143. In: WAMBIER, Teresa Arruda Alvim et al. (Coords.). Breves Comentários ao Novo Código de Processo Civil. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2015, p. 452.

[7] Na mesma linha de raciocínio, STRECK, Lênio; NUNES, Dierle; RAMOS NETO, Newton Pereira; FREIRE, Alexandre. Comentários ao art. 139. In: Lenio Luiz Streck; Dierle Nunes; Leonardo Carneiro da Cunha; Alexandre Freire. (Org.). Comentários ao Código de Processo Civil. 2ed. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 224.

[8] As chamadas structural injunctions (medidas estruturantes) têm origem no direito norte-americano. Sua concepção deriva da necessidade de se dar efetividade às decisões judiciais, a partir da flexibilização de procedimentos voltados à adequação das decisões às peculiaridades dos casos concretos, tendo sido desenvolvida a partir de estudos apresentados pelo professor Owen Fiss, da Universidade de Yale (FISS, Owen M. The civil rights injunctions. Indiana: Indiana University Press, 1978. Disponível em: <http://www.law.yale.edu/documents/pdf/Faculty/injunction.pdf>. Acesso em: 26 ago. 2016). O juiz atua como verdadeiro gestor do cumprimento do comando judicial, podendo adotar medidas progressivas, a partir do diálogo com as partes, voltadas à materialização do julgado, sempre respeitado o devido processo legal. Sobre o tema, vide: JOBIM, Marco Felix. Medidas estruturantes: Da Suprema Corte Estadunidense ao Supremo Tribunal Federal. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2013.

[9] Sobre o tema, vide também: COSTA, Eduardo José da Fonseca. A “execução negociada” de políticas públicas em Juízo. Revista de Processo: RePro, v. 37, n. 212, p. 25-56, out. 2012. THEODORO JR., Humberto; NUNES, Dierle; BAHIA, Alexandre. Litigância de interesse público e execução comparticipada de políticas públicas. Revista de Processo: RePro, v. 38, n. 224, p. 121-152, out. 2013.

[10] Nesse sentido, cf.: STRECK, Lenio Luiz. Como interpretar o artigo 139, IV, do CPC? Carta branca para o arbítrio? Consultor Jurídico. 25 ago. 2016. Disponível em: <http://www.conjur.com.br/2016-ago-25/senso-incomum-interpretar-art-139-iv-cpc-carta-branca-arbitrio#_ftnref2>. Acesso em: 25 ago. 2016.

 

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