ABDPRO #165 - COMEDIAÇÃO: RELEVÂNCIA E APLICABILIDADE

03/03/2021

Coluna ABDPRO

1. COMEDIAÇÃO

O comediador é o segundo profissional mediador a conduzir o processo autocompositivo. É comum observar a participação de outro facilitador atuando na sessão de mediação, sem que haja entre eles, qualquer hierarquia. No entanto, alguns autores referem-se ao comediador como o profissional ainda em formação que deve valer-se da atuação em dupla e contar com a experiência do mediador a fim de conduzir o processo com segurança.

César Gonzáles define a comediação como “uma técnica ou ferramenta no procedimento de mediação que implica na participação simultânea de um grupo de profissionais dos mesmos mecanismos alternativos”. E complementa sua definição como uma convergência de enfoques ou disciplinas que se interconectam em diferentes dimensões do conhecimento, que resultam mutuamente subsidiarias da justiça alternativa (GONZÁLEZ. 2019. P. 33 e 34)[1].

Na diversidade de conflitos cabe, pela interdisciplinaridade, agregar conhecimentos técnicos que venham a contribuir na qualidade e produtividade das negociações. Profissionais de áreas distintas integram aspectos específicos que refinam o entendimento dos participantes, permitindo uma reflexão ampliada da controvérsia para melhor controle da qualidade da mediação (ALMEIDA, at al. 2019, pg. 277).

O Conselho Nacional de Justiça refere os motivos para a adição de outro mediador: a) permitir que as habilidades e experiência de dois ou mais mediadores sejam canalizadas para a realização dos propósitos da mediação, entre as quais a resolução da disputa; b) oferecer mediadores com perfis culturais ou gêneros distintos, de modo que as partes sintam menor probabilidade de parcialidade e interpretações tendenciosas por parte dos terceiros neutros; c) treinamento supervisionado de mediadores aprendizes (CNJ. 2016, p. 142).

A comediação é vista como uma forma de mediação em que os comediadores que trabalham bem em equipe e se valorizam mutuamente ao trabalharem em conjunto, possuem maior capacidade de tratar de conflitos difíceis e desgastantes, por outro lado, se não se compreenderem mutuamente e não estiverem em harmonia, poderão prejudicar o processo de mediação. Lisa Parkinson reforça a importância do comediador:

A tensão sobre um único mediador pode ser muito grande. Mediadores precisam repor suas energias, quando se sentem drenados. Comediadores tem maiores recursos para o controlar o stress, eles podem se apoiar mutuamente, descarregar as tensões juntos e estimular novas ideias. Juntos, eles oferecem muitos benefícios aos mediandos e uma fonte inestimável de recursos. (PARKINSON. 2016 p. 141)

Considerando o aspecto legal, o art.15 da Lei de Mediação, bem como o art.168, inciso 3º do NCPC, merecem destaque por ressaltarem a necessidade da concordância das partes, ainda que implícita, quanto a presença do comediador nas mediações.

 

2. APLICABILIDADE

A comediação não é necessária em todos os casos em conflito, no entanto, constitui uma ferramenta útil principalmente nas mediações familiares e coletivas, onde há maior número de pessoas envolvidas. Trata-se da opção do mediador contratado ou solicitação das partes.

Para Lois Gold, na mediação familiar o trabalho em comediação é um processo em três dimensões: 1) Envolve a comunicação e a posição de cada uma das partes, centrando-se a mediação no apoio, custódia dos filhos, aquisição de novos padrões de comunicação e na reestruturação da relação conjugal; 2) A segunda dimensão envolve as experiências de ambas as partes e a interpretação do mediador face às mesmas. Incluindo as atitudes positivas ou negativas e os sentimentos resultantes destas experiências. Estes sentimentos são fundamentais para a mudança; 3) À terceira dimensão está associada uma mudança psicológica que resulta da negociação. A negociação em si pode ajudar as partes na fase da libertação emocional. O que cria segurança e uma atmosfera de abertura e respeito, assim como, a oportunidade de dialogar sobre a relação conjugal, e as preocupações relativamente aos filhos (GOLD, 1984, p. 27-46)[2].

Cabe salientar, que mediações familiares com profissionais de sexos diferentes, oferecem certas vantagens nas questões de poder ou mesmo nas abordagens de gênero, onde mediadores do mesmo sexo podem causar percepção de desequilíbrio, ainda que apresentem competência.

A funcionalidade da comediação no âmbito familiar está na a composição de uma equipe produtiva, e não competitiva, na resolução dos impasses. É importante para o resultado das negociações que os mediadores consigam dominar todas as demandas controversas, independente da sua área de formação. Os mediadores devem refletir conjuntamente e previamente sobre as estratégias que serão abordadas no caso, a fim de evitar a espiral do conflito[3].

A psicologia é importante disciplina na mediação familiar. O comediador com tal formação pode abordar as diferentes manifestações da psique nos conflitos, ao lidar com excelência da parte emocional, que em muitas ocasiões representa um conflito subjacente àquele que está sendo inicialmente abordado pelos operadores (GONZÁLEZ. 2019, p. 68)[4].

Nas mediações coletivas a presença de comediadores é indispensável para proporcionar espaços favoráveis às questões complexas. Dependendo do número de envolvidos, procede quantidade maior de profissionais a fim de garantir a gestão da resolução da controvérsia. Por ser uma mediação diferenciada, abrangendo grande número de indivíduos e normalmente de interesse público, requer organização de documentos, controle dos participantes, emissão de relatórios e estudos, para a evolução e produtividade das negociações. Luciane Moessa de Souza complementa tal premissa:

No que concerne aos conflitos de dimensão coletiva, é bastante comum, nos países que utilizam a mediação, a utilização de ao menos dois mediadores, em especial quando o grupo de participantes envolve grande número de pessoas ou as questões envolvidas no conflito possam se beneficiar da atuação de mediadores com formações distintas (SOUZA, 2014. p. 56).

Da mesma forma que o comediador com formação em psicologia agrega experiência na mediação familiar, a formação em direito ou administração facilita o entendimento e acelera os procedimentos nas mediações empresariais e coletivas. Ou seja, o comediador proporciona a interdisciplinaridade que valida determinados fatos ou situações com diferentes perspectivas.

 

3. CASOS RELEVANTES

Alguns casos exitosos de mediação coletiva tomaram vultosas movimentações midiáticas ao abordarem interesse público, como grandes acidentes, catástrofes, greves, etc. Casos exaustivos e longos, onde a comediação foi condição sine qua non na organização do processo, no acolhimento dos atores e no auxílio às negociações. Conflitos com tamanha complexidade dificilmente são resolvidos por um único mediador.

 

CASO 1 - ACIDENTE DA TAM

Em 17 de julho de 2007 o avião da TAM, voo 3054, vindo de Porto Alegre, não consegue parar na pista do aeroporto de Congonhas/SP, atravessa a Avenida 23 de Maio e se choca contra o prédio comercial da própria TAM, vitimando todos os passageiros e quase a totalidade dos ocupantes de referido prédio. Um total de 199 vítimas fatais.

 - Foi criado uma câmara de indenização - CI 3054 que teve dois escritórios de atendimento, um em São Paulo e outro em Porto Alegre, bem como uma divisão de assistência composta, na prática, por duas mediadoras e seus assistentes, devidamente selecionados e treinados pelos Órgãos do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor.

 

CASO 2 – DEFICIÊNCIA NA MOBILIDADE URBANA DE PORTO ALEGRE

O transporte urbano de Porto Alegre sofreu considerável queda na demanda, inicialmente com a entrada dos aplicativos, e posteriormente como consequência da pandemia. Os contratos entre os empresários e o município tornaram-se impossíveis de serem cumpridos. Onze (11) empresas de transporte entraram em colapso acumulando dívidas.

- A mediação foi composta por três mediadoras, sendo uma negociadora, outra contornando as questões sociais, e a terceira como relatora das sessões de mediação. Contaram também, com a presença da juíza coordenadora do CEJUSC para apoiar e validar as questões negociadas.

 

CASO 3 – REINTERGRAÇÃO DE POSSE EM VIAMÃO

No município de Viamão/RS, 650 famílias ocuparam indevidamente certa propriedade privada de razoáveis proporções geográficas, onde o proprietário ajuizou requerendo a reintegração de posse.

- A equipe de mediadores atuou no sentido de promover o diálogo entre os envolvidos, com a finalidade de um entendimento que contemplasse a todos os interessados. Foi necessário criar uma associação para realizar a compra de 24 hectares de terra pelos ocupantes. A equipe de mediação foi composta por quatro (4) mediadores que realizaram treze sessões de mediações, entre essas algumas audiências públicas com a participação de entes públicos. A mediação foi coordenada por um mediador, ficando os outros três nas atividades de apoio organização e auxílio nas negociações.

Importantes acordos foram firmados em casos como o rompimento das barragens do fundão em Mariana (2015), e de Brumadinho (2019) em Minas Gerais; questões trabalhistas da Oi, entre outros, onde as negociações envolveram entidades representativas que gestaram as mediações com equipes qualificadas que representaram a figura do mediador e do comediador com maestria.

 

4. VANTAGENS E DESVANTAGENS

A presença dos comediadores por certo oferecem vantagens, principalmente por serem aptos a lidar com necessidades e sentimentos divergentes. Não podemos esquecer que o comediador exerce um papel coadjuvante, embora seja um facilitador tão qualificado quanto o primeiro, exceto nos casos de mediadores novatos ou em formação.

Lisa Parkinson afirma que comediadores são mais aptos a conter as necessidades conflitantes e os sentimentos que surgem na mediação que um único mediador, diante disso aponta vantagens relevantes quanto a comediação:

a) Equilíbrio: Um único mediador pode ter maior dificuldade de lidar com todas as questões. Enquanto um mediador lida com os fatos, o outro trabalha na dinâmica das relações.

b) Perspectivas ampliadas e percepções diferenciadas: Dois mediadores ampliam a diversidade cultural e as percepções sobre o conflito o que torna a comediação essencial, por exemplo, para conflitos que envolvem partes oriundas de culturas distintas (cross-cultural mediation).

c) Dinâmica: A presença do comediador permite a utilização dinâmicas circulares, incentivando discussões e debates entre os envolvidos.

d) Estilos e habilidades complementares: A presença de dois facilitadores mesclam estilos de trabalho e habilidades pessoais que enriquecem a mediação.

e) Modelagem: Comediadores fornecem modelos de debates construtivos, não necessariamente em concordância com seu par, desde que não discordem na frente das partes, é favorável para uma negociação amigável.

f) Monitoramento: A presença de mais de um mediador evita descuidos e omissões.

g) Suporte para mediadores: Comediadores fornecem suporte uma para o outro. A presença do comediador é solidária e tranquilizadora para questões estressantes. (PARKINSON. 2016, p 131).

Em complemento ao supracitado, a identificação é outra vantagem relevante quando o conflito envolve profundas diferenças étnicas, sociais, de faixa etária e sexo. As partes podem apresentar dificuldade em se identificar com um só mediador (NALINI, 2018, p. 55).

O proveito não beneficia somente as partes, a mediação disfruta da comediação não como uma metodologia ou técnica à parte, mas como um aprimoramento na atuação, em que acresce um segundo agente ao procedimento, com a finalidade de contribuir para a prospecção de alternativas para a resolução do conflito.

Por certo, a comediação também apresenta seus entraves. Há algumas desvantagens como: Custo - despesas duplicadas; Logística - falta ou atraso de um mediador; Tempo - limitação de tempo; Competição - mediadores assumindo diferentes direções na mediação; Opiniões divergentes - comediadores com opiniões diferentes não conseguirão ajudar as partes; e Dupla pressão - mediadores que reafirmam suas declarações tornam difícil a discordância das partes (PARKINSON. 2016, p.133).

 

5. CONCLUSÃO

No método integrativo da mediação, o mediador poderá trabalhar sozinho ou com outro mediador, embora ambos sejam profissionais capacitados, um exercerá a função de comediador, aliado que contracena com afinada simbiose para o desenvolvimento positivo da mediação. Regido pelos mesmos princípios da imparcialidade, boa fé e confidencialidade, ambos devem estar focados na resolução do conflito, sendo que o mediador assume o comando da comunicação, enquanto o comediador concentra-se em observar o imperceptível ao seu parceiro.

Um bom mediador deve ser capaz de aceitar a diversidade, garantindo a equidade, a redistribuição de poderes, a legitimação do exercício de mediação conjunta, valorizando a atuação de cada um. A mediação é uma tarefa difícil que exige além da capacidade do mediador, a prática de discussões sistemáticas da equipe, nas quais as possíveis discordâncias possam ser corrigidas.

Mediações complexas necessitam da figura do comediador para apoiar, sustentar, organizar e validar as intervenções do mediador, oferendo amplo conhecimento e experiência para tratar aspectos de toda ordem, pois a interdisciplinaridade é uma característica colaborativa da sua função. Distintas áreas do conhecimento possibilitam assistências e intervenções cautelosas e prospectivas determinantes nas negociações. O comediador complementa o caráter humanitarista, a alteridade e a entrega, inerentes à prática da mediação. 

 

 

Notas e Referências 

ALMEIDA, Tânia at al. Mediação de conflitos. Para iniciantes, praticantes e docentes. Salvador, Bahia, 2019. 2ª edição. Ed. Juspodivn.

CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Manual de Mediação Judicial, 2016.

GOLD, Lois. Interdisciplinary team mediation. Mediation Quarterly. 1984

GONZALEZ, Cesar Alberto García. El papel do comediador como fator de eficácia em el processo de mediación. México, 2019. Universidad Autónoma de Nuevo León.

NALINI, José Renato. O judiciário e os alternative dispute resolution (ADR). Revista Direito e Liberdade. ESMARN v.20, n.1. Jan/Abr 2018.

SOUZA, Luciane Moessa. Resolução de conflitos coletivos envolvendo políticas públicas. Brasília, 2014. Fundação Universidade de Brasília.

PARKINSON, Lisa. Mediação familiar. Belo Horizonte, 2016. Ed. Del Rey.

_______, Mediação Familiar. Lisboa, 2008. Ed. Agora.

[1] Tradução dos autores.

[2] Tradução dos autores.

[3] Progressiva escalada em relações conflituosas, resultante de um círculo vicioso de ação e reação. Cada reação torna‑se mais severa do que a ação que a precedeu e cria nova questão ou ponto de disputa. Esse modelo, denominado de espirais de conflito, sugere que com esse crescimento (ou escalada) do conflito, as suas causas originárias progressivamente tornam‑se secundárias a partir do momento em que os envolvidos mostram‑se mais preocupados em responder a uma ação que imediatamente antecedeu sua reação.

[4] Tradução dos autores.

 

O texto é de responsabilidade exclusiva do autor, não representando, necessariamente, a opinião ou posicionamento do Empório do Direito.

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