ABDPRO #175 - O EXISTENCIALISMO COMO ESPAÇO DE ANTINOMIA ENTRE O DEVIDO PROCESSO E O DEVIR PROCEDIMENTAL

05/05/2021

Coluna ABDPRO

Doses de filosofia e epistemologia são necessárias ao estudo do Processo. Pode soar inusitada a cogitação de tangenciamento entre o devido processo, o devir procedimental e a matriz filosófica contemporânea do existencialismo. Há, no entanto, que se analisar de que modo o existencialismo influenciou a formação de uma (não) racionalidade pautada no devir, na incerteza, na abertura decisional subjetivista, mitigando o devido processo que, em uma perspectiva democrática, deve-se entender como garantia de direitos fundamentais vincada em uma episteme fundada em balizas constitucionais.

Para a compreensão do devir, partiu-se do estudo filosófico do existencialismo assentado em um horizonte de incerteza e mutabilidade, que vai se guiar pela escolha do próprio ser ou por um historicismo fecundo de imprevisibilidades.

As bases filosófico-contemporâneas do existencialismo serviram para mitigar o devido processo em devir procedimental de bordas indemarcadas e espaço pujante para subjetivismos decisionais.

 

1. EPISTEME, EXISTENCIALISMO E DEVIR:

Episteme é termo de origem grega que significa ciência, contrapondo-se  à concepção de dogmas, doxas, opiniões baseadas em senso comum. A episteme busca afastar o não-cientificismo, viabilizando possibilidades de questionamentos ao próprio conhecimento, de modo a prover avanços contínuos e progressivos, rechaçando, desse modo, o rótulo de “ciência verdadeira”[1]. Nesse sentido, a epistemologia acaba por se demarcar como estudo lógico-objetivo acerca da principiologia, das hipóteses e resultantes das ciências, de modo a lhes questionar os próprios fundamentos do conhecimento[2]

Bachelard desenvolveu uma vertente de epistemologia histórica, de modo a desvelar a produção do conhecimento como uma evolução determinada pelos instantes históricos e coloca o tempo como relativizador da análise da realidade[3].  Apesar disso, Bachelard reconhece que a epistemologia não parte de uma verdade apriorística, razão pela qual sustentou que a ciência deve buscar constante crescimento, mantendo-se aberta a novos questionamentos e possibilidades.

Popper criou um sistema de demarcação pautado na epistemologia quadripartite (técnica, ciência, teoria e crítica), a fim de que se reduzam as incertezas e aproximação da verdade. Desse modo, a teoria popperiana parte da proposição de que razão e linguagem argumentativa são típicas dos seres humanos, sustentando que a argumentação crítica tem influenciado o homem a pensar racionalmente e contribui, dessa forma, para o desenvolvimento do método da experiência  e eliminação de erros, que dá ensejo à busca da verdade. Popper seguiu a vertente do racionalismo crítico falsificacionista, defendendo que a ciência se faz a partir do embate entre teorias, buscando falseá-las de modo a se firmar a teoria mais resistente, até que outra, eventualmente, a refute. Acerca da relação entre episteme e devir, em “De Nuvens e Relógios – Uma abordagem do problema da racionalidade e da liberdade do homem[4], Popper utiliza a representação da nuvem, que se relaciona ao devir (imprevisibilidade/incerteza), e do relógio, que se vincula à ideia de episteme (previsibilidade/certeza) .

Tanto em Bachelard, quanto em Popper há uma epistemologia pautada no afastamento das crenças e dogmatizações ensejadores de fechamentos argumentativos e reificação de uma suposta verdade, admitindo-se, portanto, que possa haver contraposição a proposições e teorias anteriormente fixadas de modo a superá-las, promovendo avanço epistemológico.

Nessa vertente, cumpre analisar de que modo a corrente filosófica do existencialismo acabou por repercutir na forma como o homem pensa a si mesmo e pensa o outro, o que corroborou para a formação de uma mentalidade chanceladora das incertezas, das imprevisibilidades e na normalização de flexibilizações e aberturas decisionais no âmbito do Processo, promovendo o afastamento da episteme e a aproximação do devir.

O existencialismo é a filosofia da existência (ex-sistere: vir a constituir-se e a manter-se). A filosofia da existência coloca o devir como centro, ante a transformação contínua da essência do homem. O devir, por sua vez é o in fieri, o estado de mudança, alojando-se na incerteza da essência do homem, que, em sua existência, sofre transformações continuamente[5]. A existência é expressão radical do devir, em razão da imprevisibilidade de decisões e escolhas (liberdade) do homem (indivíduo), que não se preveem por nenhum sistema epistêmico de ordenação e delimitação da realidade. No existencialismo, portanto, o devir se apresenta num horizonte de consciência transcendental, ou seja, a vida do homem (existência) definida por sua consciência é a raiz do devir, pois o ex-sistere está fora de si, sendo um porvir do outro.

Sören Kierkegaard foi quem iniciou os estudos acerca do existencialismo. Sustentou que o indivíduo é o único responsável pela sua vida e pelos significados a ela dados[6]. Avalia que o singular (indivíduo) é dotado de liberdade e poder de escolha, sendo esta uma situação que o coloca a decidir se aceita ou não a existência. Entende que o homem, quando vive como gênero, multidão, massa, está inserido numa estrutura epistêmica e que o homem como indivíduo singular existe fora de toda ordem estabelecida. Assim, o filósofo Emanuele Severino entende que “Kierkegaard recusa a episteme para salvaguardar a evidência do devir e, em especial, do devir do homem – aquilo que [...] chama de existência[7]. Parece evidenciar-se nesse ponto uma visão aclamadora do individualismo como ode à liberdade a significar, em seu modo mais radical, inexistência da necessidade de se prestar contas ao outro acerca das decisões tomadas.

Karl Jaspers, dentro de uma perspectiva existencialista, entendeu que a filosofia decorre da incerteza da vida, sustentando ainda que o devir se manifesta em horizontes e limites que não se estabilizam, gerando imprevisibilidades, sobretudo, por existir a liberdade do ser, que é a manifestação acentuada do devir.

Heidegger analisou a existência do homem (indivíduo) como o projetar-se no futuro, através das possibilidades colhidas no passado. Dessa forma, o homem fixa a construção do futuro com base em um historicismo que o oriente e reduz as suas escolhas. Para Heidegger, o devir nasce da existência histórico-temporal do homem, que escolhe e decide (liberdade)[8]. Assim, o horizonte é indefinido, remetendo ao historicismo, temporalidade e devir, capazes de gerar incerteza, ante a repetição do passado e dentro de uma via de possibilidades (poder ser).

Desse modo, pode-se aventar que a episteme, como conhecimento pautado em racionalidade almejadora do afastamento de dogmas e crenças, acaba por tornar-se opacizada pela própria crença decorrente do existencialismo vincado no devir, na incerteza, na aceitação de relativizações e flexibilizações em nome de um eu, de singularidade, oponível a uma perspectiva plural e coletiva, que componha um discurso ampliado capaz de resultar em decisões nas quais se afira o eu, o ele e o nós. O devir é singular e incerto a ponto de validar decisões ensimesmadas, capazes de justificar subjetivismos e axiologismos, aberturas decisionais que fazem sucumbir a dialogicidade necessária ao paradigma democrático.

 

2. DEVIR PROCEDIMENTAL E DEVIDO PROCESSO

Partindo-se da matriz processual democrática, faz-se necessário observar a vinculação entre Constituição e Processo. José Alfredo de Oliveira Baracho afirmou que “o modelo constitucional de processo civil assenta-se no entendimento de que as normas e os princípios constitucionais resguardam o exercício da função jurisdicional[9]. Nesse sentido, deve-se observar o processo constitucional como diretriz para a interpretação e aplicação do sistema jurídico, com observância aos preceitos do Estado Democrático de Direito.

Assim, o Estado, no exercício de suas funções, sejam elas administrativas, legislativas ou jurisdicionais, deve pautar-se pela observância do devido processo. A legitimidade dos pronunciamentos decisórios somente é possível pela via do devido processo constitucional, que vem a ser, segundo Brêtas, a metodologia normativa que informa e orienta o processo, ou seja, metodologia de garantia dos direitos fundamentais[10].

O devido processo, dentro de uma matriz democrática, é fonte de garantias constitucionais, prescrevendo a existência de leis produzidas legitimamente. Ou seja, o devido se dá a partir da participação daqueles que serão afetados pelas decisões, sendo isso que lhes confere legitimidade. Afirma Leal que assegurado o process em texto democrático-constitucional, só nos restaria afirmar que o processo tem, na atualidade, como lugar devido de sua criação, a Lei constitucional (o devido processo constitucional como fonte jurisdicional da judicação e direito-garantia das partes)”[11].

André Del Negri expõe que “a expressão Devido Processo Constitucional é vista como instituição regenciadora de todo e qualquer procedimento (devido processo legal), a fim de tutelar a produção de provimentos seja administrativo, legislativo ou judicial[12]. Para o exercício das funções que lhe são atribuídas, o Estado deve atuar amparado pela estrutura metodológico- normativa (devido processo constitucional), o que garante aos interessados a participação em contraditório, viabilizando a formação do ato decisório final. Em outras palavras, o devido processo é garantia constitucional de estrita observância para que sejam emanados pronunciamentos decisórios (jurisdicionais, administrativos ou legislativos).

O procedimento é gênero, do qual o processo é espécie e o que o diferencia é exatamente a presença necessária do contraditório, sem o qual o processo se configuraria em mero procedimento[13].

Indo além e evidenciando uma matriz garantística, Eduardo José da Fonseca Costa explica que a ciência do processo decorre de um plano de garantias constitucionais, enquanto a ciência do procedimento se pauta na observância legal que dá contornos aos atos a serem praticados, argumentando ainda que há correlação estrutural entre ambas[14].

Nos processos, o contraditório viabiliza a dialogicidade, oportunizando às partes trazer as razões de fato e de direito que lhe são pertinentes. Ausente o contraditório, o agente decisor fica vinculado às suas próprias impressões e convicções e a formação dos pronunciamentos decisórios desvinculam-se dos argumentos das partes, comprometendo a fundamentação.

O contraditório deve ser entendido, portanto, como garantia de efetiva participação das partes no processo, em todas as suas fases lógicas (fase postulatória, fase de saneamento e organização, fase de instrução probatória e fase decisória), para que possam influenciar a construção da decisão final. Assim, resta evidenciada a estreita correlação existente entre o contraditório e a fundamentação das decisões, pelo que Brêtas qualifica o quadrinômio estrutural do contraditório explicando que, a partir da informação-reação-diálogo-influência,  os sujeitos processuais corroboram, com argumentos e provas, a fim de formular decisão participada, com observância das garantias fundamentais do processo [15].

Dessa forma, o contraditório é princípio instituinte do processo, garantia fundamental e viga mestra do devido processo constitucional, sem o qual o próprio processo deixa de se conceber numa concepção processual democrática. A observância ao contraditório como garantia induz à construção de decisões nas quais a fundamentação deve se vincular estreitamente aos argumentos criticamente formulados pelas partes interessadas na construção do pronunciamento. O contraditório como garantia viabiliza a fiscalidade necessária para que haja efetiva correlação desta garantia à fundamentação das decisões e, nesse sentido, Flaviane Barros e Leonardo Marinho destacam:

A fundamentação da decisão é indissociável do contraditório, visto que a participação dos afetados na construção do provimento, base da compreensão do contraditório, só será plenamente garantida se a referida decisão apresentar em sua fundamentação a argumentação dos respectivos afetados, que podem, justamente pela fundamentação, fiscalizar o respeito ao contraditório e garantir a aceitabilidade racional da decisão. [16]

O devido processo constitucional é metodologia normativa estruturada pelo contraditório e imparcialidade do julgador, prestando-se a impedir a construção de pronunciamentos decisórios pautados em subjetivismos ou ideologias. Assim, a base do devido processo deve ser epistêmica e pautada na busca de uma racionalidade, na qual a resultante decorra de balizas legais, rechaçando axiologias, dogmas e crenças.

O Estado, no exercício de suas funções administrativa, legislativa e jurisdicional, deve reger-se pela impessoalidade e imparcialidade, sendo-lhe vedado o proferimento de decisões fulcradas em livre arbítrio, senso, valores, critérios estes de ordem subjetiva[17], que estão alocados na perspectiva incerta, indemarcada e nebulosa do devir.

A discricionariedade é causa da irracionalidade na aplicação do direito e, para obstar que haja subjetivismos a permear a formulação das decisões, há que se buscar a imprescindível conexão entre o contraditório e a fundamentação, viabilizando, desse modo, a fiscalidade pelas partes e o controle acerca do devido processo. A discricionariedade gera ausência de estabilidade da aplicação do direito, insegurança jurídica e incerteza acerca das decisões, que podem ser proferidas ao alvedrio e de acordo com o bom (ou mau) senso inato do decisor.

É neste ponto que reside o devir procedimental, caracterizado, sobretudo, pela incerteza e pelo transbordamento da atuação estatal para fora das balizas das garantias constitucionais.  As teorias processuais que colocam os decisores estatais em posição de centralidade induzem a uma formulação de decisões axiológicas e instrumentalistas de cariz ativista[18].

Em perspectiva processual democrática, as decisões devem ser pautadas no devido processo constitucional, com inderrogável necessidade de participação dos sujeitos processuais na formação da decisão, que deve ser balizada pelos argumentos e provas produzidos, permitindo, assim, que o contraditório e fundamentação estejam alinhados a dar configuração de legitimidade à decisão formulada.

A perigosa (e estratégica) indistinção entre processo e jurisdição faz com que o processo tenha uma configuração subjugada a mero instrumento a serviço de uma jurisdição de bases não democráticas, alçando o decisor a uma posição de supremacia, ensejadoras de decisões permeadas de subjetivismo.

O devir procedimental, pautado em incertezas de bases existencialistas, é fruto da inobservância ao devido processo, e, assim, conta com o subjetivismo do julgador, o que não se admite na matriz do Estado Democrático de Direito. Forma-se, nesse ponto, uma antinomia segundo a qual o devido processo, que não pode a nenhum pretexto ser relativizado, passa a sucumbir a um devir procedimental capaz de mitigar direitos e garantias fundamentais.   

 

3. CONSIDERAÇÕES FINAIS:

O existencialismo, como eixo filosófico de égide individualista e chancelador de indemarcação e incertezas, acabou servindo como terreno fértil para a consolidação de uma mentalidade permeada pelo eu, pelos subjetivismos, discricionariedades, em contraposição (antinomia) à visão amplificada em que se inclui o outro, em que se exige o diálogo e a formação de uma sistema participativo e balizado pelo que é devido e não pelo devir.

O devido é o locus articulado e regenciado pelas garantias constitucionalmente previstas. Ou seja, o processo é garantia de direitos demarcados, definidos em lei, não sendo admissível, dentro de uma perspectiva processual democrática, que formações decisórias sejam permeadas por dogmas, crenças, em recinto axiológico que transborde o eixo legal.

 

Notas e Referências

[1] JAPIASSÚ, Hilton; MARCONDES, Danilo. Dicionário Básico de Filosofia. 3 ed. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 84-85

[2] LALANDE, André. Vocabulário técnico e critico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes,1993, p. 313

[3] BACHELARD, Gaston. O Novo Espírito Científico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1985

[4]  POPPER, Karl Raimund. Conhecimento objetivo: uma abordagem evolucionária. Editora Itatiais: Belo Horizonte, 1999, p. 193

[5] LALANDE, André. Vocabulário técnico e critico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes,1993.

[6] KIERKEGAARD, Soren. O Conceito de Ironia. Petrópolis: Editora Vozes, 1991

[7] SEVERINO, Emanuele. A filosofia contemporânea. Lisboa: Rozolli Editora, 1986, p. 77

[8] HEIDEGGER, Martim. Ser e Tempo. 15 ed. Petrópolis: Ed. Vozes, 2005

[9] BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito Processual Constitucional: aspectos contemporâneo. Belo Horizonte: Fórum, 2006, p. 15.

[10]BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito, 4 ed. Belo Horizonte: Del Rey Editora, 2018, p. 43.

[11]LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo: primeios estudos,. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 89.

[12]DEL NEGRI, André. Controle de Constitucionalidade no Processo Legislativo: teoria da legitimidade democrática. Belo Horizonte: Fórum, 2003, p. 74.

[13] FAZZALARI, Elio. Istituzioni di Diritto Processuale. Italy: Padova, 1975.

[14] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Ciência processual, ciência procedimental e ciência jurisdictional. ABDPRO, n. 8, publicado em 22/11/2017

[15] BRÊTAS, Ronaldo de Carvalho Dias. et al. Estudo sistemático do NCPC. 2 ed. Belo Horizonte: Editora D’ Plácido, 2016, p. 53.

[16] BARROS, Flaviane de Magalhães; MARQUES, Leonardo Augusto Marinho. A atuação do juiz no contraditório dinâmico: uma análise comparativa entre o sistema processual penal adversarial chileno e o modelo constitucional de processo brasileiro. In: Leonel González (Org.). Desafiando a Inquisição: ideias e propostas para a reforma processual penal no Brasil. 1a. ed. Santiago do Chile: Centro de Estudios de Justicia de las Américas, 2017, v. 1., p. 350

[17] COSTA, Eduardo José da Fonseca. Levando a Imparcialidade a Sério. Salvador: Jus Podvm, 2018

[18] DINAMARCO, Cândido Rangel. A Instrumentalidade do Processo. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1993

 

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