Coluna ABDPRO
Os avanços tecnológicos têm transformado a sociedade numa velocidade que muitas vezes parece incalculável. As transformações têm estado presentes em vários eixos sociais, desde o cotidiano familiar até as questões profissionais. Muitas dessas mudanças otimizam tempo, trabalho e/ou dinheiro, o que, sem dúvida, traz elementos bastante convidativos. Entretanto, mesmo carregados de positividade, é preciso atentar-se que esses avanços devem ser pautados na proteção e preservação dos direitos de todos os indivíduos em uma sociedade[1].
É nesse contexto em que também são identificadas as mudanças afetas a seara jurídica. O cotidiano dos operadores do direito vem passando por modificações técnicas e normativas que alteraram as ferramentas de trabalho e os procedimentos inerentes a elas. Uma das principais transformações, dentre algumas que remetem às inovações tecnológicas, ocorreu com a instauração do Processo Judicial Eletrônico (PJe), um projeto bastante inovador e necessário para que o Judiciário brasileiro pudesse ser modernizado e padronizado[2].
O implemento do Pje foi desafiador, frente a tantos obstáculos ultrapassados e os que se mantém persistentes no processo de aprimoramento. Como exemplo, tem-se a resistência a essas inovações dos próprios operadores do direito. Muitos advogados (as) demonstraram insatisfação em razão da necessidade do aperfeiçoamento para uso dos equipamentos tecnológicos. Uso de computador, criação de certificação digital, manuseio e tudo que esteja atrelado aos atos processuais no meio virtual trouxeram descontentamentos. Questões como instabilidades de sistema, inacessibilidade para pessoas com deficiência visual são outros desafios que precisam ser solucionados.
A partir disso, pode-se citar o implemento da audiência por videoconferência ou telepresencial como uma das mudanças das mais significantes no processo eletrônico. Inicialmente, esse modo de audiência já havia sido admitido no âmbito Penal, não sendo efetivada em totalidade no judiciário. A concretização da realização de audiência remota em todo o judiciário sempre foi tema bastante debatido entre os juristas, entretanto ainda não se vislumbrava a viabilidade para que isso ocorresse.
Ainda sobre os arranjos em meio jurídico, não se pode negar que o ordenamento jurídico faz menções a respeito de ferramentas tecnológicas ou aprimoramentos, demonstrando ser um sistema aberto às mudanças. O Código de Processo Civil[3] faz menção, em seu artigo 461, §2º, quanto a acareação poder ser realizada por videoconferência ou por outro recurso tecnológico. Apesar disso, não há regulamentação no mesmo diploma sobre a possibilidade de execução de audiências no modo remoto.
Além disso, é também importante abrir a reflexão a respeito do compartilhamento de dados no ambiente de audiência telepresencial. Isso porque, a atividade jurisdicional no modelo de videoconferência permite o fornecimento de dados pessoais pelas partes, advogados e serventuários da justiça. É necessário aprofundar-se no que diz respeito ao modo como estão sendo coletados esses dados, tanto sob a questão de qual base normativa que regulamenta o tratamento desses dados, como também o modo como se dará o descarte dos mesmos. Essa é uma preocupação que deve caminhar em paralelo aos projetos de inovação judiciária.
Nesse cenário evolutivo tecnológico no âmbito do judiciário, a realização de audiências por meio da videoconferência e também o compartilhamento de dados trazem novo debate a ser fomentado. Isso porque, a partir de questões sanitárias, implementadas em todo o país, desencadeadas pela Pandemia do Covid-19, exigiu-se medidas de enfrentamento que foram regulamentadas pela a Lei n°. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020[4]. A referida lei trata de medidas emergenciais de saúde pública a serem adotadas em todo o território nacional no combate ao Covid. Nesse sentido, em alguns tribunais as atividades judiciárias foram paralisadas, o que suspendeu a prestação dos serviços ou ficaram restritas, conforme a determinação de cada órgão jurisdicional.
E, nesse sentido, na busca de alternativas para a retomada do serviço judiciário, o Conselho Nacional de Justiça, dentre suas resoluções, editou a Resolução 354[5] de 19 de novembro de 2020, que regulamentou a realização de audiências por videoconferência e telepresenciais em todas as unidades jurisdicionais, em 1ª e 2ª instância, na Justiça Estadual, Federal, Trabalhista, Militar e Eleitoral.
Além disso, outras Resoluções do CNJ regulamentaram situações necessárias para o processo e seus atos, ao tempo em que o período de afastamento social se manteve. Dentre as resoluções, a de nº. 337, datada de 29 de setembro de 2020, merece destaque. Vale analisar que, em seus artigos, a resolução prevê disposições sobre a utilização de sistemas de videoconferência no Poder Judiciário e dentre as medidas, autoriza no art. 2º, parágrafo único, inciso VIII a possibilidade de gravação das reuniões e audiências.
Nesse ponto, é importante observar a norma em referência, levando-se em consideração a sua compatibilidade com a Lei Geral de Proteção de Dados, nº. 13.709 de 2018[6] e todo o sistema normativo. Apesar de o artigo 3º da mesma resolução trazer o dever de garantia de segurança, privacidade e confidencialidade das informações compartilhadas, não traz as especificações necessárias e adequadas quanto as finalidades a respeito das gravações que podem ser possibilitadas, mencionadas no artigo anterior.
O CNJ já havia se pronunciado com conteúdo semelhante na Resolução de nº. 61, de 31 de março de 2020, quando institui a plataforma emergencial para a realização de videoconferência. Em seu artigo 4º, autoriza que a plataforma possa fazer gravação audiovisual de conteúdo da videoconferência, além de permitir o seu armazenamento, se for o desejado.
Levando-se em consideração a LGPD, abre-se o questionamento: será que há de se exigir maiores especificações que justifiquem a autorização da gravação das audiências? Nessa análise, deve-se observar quais as reais necessidades das gravações, possibilitando, assim, atender às exigências da referida lei, além de que essas necessidades sejam detalhadas, para que se possa direcionar a regulamentação sobre quem poderá armazenar essas gravações.
Nesse diapasão, é importante levantar a discussão sobre qual a base normativa deve ser utilizada regulamentar essa matéria de coleta de dados em audiência. Ou seria uma decisão judicial que deveria autorizar a coleta dos dados? Além disso, o judiciário armazenará esse material de gravação em qual espaço? E sobre aqueles que participam das audiências, como ouvintes, por exemplo, como ficam os seus dados? Essas são perguntas provocativas, que trazem algumas das preocupações necessárias para que haja o respeito aos direitos fundamentais individuais.
Em tempos de aprimoramentos dos aparatos tecnológicos e ferramentas processuais, é necessário que todo o sistema busque proteger os direitos dos cidadãos envolvidos. Nesse espaço virtualizado não se pode deixar de lado a questão relacionada aos dados pessoais de todos participantes de uma audiência nesse formato. A coleta de dados pessoais é um ponto a ser pensado para que não ocorra o descumprimento do princípio da finalidade e das regras sobre tratamento de dados.
Essas são algumas das inquietações que o implemento de ferramentas inovadoras, resultado das transformações alimentadas pelos membros sociais, em um cotidiano de dinamicidade e também de constâncias, traduzem uma sociedade moderna. Sabendo que as mudanças alcançam todos os âmbitos em uma comunidade, é essencial que todos estejam atentos ao respeito de seus próprios direitos e os de seus semelhantes. Nesse sentido, respeitar os direitos fundamentais é um papel de toda uma sociedade. Assim, o contexto da atividade judicante não poderá se afastar desse compromisso. Um judiciário que busca estar preparado não vai estar isento de desafios e problemáticas que decorram das mais variadas espécies, mas será aquele que permanecerá em constante aprimoramento, aberto às sugestões e em busca de uma melhor prestação jurisdicional.
Notas e Referências
[1] Aqui pode-se abrir um espaço para falar sobre o chamado Ciberespaço, denominado por Pierre Levy. Trata-se de novo meio de comunicação que surge da interconexão mundial dos computadores. O termo especifica não apenas a infraestrutura material da comunicação digital, mas também o universo oceânico de informações que ela abriga, assim como os seres humanos que navegam e alimentam esse universo (Levy, 1999, p.17)
[2] CNJ. Processo Judicial Eletrônico. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/processo-judicial-eletronico-pje/#:~:text=Objetiva%20a%20convers%C3%A3o%20de%20esfor%C3%A7os,de%20pessoal%20em%20atividades%20dirigidas. Acesso em 19 jul. 2021.
[3] BRASIL. Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015. Código de Processo Civil. Brasília, DF, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm. Acesso em: 14 jul. 2021.
[4] BRASIL. Lei nº. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020. Dispõe sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus responsável pelo surto de 2019. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/lei/l13979.htm. Acesso em: 14 jul. 2021.
[5] BRASIL. Resolução nº 354, de 19 de novembro de 2020. Brasília, DF, Disponível em: https://atos.cnj.jus.br/atos/detalhar/3579. Acesso em: 14 jul. 2021.
[6] BRASIL. Lei nº. 13.709, de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados. Brasília, DF, Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/lei/l13709.htm. Acesso em 13 jul. 2021.
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