ABDPRO #34 - A IGUALDADE PROCESSUAL COMO PROBLEMA NORMATIVO

23/05/2018

 

Coluna ABDPRO

Tenho repetido como um mantra: o processo é uma garantia individual de liberdade dos jurisdicionados, não um instrumento a serviço da jurisdição. Interpõe-se entre o juiz e as partes para impedir o exercício abusivo da função jurisdicional pelo Estado ou por quem lhe faça as vezes. Não por outra razão é tratado sob a alcunha do «devido processo legal» no Capítulo I do Título II da CF-1988 («Dos direitos e deveres individuais e coletivos»). Por exclusão, não se trata de uma «garantia social de igualdade entre os jurisdicionais». Não é o processo tratado no Capítulo II do Título II da CF-1988 («Dos direitos sociais»). A pretensão fundamental ao processo habita a zona das liberdades civis e políticos [direitos fundamentais de primeira dimensão], não dos direitos sociais, econômicos e culturais [direitos fundamentais de segunda geração]. Sua função axial é resguardar liberdade às partes, não promover igualdade entre elas. Segundo FERMÍN CANTEROS, a desigualdade socioeconômica, a qual pode tornar uma parte mais forte que a outra, «por más que duela en la alma, no puede ser purgada por el proceso» (Estructura básica de los discursos garantista y activista del derecho procesal. Rosário: Juris, 2012, p. 33). No entanto, imersa em desigualdade aviltante, a liberdade se arruína. Não é livre quem é subjugável. Logo, para que o procedimento civil seja método efetivo de livre debate, é primordial que se abandone o niilismo e que as partes possam estar, na medida do possível, em «paridade substancial de armas». Enfim, o ideal é que o autor e o réu tenham iguais recursos de tempo, dinheiro e habilidade (cf., p. ex., HAACK, Susan. Justice, truth and proof: not so simple at all. RBDPro 99, p. 15-41: «[...] the ‘Invisible Hand’ justification of adversarial procedures seems to require that the two sides have at least roughly equal resources of time, money, and skill, so that the factual issues at stake will be thrashed out by well-matched adversaries. But this is rarely true in practice. On top of which, the U.S. legal culture is so strongly adversarial that it can encourage attorneys anxious to win not only to challenge and probe the weaknesses in the other side’s evidence, but to use the same skills to more dubious ends: to make solid witnesses look shifty, to find ways to conceal or spin inconvenient evidence they can’t get excluded;  or to use the discovery process  to their partisan advantage—burying the other side in paper, for example, or delaying the production of essential material.»).

Tarefa complexa, porém, é delimitar a) quando demandante e demandado são desiguais entre si [«hipótese de incidência»; al.: Tatbestand; it.: fattispecie, situazione-tipo] e, uma vez constatada a desigualdade, b) quais medidas de equalização se pode ou se deve tomar [«consequência jurídica»; al.: Rechtsfolge; it.: statuizione, disciplina]. Ou seja, problema difícil é sacar do extrato infraconstitucional regras legais expressas que concretizem o princípio constitucional da igualdade (CF, art. 5º, caput). Afinal, é incogitável que juízes o apliquem per saltum: sem intermediação legislativa, a igualdade à tout prix se torna um frouxo projeto invertebrado e, por conseguinte, um perigoso arco-e-flecha nas mãos do juiz-Robin-Hood.

Inexiste no sistema uma «regra geral de equalização processual». O legislador do CPC-2015 foi prolífico na esquematização de «cláusulas gerais» de boa-fé processual (art. 5º), cooperação processual (art. 6º), negócios processuais (art. 190), tutelas de urgência (art. 300), etc. Mas, embora movido por um «publicismo social-gerencial», descurou de uma «cláusula geral de igualação». Com isso, cada juiz se torna uma fonte equalizadora desregulada e, assim, um risco sistemático de arbitrariedades. Ou seja, cada juiz se torna um microlegislador indômito e desparametrizado, que cria ao léu regras casuísticas de igualização inter partes. Nesse sentido, a práxis quotidiana da igualação não passa de uma caprichosa pseudociência ad hoc. Uma atitude preliminar e ordinária, sem fundamento epistêmico. Alguns setores doutrinários tentam instituir critérios dogmáticos de vulnerabilidade: 1) insuficiência econômica (hipossuficiência); 2) existência de insuperáveis óbices de índole geográfica; 3) ocorrência de debilidades na saúde e/ou no discernimento; 4) configuração de dificuldades técnicas por desinformação pessoal quanto a matérias jurídicas e probatórias relevantes (ignorância acerca do direito material, desconhecimento sobre normas processuais, ausência de advogado, deficiências na atuação probatória); 5) incapacidade de organização (disparidades estruturais entre os litigantes, litigantes desprovidos ou removidos de um lar, vulnerável cibernético) (TARTUCE, Flávia. Igualdade e vulnerabilidade no processo civil. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 189-218). Todavia, trata-se de critérios de iure condendo, não de iure condito. Quando muito podem inspirar o legislador no futuro, não o juiz no presente.

Não sem razão a concretização judicial da igualdade processual é há tempos terra-de-ninguém. À míngua de uma cláusula geral clara, juízes com vocação messiânica insistem em definir - de modo unilateral, improvisado e obscuro - quem é o vulnerável e quais medidas protetivas lhe podem dispensar. Sob o signo da intransparência, impedem a parte contrária de qualquer controle sobre esse juízo de vulnerabilidade. Logo, enquanto não se editar uma regra geral e abstrata bem estruturada, os juízes jamais serão constrangidos a emitirem uma «declaração fundamentada de hipossuficiência». Em consequência, jamais terão suas decisões redarguidas pela parte prejudicada. Quando declara que a parte é «hipo-suficiente» porque presentes os pressupostos legais, o juiz permite que a contraparte - a correlata «hiper-suficiente» - eventualmente impugne o dictum alegando a ausência desses pressupostos. E, permitindo-se essa sindicância, atende-se ao tão menoscabado princípio republicano.

Contudo, não é fácil redigir um dispositivo que expresse - em conceito unívoco - todas as situações possíveis de desigualdade entre as partes. A (des)igualdade é o resultado da (1) comparação (2) de um traço comum (3) entre dois entes (4) a partir de um determinado critério, (5) dês que o aludido traço seja mensurável qualitativa ou quantitativamente. No âmbito procedimental civil, geralmente, quando se pensa em desigualdade, pensa-se em vulnerabilidade ou fragilidade processual a partir de um amálgama enredado de critérios socioeconômicos, socioculturais e técnicos. Tudo seria simples se o critério fosse único, porém: o pobre seria vulnerável em relação ao rico; a representação letrada menos conceituada seria vulnerável em relação à mais conceituada; a parte inculta seria vulnerável em relação à culta; o litigante menos experiente seria vulnerável em relação ao mais experiente (embora nenhum desses critérios seja plenamente objetivável e, consequentemente, objetivante). A dificuldade aumenta quando dois critérios se combinam (ex.: parte rica inculta X parte pobre culta; representação menos conceituada de parte rica X representação mais conceituada de parte pobre; litigante inexperiente rico X litigante experiente pobre; litigante inexperiente culto X litigante experiente inculto). Entretanto, tudo ainda se torna mais opaco quando três ou mais critérios se combinam (ex.: litigante experiente, pobre, culto e representado por advogado mais conceituado X litigante inexperiente, rico, inculto e representado por advogado menos conceituado).

Esse tipo de dificuldade gera, na prática, um efeito indesejável: os juízes desprezam uma resposta explícita fundada em bases objetivas (e, portanto, devassáveis) e adotam respostas implícitas fundadas em «bases» subjetivas (e, portanto, indevassáveis). De ordinário, essas respostas subliminares se agarram a um «sentimento» ou a uma «intuição». O juiz - como se fosse um gnóstico privilegiado - «sente» ou «intui» a desigualdade lidando in concreto com as partes em litígio, sem poder externar essa turva experiência interna mediante um discurso racional objetivamente controlável. Ou seja, o criptojuízo de desigualdade processual fica entre parêntesis, não tematizado, nas bordas de uma indeterminada região imanifestada, sem ingressar no processo de enunciação decisória. Enfim, a igualação se torna a consequência de uma causa propositadamente irrevelada (e, na realidade, irrevelável).

Por esses e outros motivos, urge uma solução legislativa para esse lamentável estado de coisas. Para tanto, convém que, na composição da hipótese de incidência da cláusula geral de igualação, o legislador escolha sinais objetivos presuntivos de vulnerabilidade. Isso se pode dar, v. g., a partir de critérios (i) pessoais-materiais (ex.: incapaz, idoso, criança ou adolescente, pessoa com deficiência), (ii) pessoais-processuais (ex.: patrocinado por defensor público, beneficiário de justiça gratuita) ou (iii) relacionais (ex.: relação alimentícia, relação de trabalho, relação de direito previdenciário, relação de direito assistencial, relação de mútuo decorrente de programa estudantil ou habitacional).

Exemplo bem-sucedido de regra específica de equalização pode ser extraído do inciso VIII do artigo 6º do CDC: ante a verossimilhança da natureza consumerista da relação controvertida, imputa ao juiz a faculdade de proceder à chamada «inversão do ônus da prova». Outro exemplo se extrai do artigo 71 da Lei 10.741/2003, que assegura a prioridade na tramitação de processos em que idoso figure como parte ou interveniente. Tem-se ainda como exemplo a obrigatoriedade de intervenção do Ministério Público como custos legis nos processos que envolvam interesse de incapaz (CPC, art. 178, II), nos processos que envolvam litígio coletivo pela posse de terra rural ou urbana (CPC, art. 178, III), na ação possessória em que figure no polo passivo grande número de pessoas (CPC, art. 554, § 1º), na interdição (CPC, art. 752, § 1º), nos processos em que figure como parte idoso em situação de risco (Lei 10.741/2003, art. 74), etc. (intervenção essa que - dentre outras coisas - possibilita ao MP requerer provas em favor do hipossuficiente com o objetivo de se lograr a «correta aplicação da lei»).

Assim, para que se construa uma cláusula geral de igualação dentro de quadrantes aceitáveis, é fundamental que todas as hipóteses de incidência estejam reunidas num rol unitário-unificante, adstringindo-se o juiz apenas a elas e permitindo-lhe - quando muito - interpretações extensivas racionalmente fundamentadas. Enfim, é preciso que a solução do problema se enraíze no chão firme das regras, não no mar revolto dos princípios.

Se for superado o problema das hipóteses de incidência, ainda assim restará a necessidade de se definirem as consequências jurídicas. Aqui, é fundamental: 1) que para cada hipótese de vulnerabilidade se definam o conteúdo e a forma das respectivas medidas judiciais protetivas (que podem consistir - de modo isolado ou combinado - em concessão de justiça gratuita, intervenção do MP, inversão de ônus probatório, prova de ofício, prioridade de tramitação, complementação dos pedidos, etc.); 2) que o juiz - se for o caso - tenha o dever de tomá-las, não a mera faculdade, impedindo-se com isso que vulneráveis em situação idêntica sejam arbitrariamente tratados de modo distinto. O importante é que não se incorra no mesmo erro do artigo VI do Código Procesal Civil peruano (apelidado de «principio de socialización del proceso», segundo o qual «el juez debe evitar que la desigualdad entre elas personas por razones de sexo, raza, religión, idioma o condición social, política o económica, afecte el desarollo o resultado del proceso» (<https://www.iberred.org/sites/default/files/codigo-procesal-civil-per.pdf>. Acesso 20 mai. 2018): a hipótese de incidência é vaga e as consequências jurídicas não são descritas.

Ao fim e ao cabo, o que importa é que o igualamento processual sempre se faça aos cuidados de uma lei minudente, jamais apesar dela. Igualdade e legalidade são direitos fundamentais com específicos âmbitos de aplicação, que não se entrecruzam. Aliás, é chegada a hora de se superar a ponderação alexyana dos «direitos fundamentais em (suposto) conflito»: eles jamais colidem entre si, senão aparentemente; na verdade, fazem sentido cada qual na sua respectiva órbita de proteção [Schutzbereich] (para uma crítica da «colisão entre mandamentos otimizáveis» e uma exposição do âmbito de proteção como delimitador interno do alcance semântico dos direitos fundamentais, v., p. ex.: DALLA BARBA, Rafael Giorgio. Direitos fundamentais e teoria discursiva: dos pressupostos teóricos às limitações práticas. Salvador: Juspodivm, 2018).

Por isso, o fortalecimento da igualdade não exige que se enfraqueça a legalidade; tampouco a relativização da igualdade é condição de prestígio da legalidade. A legalidade não faz da igualdade uma «igualdade sob reserva»; da mesma forma, a igualdade não é determinação privativa da legalidade. Um polo não despotencia necessariamente o outro. O binômio lex-æqualitas não sofre de ambivalência funcional, pois. Decididamente, ambos exercem com soberania os seus respectivos primados: a igualdade protegendo uma parte da outra [plano horizontal], a legalidade protegendo a ambas do juiz [plano vertical]. Ora, na isonomia [ἰσονομία = igualdade], já vai implicado o nomos [νομος = lei], que é o fator que a propicia...

Imagem Ilustrativa do Post:Courtroom One Gavel // Foto de: Joe Gratz // Sem alterações

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