ABDPRO #164 - A JUSTIFICAÇÃO JUDICIAL E SUA REFUTAÇÃO. OBSTÁCULOS PARA CONTROLAR A VALORAÇÃO DA PROVA EM SEDE RECURSAL: IMPEDIMENTO POLÍTICO E IMPEDIMENTO EPISTÊMICO. A PROVA COMO PARTE DO RACIOCÍNIO JUDICIAL.  CONCLUSÃO  

24/02/2021

Coluna ABDPRO

A JUSTIFICATIVA DA DECISÃO JUDICIAL E SUA refutação

Impugnar uma decisão judicial significa postular certos vícios de justificação, em instância processual específica, para que a decisão seja revista pelo mesmo órgão que a proferiu, ou por outro. Neste último caso, costuma-se dizer que o meio impugnante em questão tem um "efeito devolutivo" e, para alguns, apenas este meio constitui recurso autêntico.

Por outro lado, são numerosos os vícios que pode sofrer a justificação de uma decisão judicial. Analisá-los requer a especificação de certas arestas na justificativa de tais decisões. Nesse sentido, há vários anos tem sido dito entre os teóricos que uma decisão judicial é internamente justificada, se a norma individual que é o resultado decisivo (ou seja, a decisão do produto) decorre dedutivamente da conjunção de uma premissa principal, normativa e uma premissa factual menor. Por exemplo, a decisão cuja premissa principal é que "quem descumpre um contrato deve responder por isto e arcar com o descumprimento” só é internamente justificada, se a premissa factual reza que Antônio lesou João neste contrato, ao não cumpri-lo como resta expresso. A norma individual conclusiva ou decisão do produto será, por modus ponens: "Antônio deverá responder pelo descumprimento contratual conforme expresso em cláusula(s) ”.

A justificativa interna de uma decisão judicial é, no entanto, apenas uma das arestas desta justificativa, talvez a mais superficial. É um requisito mínimo, excessivamente restrito. Além disso, parece sensato exigir que os juízes expliquem por que invocam e usam em seu silogismo cada uma das premissas que o compõem: a premissa factual ou menor e a premissa normativa ou maior.  Nesse sentido, a justificativa independente de cada uma das premissas que compõem o silogismo tem sido chamada de justificação externa. 

Agora, entre as duas premissas da decisão, há uma diferença crucial, a saber: enquanto a premissa maior consiste em uma declaração expressiva de uma norma, a premissa menor é uma declaração expressiva de uma proposição empírica. Assim, enquanto o último é (necessariamente) verdadeiro ou falso, o primeiro não tem valor de verdade. Assim, uma proposição empírica é verdadeira ou falsa dependendo de como o mundo está configurado. No exemplo, a premissa factual será verdadeira se, e somente se, for o caso de Antônio ter descumprido com o contrato. Mas as regras não são verdadeiras nem falsas; no máximo são válidas ou inválidas. Portanto, a justificativa para cada uma dessas premissas terá que se referir as razões de natureza diferente, embora deva envolver procedimentos argumentativos também substancialmente diferentes.

Vale dizer, que não nos determos na questão relativa à justificativa externa da premissa maior ou normativa.  Embora seja útil notar que justificar a premissa factual pressupõe, em certa medida, que a premissa principal já foi determinada.  É esta última premissa que determina qual é a classe relevante dos fatos, isto é, o caso genérico.  Assim, uma premissa factual pertinente será tudo o que constitui uma instância, ou seja, um caso individual, da classe em questão. No exemplo, o contrato assinado e válido de uma pessoa com outra é a classe de fatos, enquanto o descumprimento do respectivo contrato é uma instância dessa classe. 

Ora, justificar externamente a premissa factual segundo a qual "Antônio lesou João" (no aspecto não qualificativo) consiste em dar razões a favor da verdade da proposição que essa premissa expressa; isto é, respondendo à quaestio facti, mostrando que o que é afirmado por meio da emissão dessa declaração realmente ocorreu no mundo.  A justificativa de tal afirmação, costuma-se dizer, depende da presença de razões epistêmicas (ou, o que dá no mesmo: evidências) suficientes para a aceitação da afirmação factual como premissa da decisão. Assim, afirma-se que as afirmações factuais da decisão judicial são justificadas desde que suficientemente comprovadas. 

Nessa perspectiva, a conclusão do raciocínio probatório, se bem-sucedida, traduz-se em enunciado do tipo "está provado que p", ou seja, enunciado probatório que justifica o uso da premissa fática na decisão. No exemplo, afirmar que “Antônio comprovadamente descumpriu determinada cláusula contratual e trouxe prejuízos a joão” justifica o uso da afirmação “Antônio lesou João” como premissa menor da decisão.

Os critérios de suficiência probatória que determinam a veracidade da declaração probatória podem ser definidos de acordo com uma pluralidade de sistemas de avaliações da evidência. Esses sistemas são os métodos de atribuição de peso de evidência aos elementos de evidência (isto é, às razões epistêmicas) que estão disponíveis.  Penso aqui em três desses métodos: o legal (taxativo), a convicção íntima e, por fim, a livre convicção motivada do nosso Código. Deixarei de lado as duas primeiras e me concentrarei na terceira, especificamente quando diz que “a decisão deverá ser interpretada a partir da conjugação de todos os seus elementos em conformidade com o princípio da boa-fé” (assim art. 489, § 3º.  do CPC /2015).

A decisão apoiada “ ..em conformidade com o princípio da boa-fé’ , pode ser pensado como um sistema de avaliação que dispensa tanto o recurso às normas jurídicas que determinam o peso da prova, como a sua suficiência ou não para a adoção de uma ou outra decisão (como no caso do sistema jurídico e seu ônus) e a identificação dessa suficiência com o estado subjetivo de potenciais julgadores (como acontece no sistema da íntima convicção).  Mais precisamente, a única norma jurídica relevante é a que determina que a apreciação das provas deve ser justificada de acordo com as normas legais do livre convencimento motivado; isto é, aquelas da epistemologia em geral, as regras do correto entendimento humano justificado. Entre estas últimas, costumam se destacar as regras da lógica, entre elas o princípio da razão suficiente e a experiência comum.

Este pequeno estudo visa abordar a problemática da revisão de possíveis vícios justificativos relacionados a esse aspecto específico da decisão judicial. Será considerada a possibilidade de se examinar possíveis erros na justificativa externa da premissa factual, especialmente no que se refere à inferência probatória, por órgão diverso daquele que expediu a decisão. Em outras palavras, trata-se da possibilidade de revisão da avaliação das evidências (assim, e apenas como exemplo, a decisão apoiada em conformidade com o princípio da boa-fé, visto a sua subjetividade), principalmente, da conclusão de que certas afirmações factuais são ou não provadas, de forma recursiva.

 

1. Obstáculos sustentados para controlar a Valoração da Prova em Sede Recursal: impedimento político e impedimento epistêmico

A epistemologia é a parte da filosofia que indaga sobre as condições com as quais podemos dizer que sabemos. Tradicionalmente, tem-se entendido que o conhecimento é a crença verdadeira e justificada, que alguém sabe que ‘p’, quando acredita que ‘p’, essa proposição será verdadeira, e sua crença sendo apoiada por (ou tendo sido gerada por) razões do tipo apropriado.

Consequentemente, de acordo com um sistema de prova, as razões apropriadas para julgar se uma afirmação factual está ou não provada serão aquelas que justificariam a crença na verdade dessa afirmação em qualquer domínio cognitivo. Isso não significa que, para afirmar que uma afirmação de fato é provada em juízo, as demais condições devam necessariamente ter sido atendidas para falar de conhecimento.

Nada impede que uma declaração possa e deva ser considerada legalmente provada por razões epistêmicas, mas, ao mesmo tempo, essas razões não são suficientes para dizer que é conhecido o fato a qual a declaração se refere. Além disso, aceitar uma premissa factual como verdadeira no âmbito de uma decisão judicial pode ser justificada mesmo que a proposição expressa por essa premissa seja falsa. O que importa aqui, não é tanto ter o mesmo grau de razões que justificariam dizer que alguém sabe, nem ter garantias de que a proposição é verdadeira, o importante é que as razões que são apeladas para justificar a aceitação daquela proposição são da mesma natureza daquelas que justificam as crenças: razões epistêmicas.

Sabemos que aqui não é o espaço apropriado para aprofundar a discussão sobre quais são os critérios corretos para a justificação das crenças, mas falaremos breve. Aqui, a chamada "epistemologia jurídica" que ocupa um fragmento extremamente restrito nessa discussão mais ampla, uma circunscrição que aponta em duas direções.

Por um lado, vincula a epistemologia jurídica a uma concepção intuitiva e discreta da ontologia, bem como da possibilidade e do modo de acesso à realidade. Por outro lado, mais precisamente em virtude do último, sugere certos limites do que é exigido de cada decisão judicial em termos de justificação epistêmica. Talvez, e só talvez, pareça razoável exigir de cada tomador de decisão em cada ato de tomada de decisão, no que diz respeito à premissa normativa de seu argumento, a elaboração de uma “peça de filosofia jurídica” completa. Mas, certamente não pareceria razoável exigir, com respeito à premissa factual, uma justificativa que consiga demonstrar a inexistência do gênio do mal, conspirando para nos enganar, assim sobre o que pensamos perceber ou refutar, visto a conjectura de que somos cérebros medianos. A relevância que ambas as percepções sensoriais e outras crenças têm para justificar propósitos de outras crenças ou proposições nem mesmo parece estar em disputa, uma tese que não é de forma alguma indiscutível no campo da epistemologia.

Em virtude do que foi dito, e a fim de avançar em direção ao tema proposto, usarei uma concepção de justificação epistêmica que não apenas se encaixa muito bem com essas intuições comuns, mas também fornece fortes argumentos a favor de muitos deles: o funderentismo de Susan Haack (HAACK, Susan. Evidence and inquiry: a pragmatist reconstruction of epistemology. Nova Iorque: Prometheus Books, 1993).

Na perspectiva de Haack, o fundacionalismo e o coerentismo, rivais tradicionais na arena epistemológica, estão certos e igualmente sofrem de certos defeitos. O fundacionalismo consegue destacar que a percepção sensorial tem relevância na justificação epistêmica, mas está errado na medida em que assume que a justificação corre em apenas uma direção: das crenças básicas (para colocá-lo rapidamente: naquelas geradas a partir da percepção sensorial) às crenças derivadas, sem a possibilidade de receber, por sua vez, justificativa de (alguns) dos últimos. Ao mesmo tempo, o coerentismo consegue admitir que todas as crenças devem ser justificadas com outras crenças, mas erra na medida em que nega toda relevância justificativa para a percepção sensorial, para a experiência comum, terminando por se desconectar do mundo exterior.

Haack mostra que as tentativas fundacionais e coerentes de escapar desses erros levam ao abandono suave e plano das posições iniciais. A concepção de Haack emerge da reconstrução mais plausível de cada uma dessas duas posições. O funderentismo pressupõe que a experiência tem relevância justificadora, mas também admite que as crenças decorrentes das percepções sensoriais recebem parte de seu apoio justificativo de outras crenças que fazem parte do repertório doxástico de cada agente (O termo doxástico é derivado do grego antigo δόξα (doxa), que significa "crença" ou "opinião").

Suponha que a proposição a ser provada seja ‘p’., a aceitação de ‘p’ será mais ou menos epistemicamente justificada de acordo com três parâmetros, a saber: (a) quão favorável é a evidência direta em relação a ‘p’ (quanto mais suporte, mais justificativa); (b) quão seguras são as razões diretas para ‘p’, independentemente da crença em ‘p’ (quanto mais segurança, mais justificativa); (c) a abrangência das provas a favor de ‘p’ (quanto maior a abrangência, maior a justificativa).

As evidências diretas referidas por (a) incluem (a.1) certas razões (ou seja, outros conteúdos proposicionais incluídos na rede de crenças do agente) que operam diretamente indicando a verdade ou falsidade de p e (a.2) certas evidências experienciais em favor p. A margem em que (a.1) e (a.2) favorecem a crença em p depende de quanto suporte aquele conjunto de evidências oferece à proposição ‘p’.

A segurança das razões diretas referidas em (b) refere-se a razões e evidências experienciais adicionais que indiretamente justificam a crença em ‘p’. Conforme declarado no parágrafo anterior, as evidências em favor de ‘p’ são compostas por certas razões em favor de ‘p’ e por certas evidências experienciais. O parâmetro (b) indica como é justificado aceitar essas razões em favor de ‘p’. As razões a favor de ‘p’ são, por sua vez, hipóteses factuais, de modo que a forma como são justificadas é idêntica à maneira como a crença em ‘p’ é justificada. Não é possível aprofundar esses aspectos para os fins deste trabalho, embora acredite, que o que foi dito seja suficiente para cumprir o objetivo proposto.

O decisivo aqui é perceber que todos esses parâmetros agora englobados no rótulo de razões epistêmicas são individualmente e conjuntamente ajustáveis. Além de cada item poder ser apresentado em maior ou menor grau, existem múltiplas combinações possíveis entre eles, que também irão variar os graus de justificativa da proposição em questão. Nesse sentido, é importante destacar que os diferentes parâmetros são, por um lado, complementares para efeito de julgar se a aceitação de uma proposta é justificada ou não e, por outro lado, compensáveis, no sentido de que o a diminuição em um deles poderia ser compensada pelo aumento de outro.

De resto, nenhum destes critérios é quantitativamente ajustável, assim não é possível saber o quanto mais ou menos justificado um indivíduo se encontra em relação a uma determinada crença, nem em termos globais nem em relação a cada um dos critérios relevantes. Não é possível quantificar o favorecimento das evidências a respeito da proposição, nem o suporte justificativo em favor das razões diretas, nem a abrangência do conjunto de elementos disponíveis. Nem é sua combinação, sua complementaridade, nem a maneira pela qual eles são compensados quantificáveis. Assim, a tese da gradualidade somada à impossibilidade de quantificação leva a outra tese aqui crucial, a saber: a do contextualismo.

Nesse sentido, o contextual não é o critério epistêmico, mas a completude ou suficiência na satisfação de (os únicos, os autênticos) critérios epistêmicos (por exemplo: integração explicativa, segurança, integralidade, etc.).  A suficiência de razões epistêmicas em favor de proposições varia de acordo com o contexto de decisão. Talvez uma distinção possa ser feita, por um lado, os parâmetros epistêmicos que justificam a adesão a uma ideia ou ocorrência ( ou seja, a um conteúdo proposicional como o conteúdo semântico de um ato ilocucionário meramente assertivo potencial) e, de outro, os parâmetros operacionais epistêmicos na justificativa do ato de se afirmar e, principalmente, na justificativa de atos adicionais para os quais o conteúdo afirmado (e aceito) opera como pressuposto ou razão auxiliar.  A natureza das razões que justificam a aceitação de uma proposição é sempre a mesma, isto é, razões epistêmicas, mas sua completude ou suficiência muda dependendo do que vai ser feito em cada contexto. Assim, o que determina a suficiência ou completude das razões epistêmicas a favor de uma proposição factual são as razões práticas relacionadas à ação a ser realizada a partir da aceitação dessa proposição.

Talvez fosse até possível dizer que o verdadeiro “núcleo duro” da epistemologia aponta para a justificativa da aceitação de um conteúdo proposicional sem maiores delongas, um ponto de vista daquele que se preocupa apenas com a verdade das proposições que ele aceita e sem nenhuma consideração prática adicional.  Deste ponto de vista puramente epistêmico, ao que parece, alguém estaria justificado em acreditar em tudo, desde que possua melhores razões epistêmicas.

No entanto, dificilmente poderíamos admitir que este grau de suporte para uma proposição é sempre adequado para agir. Certas considerações práticas podem impor - talvez entre outras - demandas epistêmicas posteriores com respeito àquelas que justificam aderir a uma ideia (ou talvez até mesmo se contentar com menos).

A injustificabilidade do ato é, sem dúvida, uma consideração prática; mas o que é peculiar sobre essa consideração prática é que ela encontra seu fundamento na evidência insuficiente para realizar a ação, na precariedade da justificativa epistêmica para fins práticos. Assim, a tese contextualista está intimamente ligada a uma forma específica de pragmatismo.

A área em que a questão da tensão entre o direito à dupla conformidade e a alegada impossibilidade de revisar a inferência probatória em recurso geralmente foi levantada, tem sido a do chamado recurso com prova subjetiva. Nessa área, a rejeição da revisão do que tem a ver com a avaliação das evidências frequentemente se concentra em três argumentos relativamente independentes.

O primeiro deles é de natureza essencialmente política e tem a ver com uma concepção conservadora e essencialista deste recurso específico, ou seja, da cassação ou reforma. Nesse sentido, a abordagem levantada às questões de apuração da prova é rejeitada pela mera denominação jurídica do recurso, por suas razões históricas, por sua “natureza jurídica”, e assim por diante. Geralmente, esse tipo de argumento remonta às origens da cassação como um desafio natural ou essencialmente destinado ao controle entre poderes políticos. Em alguns casos, isso também se deve aos normativos legais que, com base nessa concepção, excluem indiscutivelmente, por meio dos textos normativos, o acesso desse questionamento à revisão das questões de fato. 

O segundo argumento, foca em uma alegada impossibilidade epistêmica factual de acesso pelo tribunal, ao procedimento para definir os fatos e avaliar as evidências. Não seria mais um obstáculo meramente político ou projeto legislativo convencional, mas um impedimento epistemológico genuíno. Este é o argumento em que devemos nos concentrar. A revisão é, deste ponto de vista, impossível, por razões cognitivas, de modo que a avaliação da prova se torna um julgamento infalivelmente exclusivo do juízo perante o qual a prova foi produzida e analisada.

Em outras palavras, o tribunal que busca rever a decisão a quo pode não ter acesso ao raciocínio probatório exarado. Ele será irremediavelmente "cego" em questões de valor ou peso epistêmico das evidências produzidas. Consequentemente, faltará qualquer aptidão crítica quanto à inferência probatória, pois tais evidências foram retiradas em primeira instância. Isso teria como consequência que as inferências deste último, em sede de tribunal se tornariam epistemicamente impermeáveis, irreversíveis, sendo ele o soberano indiscutível em questões de correção dos fatos.

A este segundo argumento é adicionado o terceiro, que está intimamente relacionado a ele. Com efeito, alega-se que a revisão do recurso da avaliação das provas pelo tribunal distorceria as regras da oralidade e do imediatismo. Assim, a dupla garantia, se estendida à revisão da avaliação da prova por outro juizo, tornar-se-ia uma espécie de anti-garantia:  e levaria à violação do imediatismo, da garantia do requerido, bem como também da oralidade, redirecionando a avaliação final das evidências para um órgão diferente daquele que testemunhou sua divulgação. 

É um obstáculo híbrido: pois por um lado, é de natureza política, pois coloca a garantia do imediatismo sobre a da revisão em segunda instância. Mas essa escolha depende da concepção epistêmica do imediatismo. Ou seja, o argumento da impossibilidade epistêmica indicado no parágrafo anterior é considerado correto. Esta é a relação íntima indicada entre o segundo e o terceiro argumentos, e o que torna o último um híbrido, uma vez que se o segundo argumento for rejeitado, não parece haver uma boa razão para supor que a garantia da dupla conformidade, se estendida ao avaliação da revisão da prova, afete a garantia de imediatismo.

Seja como for, como é evidente, ao contrário do primeiro, o segundo e o terceiro argumentos não se limitam a afetar a capacidade do recurso. 

A rejeição do controle da avaliação da prova nas instâncias superiores como sustentam alguns, constituem uma solução para um problema inexistente, baseado na má compreensão do raciocínio probatório. Uma reflexão mais rigorosa mostra que nem o segundo nem o terceiro argumento são aceitáveis, e que ambos se baseiam no exagero do que é produto do imediatismo e do que ele impõe.

 

A prova como parte do raciocínio judicial

O trabalho do juiz, num determinado instante, encontra-se num espaço de trevas, constituído pelos fatos que sustentam cada uma das afirmações das partes, de modo que é necessário apurar com justiça sobre tais fatos, que constitui o objetivo principal do procedimento probatório, esta afirmação, que parece redundante e evidente, adquire importância na medida em que os elementos que constituem a decisão  se baseiam em afirmações sobre fatos cuja veracidade é desconhecida em primeira mão; Da mesma forma, esse caráter de verdadeiro ou não, que o relato factual pode adquirir, não se manifesta por si só, mas como resultado de um trabalho lógico, baseado na avaliação simultânea e pactuada dos demais fatos relevantes do caso, em que graças ao raciocínio indutivo a sua validade pode ser verificada. Este segundo aspecto é o que interessa com maior ênfase.

Na verificação da veracidade dos fatos, muitas vezes a simples observação da realidade pode nos dar a resposta, porém, no caso do juiz, ainda que tal verificação requeira apenas a ação sensorial direta dele, o caráter da verdade. dos fatos é obtido indiretamente ou mediado, para o fim do qual utiliza ações judiciais que lhe permitem criar uma convicção da verdade, por exemplo, em um processo de indenização por danos derivados de um acidente de trânsito, os danos pessoais são diretamente observáveis, mas o juiz costuma criar convicção por meio de atestados médicos que o comprovam, ou seja, os exames, nesses casos, não são resultado direto da observação, mas de uma inferência que se faz a partir de outros enunciados. As inferências padrão do exemplo mencionado são dedutivas por natureza e são caracterizadas por leis lógicas nas quais o raciocínio válido requer necessariamente que sua origem seja encontrada em premissas verdadeiras, isso significa que não há como concluir premissas verdadeiras em um raciocínio que não seja, muitos dos raciocínios judiciais seguem este esquema de raciocínio.

Uma revisão das sentenças proferidas por vários tribunais do país, visualizamos que o raciocínio dedutivo é o mais popular, para dizer o mínimo. Porém, o raciocínio lógico independe do tema epistemológico dos fatos, de sua conotação factual de verdade, de modo que um argumento dedutivo não é necessariamente verdadeiro, a menos que as premissas o sejam, isso significa que o raciocínio dedutivo não garante a infalibilidade dos resultados. Isso ocorre basicamente nas chamadas provas científicas, nas quais além da validação científica, é importante que a técnica processual utilizada seja adequada, como no caso das habilidades grafotécnicas, em que é necessária uma coleta adequada de amostra. Assim, conhecer as circunstâncias em que foram levados a aceitar a validade de seus resultados, além do método de avaliação em si, que pode ser variável dependendo da formação científica do responsável.

O raciocínio dedutivo precedente é o raciocínio indutivo, que nada mais é do que o processo em que o raciocínio partindo do particular para chegar ao geral, exatamente o oposto da dedução. A base da indução é a suposição de que se algo é verdadeiro em algumas ocasiões, também o será em situações semelhantes, mesmo que não tenham sido observadas. A indução é verificada na atividade diária basicamente por dois tipos de operações que são chamadas de previsão e causalidade. Desse ponto de vista, verifica-se que o raciocínio probatório mais adequado para a atividade jurisdicional é justamente aquele ao qual corresponde a evidência indutiva, uma vez que utiliza um método de raciocínio no qual as premissas, ainda que logicamente verdadeiras, não implicam necessariamente um caráter de verdade em seu resultado, neste caso estamos diante de probabilidades suficientes para criar convicção no juiz.

Deve-se notar que a probabilidade de certeza de um fato que surge do raciocínio indutivo implica obviamente uma margem de incerteza e liberdade de escolha entre as opções; do que resulta o poder de jurisdição exercido pelo juiz, para decidir sobre os direitos invocados. Nesse contexto, é necessário que as margens de incerteza sejam reduzidas, de modo que não se deve esquecer que a inferência judicial deve se basear em evidências empíricas perfeitamente identificáveis, para que as proposições que se formulem sobre tais evidências ou fatos, possam ser qualificadas com certeza como verdade ou não, evitando que sob o pretexto de enunciados descritivos apenas sejam formulados juízos de valor.

Este tipo de raciocínio, como se pode verificar, requer uma série de circunstâncias factuais que permitam chegar à conclusão, constituída pela resolução decisória, fundamentalmente quando se trata de casos complexos em que um único fato não é suficiente para determinar a condenação, declaração ou imposição pelo juiz. Em muitas ocasiões se tentou dar às máximas da experiência a conotação de leis sociais, cuja regularidade tem sido observada ao longo do tempo, para identificá-las como dedutivas, como no caso de quem saiu de uma reunião e dirigiu, ficou bêbado e causou o acidente, no entanto, essa inferência é uma espécie de indução, e seu resultado é uma hipótese com alto grau de probabilidade, ou seja, uma afirmação que consideramos provavelmente verdadeira, embora não saibamos se é ou não. No entanto, não se deve esquecer que o conhecimento indutivo é apenas provável, portanto, o resultado da indução pode ser falso. Nesse contexto de falibilidade dos resultados probatórios, os métodos de avaliação da evidência adquirem especial importância para o modelo judicial da evidência, que deve observar todos os cuidados metodológicos para aproximar os resultados da verdade em grau extremo.

A motivação da prova, ao contrário da motivação da sentença, está relacionada à determinação de sua qualidade de verdade, ou probabilidade, dos enunciados introduzidos no processo pela prova, ou seja, se constitui no trabalho do juiz pelo qual ele explica as razões que sustentam esse caráter de verdade, em oposição a um sistema em que a avaliação fundamentada é realmente arbitrária e subjetiva. Embora nosso sistema processual abranja princípios como imediatismo ou avaliação por meio da apreciação fundamentada, isso não significa que, em virtude desses princípios, o juiz tenha a liberdade de simplesmente confiar em suas próprias percepções sensoriais ao decidir. A participação direta e imediata do juiz, defendida, não implica que a impressão que o juiz dá nas audiências, das partes ou das provas apresentadas, seja a única fonte de suas decisões, pois esta seria puramente subjetiva, nesta área surge a necessidade de motivar a prova, que deve estar ligada tanto à prova direta - adquirida pela imediatez do juiz - quanto à prova indireta. Por outro lado, a apreciação fundamentada confunde-se, pelo ónus processual, com a afirmação genérica de prova dos fatos, com o qual pretende dar cumprimento o nosso CPC, num sentido real do sistema de valoração que promove o padrão indicado, referindo-se especificamente à exigência de raciocinar e explicar as razões e fontes pelas quais a prova  foi realizada. Neste caso, a apreciação fundamentada não pode significar a declaração formal de cumprimento de um requisito processual, ou seja, o juiz não está autorizado a proferir sentença exclusivamente com base em sua convicção íntima, o que se verifica na prática processual.

É provável que, no decorrer do processo, o julgador possa perceber por meios sensoriais que uma parte não está dizendo a verdade, mas deve abstrair sua convicção íntima para motivá-la dos outros meios de prova que o levam a determinar o caráter de verdade de sua primeira impressão, pois também é possível que aconteça o contrário, ou seja, que ele não possa justificar sua convicção. Consequentemente, o trabalho de motivação se constitui como um filtro em relação ao trabalho intelectual do juiz, é o baluarte da racionalidade que permite consolidar os argumentos que se refletirão na decisão. Desta forma, a técnica de motivação recomendada é aquela pela qual três elementos são estruturados em detalhes: (i) exposição das evidências, (ii) valor probatório e (iii) inferências feitas sobre elas. Sobre esta questão, é pertinente especificar que a apreciação fundamentada preconizada pelo Código de Processo Civil, embora na prática não implique qualquer justificativa dos meios probatórios, no entanto, não contraria este exercício do juiz, uma vez que cobra sentido pleno, tendo em conta que a justificação dos fatos não é um simples ato, pelo contrário, a diversidade de elementos probatórios que se apresentam num caso concreto, em que cada um deles deve ser apreciado, implica uma tarefa de justificação da prova, e, consequentemente, também da determinação do caráter de verdade das hipóteses formuladas a partir deles. Da mesma forma, é inaceitável a forma judicial pela qual as sentenças se referem aos autos ou documentos que constam do expediente, alegando que sua mera incorporação ao processo como prova implica sua justificação. A motivação analítica da evidência deve ser ainda pedagógica e autossuficiente, a explicação do raciocínio não deve ser entendida, mas deve ser cristalina a partir da leitura da sentença.

Nessas condições, na medida em que existem vias de refutações disponíveis, tudo parece indicar que a decisão judicial pode ser criticada por meio da alegação de que o juiz estabeleceu incorretamente a suficiência probatória. Os erros, neste sentido, podem ser de dois tipos: por um lado, quanto a (a), a presença de evidências epistemicamente relevantes e o que elas permitem inferir; de outro, no que diz respeito à alínea b), a sua suficiência axiológica para adotar a decisão em questão. A propósito, a discussão sobre esse segundo ponto é consideravelmente mais complicada e provavelmente não há possibilidade de resolvê-la recorrendo a critérios objetivos de correção, como qualquer discussão sobre o que é moralmente correto. Mas isso não impede que críticas e revisões sejam possíveis: Sempre será admissível questionar - e este último mesmo em parte com critérios epistêmicos objetivos – visto a satisfação do padrão da prova e a consequente correção da constituição da suficiência pelo juiz. 

Na verdade, hoje é frequentemente assumido que os padrões de prova, os limites da suficiência epistêmica, estão ligados à força da inferência probatória que os aplica. Às vezes, o propósito de analisar tal inferência tem sido recorrido ao modelo de argumento delineado por Stephen Toulmin em seu livro The Uses of Argument (1958) .  Esse é um modelo de argumento que parece especialmente adequado para os propósitos aqui propostos.

Repetindo, penso que esta é a única maneira pela qual a distinção procedimentalista (obsoleta) entre evidência direta e evidência indireta faz algum sentido: dependendo do ato de fala, pois constitui um relato das percepções sensoriais da pessoa ou uma conclusão resultante de ter processado certas inferências em formação.  Assim, por exemplo, o juiz (que informa e escreve que)  a testemunha afirmou que viu claramente e ouviu claramente e afirma ter estado com a parte no lugar l no dia d.  Somente as declarações que reportarão diretamente esses dados sensoriais (ou seja, sobre o que foi percebido, o que foi visto e ouvido) seriam declarações genuínas de imediatismo.

Em qualquer caso em que, ao contrário, se faça necessário fazer algum tipo de inferência que do que se percebe leva ao enunciado factual, já será a chamada "evidência indireta", enunciados inferenciais: por exemplo, fingir que de o que é visto e ouvido (ou seja, o que é imediatamente percebido) a testemunha mente. Este último enunciado é inferencial, pois supõe pelo menos uma etapa argumentativa, intelectual, que inclui pelo menos um enunciado não perceptivo. Consequentemente, como o leitor já pode perceber, o campo de relevância das chamadas "provas diretas" dos enunciados imediatos parece extremamente limitado, senão simplesmente nulo: elas só serão relevantes se o enunciado for justificado (ie a reivindicação final do argumento) consiste na própria percepção do juiz, em sua própria sensação interna. Em outras palavras, as declarações de imediatismo só aparecem em cena quando o que se põe em discussão é a ocorrência do evento (alegado como) percebido, assim se a testemunha realmente fez ou não os sons que o juiz afirma ter percebido através de seus sentidos. Mas a verdade é que essas não são geralmente as declarações factuais cruciais da decisão judicial.

A sua relevância justificativa, no que diz respeito à reivindicação em questão, a sua relevância inferencial, depende da existência de certas regras de ligação. Por exemplo, os dados segundo os quais "a testemunha estremeceu na hora do depoimento" (que pode ser uma declaração de imediatismo se for baseada na percepção visual desse "tremor" pelo juiz) são relevantes como prova a favor do alegar que "a testemunha estava mentindo" apenas com base em uma regra.  Esta oratória, por exemplo, para que “sempre que - ou quase sempre - a testemunha treme, será porque mente”.

Para sintetizar o que foi dito até agora, a estrutura de argumento reconstruída e as distinções traçadas poderiam ser ilustradas da seguinte maneira: a premissa factual da decisão judicial é identificada com uma reivindicação (ou seja, uma declaração factual). Dois tipos de dados podem ser fornecidos a seu favor: declarações inferenciais ou declarações imediatas. Este último consiste no que é direta e imediatamente percebido pelos sentidos da pessoa que justifica a afirmação. Os dados inferenciais, por outro lado, apoiam a reivindicação por meio do recurso a regras de apoio. Estes podem, por sua vez, ser de dois tipos, dependendo se são apoiados pela observação do mundo ou por atos autorizados. No primeiro caso, a regra de apoio será uma máxima de experiência e todo o argumento será uma presunção hominis. No segundo caso, a regra de sustentação será uma norma jurídica e toda a argumentação será uma presunção iuris.

 

CONCLUSÃO

A prova judicial corresponde a uma elaboração doutrinária na qual participam tanto o juiz como as partes, cada qual no seu papel, seja pela fixação dos fatos alegados (partes) e polêmicos, seja pela decisão sobre a validade daqueles (juiz). O objeto da prova judicial é constituído pelos fatos que constituem o objeto do conflito judicial, incorporando ao conceito de fato todos os fatos possíveis variáveis ​​que podem ser derivadas de questões de evidência no processo.

A concepção cognitiva da prova é o que permite a avaliação da prova de forma racional, tendo em conta a probabilidade de certeza das provas disponíveis. A prova assumida do ponto de vista racional, não subjetiva, permite determinar a veracidade das hipóteses que explicam os fatos da polêmica, bem como a utilização de meios para contestar uma possível conclusão imperfeita determinada pelo juiz fundado em instalações com probabilidade de certeza muito baixa.

Assim, como tentamos mostrar de forma singela, não pode haver limites de reanálise nos recursos, seja ou não quando o caso diz respeito a prova colhida presencialmente por imediação ou quando a sentença se utiliza de presunção hominis. A reanálise deve ser ampla e em todos os aspectos. No que refere ao raciocínio probatório, já de partida será necessário reconhecer que consiste em atividade complexa. Ir das provas aos fatos que se quer determinar implica a realização de uma série de inferências. Chama-se inferência o passo que vai de uma informação integrada ao processo à conclusão sobre o fato cuja ocorrência importa ao caso em questão. Diga-se aqui, num caso de reanálise das questões pela óptica da boa-fé do julgador, como o exemplo acima colocado.

Estas inferências são chamadas de inferências probatórias epistêmicas. Probatórias porque são realizadas precisamente na etapa processual das provas e epistêmicas porque se devem ao esforço do agente em se aproximar ao máximo da verdade dos fatos. O esforço de determinar os fatos o mais próximo possível a como ocorreram, em realidade, dependerá do emprego de generalizações empiricamente observadas do tipo “Quando A ocorre, B ocorre também”. Elas são válidas porque efetivamente a ocorrência de fatos da categoria A costuma ser seguida da ocorrência de fatos da categoria B. Logo, quando no processo se determina a ocorrência de um fato a, fica autorizada, com isso, a conclusão da ocorrência do fato b também.

Não é demais esclarecer que as inferências probatórias epistêmicas representam a valoração racional e livre das provas, em casos onde isto seja possível. De posse de suas faculdades intelectuais, o juiz integra as generalizações que estima relevantes aos fatos do caso individual que tem sob exame. Não há regras que predeterminem o rendimento de meios de provas em específico, ou que, ainda, entre eles, produza qualquer sorte de hierarquia. Daí dizer-se livre. Mas também é importante salientar o predicado racional, que significa que a liberdade para valorar as provas não inclui liberdade para considerar prova sua mera convicção íntima. O juiz é livre de tarifações jurídicas que engessem previamente o raciocínio, mas não é livre da tarefa de determinar fatos conforme razões cuja qualidade possa ser controlada por outros sujeitos.

Apesar do importante papel desempenhado por inferências probatórias epistêmicas no contexto de determinação dos fatos no processo, não há como se deixar de acudir às chamadas inferências probatórias normativas. Há exercício livre das faculdades cognitivas, mas a determinação dos fatos também pode significar o seguimento de regras. A regra conhecida como presunção de inocência civil, por exemplo, obriga o juiz a decidir com base na inocência sempre que inexistam provas suficientes da culpabilidade do acusado sobre o fato imputado pelo autor, ao invés de tentar inverter este ônus de forma dinâmica e quando não de ofício.

A regra antecipa o resultado “inocente” nas hipóteses de ausência/insuficiência de provas, isto se aplica tanto no penal quanto no cível, e este foi o posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos, que temamos não observar em nosso sistema, e isto se visualiza de certa forma também quando se aplica a regra do ônus da prova que deriva do direito romano (STC 48/2003, de 12 de Marzo).

Em suma: claro está que a determinação dos fatos é complexo e que a sua complexidade é perfeitamente justificada. Nela, inferências probatórias epistêmicas e normativas dividem espaço. As inferências probatórias normativas servem à determinação dos fatos em hipóteses as quais o emprego da discricionariedade judicial no tema probatório envolve riscos que merecem ser evitados.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Statue of Justice - The Old Bailey // Foto de: Ronnie Macdonald // Sem alterações

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