ABDPRO #172 - COLEGIALIDADE OU PORQUE “NENHUM MINISTRO É MAIOR QUE A TURMA”

14/04/2021

Coluna ABDPRO 

No dia 16/03/2021, o Min. Gilmar Mendes iniciou a sessão virtual da 2ª turma do STF, na condição de presidente, teceu alguns esclarecimentos sobre a competência do colegiado e afirmou que “o relator de um processo não é dono dele” e que “nenhum ministro é maior que a turma”[1].

A distância abismal entre lei e teoria e a prática deliberativa dos tribunais brasileiros mostra-se cada dia mais acentuada. O julgamento colegiado não é o resultado do somatório de decisões individuais opinativas e personalistas[2] dos julgadores, assim como o voto do relator não é um convite à adesão[3].

A colegialidade é a norma informativa do exercício da jurisdição pelos tribunais e a decisão colegiada deve ser o desfecho argumentativo dos juízes que integram o colegiado competente para a adequada solução do caso[4]. O colegiado é o juízo natural para o exercício da jurisdição pelos órgãos pluripessoais (turmas, câmaras, grupos de câmaras, sessões etc), sendo, nesse ponto, a normatividade estruturante da própria existência dos tribunais definida pela Constituição Federal (art. 5º, LIII, c/c arts. 92 a 126, CF/88) e pelos regimentos internos.     

A criação do órgão e a definição de sua competência é estabelecida normativamente de forma prévia, sendo a “antítese do juízo pós-constituído ou juízo de exceção”[5]. Veda-se a criação de juízos após a ocorrência dos fatos, vez que o juízo ordinário é o competente para processar e julgar a causa.

A deliberação dos tribunais apresenta variados problemas, tais como: (a) preocupação com o resultado do julgamento e não com a construção sistematizada de argumentos que representam a opinião da corte sobre tema específico[6]; (b) a depender do caso o voto do julgador relator torna-se convite a adesão (corriqueiro “de acordo com o relator”); (c) tratamento diferenciado pelos julgadores quando se trata de caso midiático[7]; (d) usurpação da competência do colegiado na hipótese de decisões monocráticas proferidas em desacordo com o entendimento firmado pelo órgão pluripessoal competente; (e) votação e julgamento que não “se pesam, mas somam-se”[8]; (f) ausência de identidade de deliberação pelo colegiado, ainda que por maioria, das mesmas questões fáticas e jurídicas, possibilitando a prolação de decisão unânimes quanto ao resultado (dispositivo) e divergentes, total ou parcial, em relação à fundamentação (ausência de fundamento compartilhado ainda que majoritariamente)[9]; (g) arbitrariedade na inclusão do caso (tema) na pauta de julgamento; e, por fim, (h) inconstância e fragmentariedade de entendimento.  

Dentre os problemas elencados, analisaremos a monocratização ilegítima pelos relatores a partir da decisão unipessoal proferida pelo Min. Nunes Marques, na ADPF 701 MC/MG que autorizou a realização de celebrações religiosas presenciais e determinou que os Estados, Distrito Federal e Municípios se abstenham de editar ou de exigir o cumprimento de decretos ou atos administrativos que proíbam atividades religiosas presenciais, como medida de contenção à disseminação do coronavírus[10].

A apreciação desta decisão em particular é significativamente relevante pela gravidade da atual crise sanitária que o Brasil enfrenta com mais de 345 mil óbitos confirmados pela COVID-19[11] e por ser representativa da atividade ilegítima e disfuncional dos relatores nos diversos tribunais quando se trata de decisões monocráticas. 

A decisão monocrática é legítima na hipótese de atuação do julgador relator por meio da delegação de competência do colegiado. Isso significa que a decisão monocrática proferida pelo relator deve ratificar o entendimento expressado pelo colegiado no julgamento dos casos análogos anteriores, salvo na hipótese de tentativa de superação do entendimento predominante até o momento no colegiado pelo relator.            

Na superação do entendimento predominante, o relator deverá demonstrar de maneira argumentativa e sistematizada as razões pelas quais a decisão anterior do colegiado não se mostra a mais adequada para a resolução da controvérsia concreta ou abstrata sob julgamento (art. 489, § 1º, VI, CPC/15).

O problema não parece residir, precisamente, no aspecto quantitativo de decisões monocráticas proferidas[12], mas na fundamentação da decisão unipessoal, uma vez que a atuação do relator de maneira monocrática se legitima pela delegação da competência conferida pelo colegiado e em virtude de autorização legal ou regimental, por exemplo, na hipótese de decisão monocrática sobre juízo de admissibilidade.

Desconsiderar o entendimento do colegiado em sede de decisão monocrática constitui afronta constitucional à garantia do juízo natural, além de ser desrespeito à própria instituição que o julgador íntegra. Os membros do colegiado devem observar o acervo institucional decisório, não existindo espaço para arbitrariedade ou atuações solipsistas dos julgadores que dele fazem parte[13].

Aliás, incube aos tribunais o dever de uniformizar a sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente (art. 926, CPC/15), garantindo-se a previsibilidade decisória, igualdade de tratamento e segurança jurídica. 

No dia 03/04/2021, o Min. Relator Nunes Marques concedeu a medida liminar na ADPF 701 MC/MG, autorizando a realização de cultos religiosos, ao determinar que Estados, Distrito Federal e Municípios se abstenham de editar ou de exigir o cumprimento de decretos ou atos administrativos locais que proíbam completamente a realização de celebrações religiosas presenciais, por motivos ligados à prevenção da Covid-19”[14].

Na fundamentação da decisão monocrática, o Min. Nunes Marques afirmou que a “proibição total da realização de cultos religiosos presenciais representa uma extrapolação de poderes, pois trata o serviço religiosos como algo supérfluo, que pode ser suspenso pelo Estado, sem maiores problemas para os fiés”[15] (grifos no original).

Sustentou, ainda, que, entre os cristãos, a reunião é aspecto essencial da prática religiosa, bem como que, no recente julgamento do caso South Bay United Pentecostal Church v. Newson (592 u.s 2021), a Suprema Corte dos Estados Unidos considerou legítima a restrição de público em cultos religiosos, mas inconstitucional a proibição completa dos cultos[16].

O Relator justificou a pertinência da reabertura de templos e igrejas, sob a alegação de que a manutenção em atividade dos serviços de transporte coletivo, mercados e farmácias, qualificados normativamente como essenciais, também possuem o potencial de gerar aglomerações. Assim, os cultos religiosos também poderiam ser mantidos, desde que adotadas medidas similares de segurança. Considerando a proximidade das celebrações cristãs da Semana Santa e que mais de 80% da população brasileira se declaram cristãos, o perigo da demora restava configurado, razão pela qual concedeu a medida cautelar pleiteada[17].

Já no dia 05/04/2021, em sede da ADPF 811 MC/SP, o Min. Gilmar Mendes denegou a medida cautelar, ajuizada pelo Diretório Nacional do Partido Social Democrático (PSD), em que se pleiteava a suspensão da eficácia do art. 2º, II, a, do Decreto n. 65.563, de 12.3.2021/SP, que vedava a realização de cultos, missas e demais atividades religiosas de caráter coletivo[18].

Para o Relator Min. Gilmar Mendes o decreto impugnado na ADPF não configura restrição ao direito fundamental à liberdade religiosa e que todos os entes federados possuem competência para legislar e adotar as medidas necessárias para o enfrentamento da pandemia da COVID-19, a partir do dever que todos os entes políticos possuem para a promoção da saúde pública e em razão do federalismo cooperativo adotado pela CF/88, nos termos do que restou decidido na ADI 6441 MC e ADI 6421 MC[19].

Por maioria a corte constitucional decidiu o mérito da ADPF 811 MC/SP, no dia 08/04/2021, mantendo as restrições temporárias de atividades religiosas presenciais estabelecidas pelo Estado de São Paulo, como medida de contenção a disseminação do coronavírus, e reiterando o posicionamento expressado pela Corte nos julgamentos das ADIs 6341 MC/DF e 6421 MC/DF[20]

Parece bastante clara a usurpação da competência do colegiado pelo Min. Nunes Marques ao conceder a liminar, em sede da ADPF 071 MC/MG, sem enfrentar de forma argumentativa e sistematizada o entendimento firmado pela própria Corte no julgamento da ADI 6341 MC/DF.

Acrescenta-se, que inexiste na decisão monocrática qualquer justificativa da razão pela qual o entendimento firmado pelo plenário do STF, nos julgamentos das ADIs 6341 MC/DF e 6421 MC/DF, não seria aplicável para a solução pendente de julgamento por envolver a competência dos entes federados para legislar sobre as medidas necessárias para o enfrentamento da pandemia. Ora, o Min. Nunes Marques optou por ignorar o entendimento do colegiado acerca da temática.

Faltou ao Min. Nunes Marques deferência ao colegiado, porque nenhum ministro é, nem pode ser, maior que a Corte Constitucional. 

 

Notas e Referências

[1] A gravação da sessão encontra-se no canal do STF na plataforma YouTube, disponível em: https://youtu.be/HyrIAZDIDR4.

[2] RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes?: para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 15.

[3] CHAVES, Jéssica Galvão. O princípio constitucional da colegialidade na formação da decisão pluripessoal no Estado Democrático de Direito. Dissertação (Mestrado)- Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais.Programa de Pós-Graduação em Direito. Belo Horizonte, 2017. Disponível em: http://www.biblioteca.pucminas.br/teses/Direito_ChavesJG_1.pdf. Acesso em: 07 abr. 2021.

[4] CHAVES, Jéssica Galvão. Op. cit.

[5] GIACOMOLLI, Nereu José. O devido processo penal: abordagem conforme a Constituição Federal e o Pacto de São José da Costa Rica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 273.

[6] RODRIGUEZ, José Rodrigo. Como decidem as cortes?: para uma crítica do direito (brasileiro). Rio de Janeiro: FGV, 2013, p. 15.

[7] SILVA, Virgílio Afonso da. “Um Voto Qualquer”? O Papel do Ministro Relator da Deliberação no Supremo Tribunal Federal. Revista de Estudos Institucionais, v. 1, n. 1, p. 181-200, 2015. Disponível em: https://estudosinstitucionais.com/REI/article/view/21/22. Acesso em: 07 abr. 2021.

[8] MIRANDA, Pontes de. Comentários ao Código de Processo Civil, Tomo V, arts. 444 a 475. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 377.

[9] A ausência de decisão ainda que por maioria impede a compreensão das razões de decidir do colegiado, impedindo a extração da ratio decidendi.

[10] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 701/MG. Rel. Min. Nunes Marques, j. em 03 de abril de 2021, DJe nº 62, de 05 de abril de 2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1185289/false. Acesso em: 07 abr. 2021.

[11] BRASIL. Painel Coronavírus. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Acesso em: 09 abr. 2021.

[12] Ressalta-se que não é objeto do presente texto a discussão acerca da monocratização da jurisdição constitucional em razão da concessão de cautelares em sede de controle abstrato de constitucionalidade.

[13] CHAVES, Jéssica Galvão. Op. cit.

[14] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 701/MG. Rel. Min. Nunes Marques, j. em 03 de abril de 2021, DJe nº 62, de 05 de abril de 2021. 

[15] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 701/MG. Rel. Min. Nunes Marques, j. em 03 de abril de 2021, DJe nº 62, de 05 de abril de 2021, p. 09.

[16] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 701/MG. Rel. Min. Nunes Marques, j. em 03 de abril de 2021, DJe nº 62, de 05 de abril de 2021. 

[17] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 701/MG. Rel. Min. Nunes Marques, j. em 03 de abril de 2021, DJe nº 62, de 05 de abril de 2021.

[18] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 811 MC/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 05 de abril de 2021, DJe nº 63, de 06 de abril de 2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1185672/false. Acesso em: 09 abr. 2021.

[19] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº. 811 MC/SP. Rel. Min. Gilmar Mendes, j. em 05 de abril de 2021, DJe nº 63, de 06 de abril de 2021. Disponível em: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/despacho1185672/false. Acesso em: 09 abr. 2021.

[20] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. STF mantém restrição temporária de atividades religiosas presenciais no Estado de São Paulo. Imprensa, p. em 08 de abril de 2021. Disponível em: http://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=463849&ori=1. Acesso em: 09 abr. 2021.

 

 

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