(Posfácio do livro, ainda no prelo, “Crítica Hermenêutica do Direito Processual Civil – uma exploração filosófica do Direito Processual Civil Brasileiro em tempos de (crise do) protagonismo judicial”, de autoria de Ricardo Augusto Herzl, a ser publicado, pela Editora Fórum, na “Coleção Prof. Edson Prata”)
Como a maioria dos bacharéis formados no Brasil, minha educação em direito processual foi de cunho publicista. Ouvi, acreditei e, já formado, segui meu caminho auxiliado pela doutrina elaborada pelos mais destacados processualistas, sobretudo aqueles ainda vivos e cuja produção era constante.
O primeiro susto veio com os escritos e palestras de J. J. Calmon de Passos. As críticas mordazes feitas pelo saudoso professor baiano ao instrumentalismo processual provocaram em mim forte estranhamento. Assisti-lo em toda sua eloquência era algo que fazia doer, cutucava o cérebro como ave carniceira e impelia a profundas reflexões. Tive (na companhia de Paulo Leonardo Vilela Cardoso) a felicidade de estar com ele algumas vezes, no Hotel Glória, Rio de Janeiro, nos memoráveis congressos organizados pelo Instituto de Direito – ID, conduzidos por James Tubenchlak (além de Calmon, observava embasbacado as performances de Yussef Said Cahali, J.E. Carreira Alvim, Miguel Reale, Luiz Fux, Amilton Bueno de Carvalho, Alexandre Freitas Câmara, Sylvio Capanema de Souza, Sílvio Rodrigues, Lenio Luiz Streck, Nagib Slaib Filho, entre tantos outros), e também em evento ocorrido na minha cidade natal.
Se a memória não me atraiçoa, pouco depois passei a consultar com regular interesse textos dos mestres mineiros Ronaldo Brêtas[1] e Rosemiro Pereira Leal,[2] por intermédio de quem conheci a obra de José Alfredo de Oliveira Baracho,[3] todos sem exceção preocupados em refundar, cada qual a seu modo, o direito processual a partir de bases constitucionais. A essa altura, a semente decerto já estava plantada, e dali em diante o espectro da dúvida tornou-se um companheiro frequente, como um calo a machucar o pé, não importando o quão confortável fosse o sapato.
Então, não é que me aparece Glauco Gumerato Ramos. Nós nos conhecíamos, éramos amigos e o somos hoje, mais ainda. Mas ele, a esse tempo, ressurgiu no cenário nacional reconfigurado, por assim dizer. Uma espécie de Gumerato Ramos II, com novidades a mil na cabeça, fruto de sua estadia na Universidad Nacional de Rosario – UNR (Província de Santa Fé, Argentina). Ali estudou com Adolfo Alvarado Velloso e fez contato com pesquisadores de variadas nacionalidades. Conheceu ninguém menos que Juan Montero Aroca, o processualista de perfil garantista mais importante do mundo, dele se tornou íntimo e foi fortemente influenciado por suas ideias. Leu muito, argumentou, perscrutou e se limpou da doutrinação ativista cuja cartilha levava a reboque seu pensamento. Glauco desencantou-se, por esforço próprio desgarrou-se da multidão que acompanha maravilhada o flautista de Hamelin... Escreveu textos que desafiam o senso comum, sugerindo alterações legislativas impensadas entre nós, disparando uma metralhadora de dúvidas sem fim contra a propedêutica processual reinante e suas multifacetadas consequências práticas.
Nessa mesma época, nascia o Congresso de Direito Processual de Uberaba, organizado por uma equipe de advogados uberabenses (André Menezes Delfino, Claudiovir Delfino, Dinieper C. Assis, Eduardo Carvalho Azank Abdu, Fernando Fonseca Rossi, Gilberto Martins Vasconcelos, João Delfino, Katia Silva Alves, Leone Trida Sene, Lídia Prata Ciabotti, Luciano Camargos, Luciano Del Duque, Lúcio Delfino, Maira Rubia Sousa, Marcelo Venturoso de Sousa, Paulo Emílio Derenusson, Paulo Leonardo Vilela Cardoso e Vicente Flávio Macedo Ribeiro), sob a eficiente liderança do professor João D'Amico. Até 2016, foram dez edições anuais, realizadas em conjunto pelo Centro de Estudos e Promoção ao Acesso à Justiça (CEPAJ) e Instituto dos Advogados de Minas Gerais (IAMG) – algumas edições contaram também com o inestimável apoio da Ordem dos Advogados de Minas Gerais (OAB/MG) –, onde marcaram presença alguns dos mais consagrados juristas brasileiros e internacionais.[4] Um evento que começou grande, apadrinhado pela força da memória de Edson Prata e Ronaldo Benedicto Cunha Campos, saudosos processualistas mineiros cuja importância é lembrada ainda hoje em todo o País. Em seu núcleo duro, sempre esteve Glauco Gumerato Ramos (além dos professores Humberto Theodoro Júnior, Eduardo José da Fonseca Costa e Luis Eduardo Ribeiro Mourão), advogando fielmente suas teses garantistas que rendiam, em jantares de confraternização, acalorados e infindáveis debates.
Já doutor em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC-SP – fui orientado por Donaldo Armelin, professor vocacionado, culto, cativante, afável, sem vaidades, amante do diálogo e intensamente comprometido com a evolução intelectual de seus alunos –, aceitei o convite de Alvarado Velloso, intermediado por Glauco Gumerato Ramos (ele, de novo!), para cursar mestrado na aludida Universidad Nacional de Rosario. Fomos eu e Sergio Almeida Ribeiro, outro querido amigo que mantinha latente em si o espírito garantista. Foram dois anos muito prazerosos: carnes de primeira, vinhos, amizades, bate-papos e estudos lidando com o direito processual em atenção a seu papel de resistência contra desvios e abusos judiciais (portanto, o reverso do processo encarado como instrumento da jurisdição). Conheci processualistas dos quais sequer tinha ouvido falar, aprofundei-me na pesquisa de teses que até então me soavam um pouco burlescas, embrenhei-me sem medo de ser feliz no universo do processessualismo garantista, percebendo toda sua riqueza e logicidade, as divergências que despontam entre seus próprios apologistas e entre eles e os defensores do ativismo judicial. De lá pra cá viajei bastante pela América Latina (Argentina, Chile, Uruguai, Panamá, México), mormente para assistir a eventos promovidos pelo consagrado Instituto Panamericano de Derecho Procesal.
Como bom geminiano, permanecia desgostoso comigo mesmo – é como uma chaga que não quer cicatrizar. Em 2014, porém, descobri a possibilidade de cursar estágio pós-doutoral na Universidade do Vale do Rio dos Sinos – UNISINOS, com a supervisão de Lenio Luiz Streck, jurista cujos estudos avançam sobre todos os ramos do Direito indistintamente, unidos por uma potente argamassa a envolver Direito Constitucional, Teoria do Direito, Hermenêutica Jurídica e Filosofia do Direito. Em sua bagagem, traz nada menos que trinta livros, dentre os quais um vertido para o inglês, quatro para o espanhol e outro escrito em alemão. Entre suas cruzadas, talvez a mais proeminente seja contra o ativismo judicial, que é travada ferozmente por meio de um trabalho seriíssimo de revalorização da doutrina, em socorro do necessário despertar do senso democrático e republicano do povo brasileiro.
Não conhecia Lenio, mas sabia com quem mantinha relação de amizade. Pensei logo naquele provérbio francês: “Os amigos de nossos amigos são nossos amigos”... Enfim, catei o telefone e liguei para Dierle Nunes, processualista mineiro da nova geração (que também é minha geração), afiliado à linha de pesquisa do processualismo democrático, respeitadíssimo crítico do protagonismo judicial e que, merecidamente, conquistou projeção nacional. Falei assim: “Dierle, quero fazer um pós-doutorado com Lenio. Mas não o conheço. Só você para me ajudar nessa...” Não deu outra: ele, diligente e prestativo como é, resolveu a parada em minutos. Desligou o telefone, fez o contato e já me retornou com o e-mail do professor. Preparei a papelada, submeti meu pleito à apreciação da UNISINOS e ingressei no programa de pós-doutoramento, ali permanecendo por um ano, indo e vindo, praticamente todas as terças-feiras, de Uberaba (MG) para São Leopoldo (RS) e vice-versa. Afiliei-me ao Dasein e tornei-me pesquisador ao lado de toda a turma que lá conheci (Adriano Obach Lepper, Clarissa Tassarini, Daniel Ortiz Matos, Danilo Pereira Lima, Deiwid Amaral da Luz, Fabiano Muller, Francisco José Borges Motta, Guilherme Augusto de Vargas Soares, Julio César Maggio Stumer, Lanaira da Silva, Leonardo Zehuri Tovar, Luís Felipe Saccol, Nelson Camatta Moreira, Rafael Giorgio Dalla Barba, Roberta Magalhães Gubert, Roger Khalil Lovatto, Ricardo Herzl, Vinicius Almada Mozetic e Ziel Ferreira Lopes), passei a assistir às gravações do programa Direito & Literatura, estudei e escrevi muito. Lenio foi paciente, ajudou-me bastante, podou-me vícios de pensamento, emprestando-me seu prestígio (qualidade própria de grandes mestres) em artigos que elaboramos e publicamos conjuntamente. Certa feita, enviou-me para Barcelona, como representante do Dasein, a fim de defender publicamente um artigo no Encontro do Conselho Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Direito – CONPEDI. Enfim, ganhei outro professor e, sobretudo, um amigo!
Depois, veio a Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro, da qual sou um dos diretores (na companhia de Roberto Campos Gouveia Filho, Antonio Carlos Ferreira de Souza Júnior, Jaldemiro Rodrigues de Ataíde Júnior, Patrícia Henriques, Antonio de Moura Cavalcanti Neto, Glauco Gumerato Ramos, Mateus Costa Pereira, Antônio Carvalho e Georges Abboud), idealizada e presidida pelo querido Eduardo José da Fonseca Costa, jurista de formação multidisciplinar e atualmente quem melhor representa o garantismo processual em terrae brasilis. A entidade, apadrinhada pelos destacados processualistas Araken de Assis e Nelson Nery Junior (e que, além deles, tem como membros-honorários Donaldo Armelin, Lenio Luiz Streck, Rosemiro Pereira Leal, Adolfo Eduardo Alvarado Velloso, Marcelo Neves, João Maurício Adeodato, Torquato de Castro Júnior, Paulo de Barros Carvalho, Ronaldo Brêtas, Jacinto Nelson de Miranda Coutinho, Edson Ribas Malachini, Alcides Tomasetti Júnior, José Maria Rosa Tesheiner, Francisco Carlos Rezek, Juan Monteiro Aroca, Rosa Maria Barreto Borriello de Andrade Nery e Jorge Miranda), nasceu com objetivos bem delineados: i) combater o hiperpublicismo processual, que tem alçado o juiz a um excessivo protagonismo; e ii) renovar a metodologia dogmático-processual a partir das recentes conquistas filosóficas, em especial nas áreas da lógica, epistemologia, hermenêutica e linguagem. A ABDPro pretende servir de lente ampliadora dessas ideias por enxergar nelas o bálsamo capaz de combater (ou ao menos ajudar a combater) o ambiente de hipertrofia judicial e anemia filosófica que só faz difundir-se dia a dia entre os estudiosos do direito processual no Brasil.
Não poderia deixar de fora a Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro. Ressurgida em 2007, coordenada por Fernando Rossi e por mim (e hoje somos auxiliados pela competente advogada Luciana Araújo Miziara), foi concebida décadas antes pelos integrantes da sempre lembrada Escola Processual do Triângulo Mineiro. Inerte praticamente há dezesseis anos, seu prestígio permanecia incólume em função da credibilidade daqueles que estavam à frente dela, os já citados Edson Prata e Ronaldo Cunha Campos. Mediante uma parceria exitosa com a Editora Fórum (Belo Horizonte), a RBDPro ressurgiu com aspecto renovado e atual, e tem servido de veículo apto a fomentar o debate científico, assegurar a divulgação de ideias e corroborar o desenvolvimento da ciência processual. A correlação entre ela e o garantismo processual é manifesta, tanto que em sua capa estão estampadas, por ser o periódico oficial de publicação dos seus associados, as bandeiras do Instituto Panamericano de Derecho Procesal – IPDP e da Associação Brasileira de Direito Processual – ABDPro.
Uma observação importante: com essa narrativa não foi meu intento rotular todos esses professores indicados acima de garantistas processuais, como cachorrinhos aos quais se amarrou uma caçarola ao rabo, mesmo porque boa parte deles é muito mais que isso, de forma que os designar assim seria desmerecer sua trajetória acadêmica e todo o espectro de suas pesquisas. Eu sim, confessadamente, amarrei a caçarola no traseiro. Contudo, o relevante é que inegavelmente todos os nomes negritados têm (ou tiveram) sua carreira marcada por preocupações que garantistas de todo o mundo alimentam amiúde, relacionadas com a revalorização do processo como instituição abalizada pela tutela à liberdade, e sobremodo manietadas ao combate do protagonismo judicial.
Contudo, o leitor decerto já se pergunta em que tudo isso está relacionado a este posfácio. Está e não está. A verdade é que não podia deixar escapar a oportunidade. Explico. Como eu mesmo, Ricardo Herzl sofreu espécie de metamorfose ao longo de seu caminhar acadêmico. E ele o revela abertamente nesse livro, numa mescla de lealdade e humildade intelectual que a mim tocou profundamente. Estas, suas palavras:
“O neoprocessualismo (e suas derivações instrumentalistas) tem sido aclamado por boa parte (não necessariamente a parte boa) da doutrina brasileira como sinônimo de modernidade e prosperidade técnica – a exemplo de autores nacionais como Cambi, Didier e Bedaque –, como decorrência dos influxos do neoconstitucionalismo sobre o Direito Processual Civil. Fruto da crescente constitucionalização do Direito, o neoprocessualismo se caracteriza pela utilização dos princípios como meio de concretização de valores constitucionais por intermédio do arcabouço processual e no desenvolvimento de institutos processuais aptos a assegurar maior efetividade às decisões judiciais. Foi nesse sentido que, quando da elaboração da nossa dissertação de mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina (2011-2012), fomos seduzidos pelo canto das sereias e, assim, procuramos demonstrar (ingenuamente) que o neoprocessualismo representaria a quarta fase da evolução do Direito Processual Civil Brasileiro, após o sincretismo, o cientificismo e o instrumentalismo. Naquela oportunidade sustentamos, sob o viés estritamente dogmático e caudatário do senso comum teórico, consistir o neoprocessualismo na mudança paradigmática do Direito Processual Civil a partir das influências teóricas do neoconstitucionalismo: a centralidade dos direitos fundamentais no sistema jurídico, a reaproximação entre o Direito e a Ética, e a construção de uma nova dogmática de interpretação constitucional. Em janeiro de 2013, encaminhamos para a publicação a obra intitulada Neoprocessualismo, Processo e Constituição: tendências do Direito Processual Civil à luz do Neoconstitucionalismo, que veio a compor o volume 6 da coleção Ensaios de Direito Processual Civil, em parceria com o Centro de Estudos Jurídicos (CEJUR) do Tribunal de Justiça de Santa Catarina, com o especial apoio do Prof. Eduardo de Avelar Lamy, a quem seremos sempre gratos pela amizade e confiança depositadas. Ocorre que estávamos equivocados. Por nossa sorte (se é que ela existe...), no início do mesmo ano de publicação da nossa primeira obra nos deparamos com a possibilidade de realizar o processo seletivo para o ingresso no Doutorado em Direito da Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Foi diante desse contexto que tivemos os primeiros contatos com as ideias do Prof. Dr. Lenio Luiz Streck, mormente por ter sido exigido, no referido processo seletivo, a leitura da obra O que é isto – decido conforme minha consciência? As primeiras aulas vieram com o Professor Lenio em maio de 2013: o problema do positivismo, a superação do esquema sujeito-objeto, o solipsismo judicial e o panprincipiologismo. Enquanto novos conceitos hermenêuticos ampliavam o tamanho da nossa gaiola e a visão crítica afiava as nossas unhas, observávamos o castelo formado por vários dogmas (como a panaceia do “princípio” da proporcionalidade) ruir diante dos nossos olhos atônitos. Saboreamos emoções das mais diversas: da sensação de ingenuidade teórica (ou insuficiência filosófica) à angústia pela obtenção da (metáfora da) resposta correta. Foi no rico e profícuo convívio com o Prof. Lenio Streck – que, aliás, foi extremamente generoso conosco, pois nos abraçou sob a sua tutoria, ainda que previamente ciente da nossa equivocada publicação –, que decidimos aproveitar a pesquisa desempenhada no Mestrado para colocar em xeque as premissas do neoprocessualismo (e outras vulgatas instrumentalistas) a partir da Crítica Hermenêutica do Direito. E a razão da desconstrução para reconstrução nos aparentou bastante evidente: percebemos que a partir de uma postura um pouco mais filosófica – onde os porquês se constituem em importante referencial e exercem papel refundante – poderíamos sair do conforto (aparente) que nos proporcionava o senso comum teórico, aliada com a enorme vantagem de poder interagir diretamente com o pensador de uma das mais importantes escolas críticas do Direito da América Latina na atualidade”.
Aproveito, pois, solenemente a mão que me foi estendida pelo posfaciado para admitir que também sofri de semelhante processo de ablução. Demorei um pouco mais, talvez em função de minhas próprias limitações, mas cheguei lá. A exemplo dos cultos de origem africana (ebós ou banhos sagrados), purifiquei-me de parcela significativa dos enganos que sustentava como dogmas oriundos da doutrinação de cariz ativista que grassa e é difundida em graduações e pós-graduações Brasil afora. Sigo hoje revendo muito daquilo que pensava (e que escrevi), esforçando-me a estudar mais e mais Teoria Geral do Direito, Hermenêutica Jurídica e Direito Constitucional, disciplinas essenciais para o avanço rumo à des-vivicação da própria experiência de mundo na qual todos se encontram mergulhados e que é responsável por uma espécie de cegueira epistemológica enclausuradora dos horizontes do estudioso.
É preciso reconhecer que por aqui o paroquialismo doutrinário tornou soberano o ensino do direito processual encimado em pilares publicistas (ou hiperpublicistas), cujas construções teórico-conceituais privilegiam exatamente uma compreensão na qual a jurisdição prima pela superioridade, de forma que o bacharel surge já pré-moldado por verdades que reputa insuperáveis.[5] É o fenômeno da diluição do processual pelo jurisdicional, tão bem explicitado por Eduardo José da Fonseca Costa:[6] uma promiscuidade proveniente de pré-juízos que se enraizaram na tradição jurídica pela labuta impactante e serial da dogmática durante longo trajeto histórico, fazendo com que a grande maioria de nós anteveja o processo por uma via de pensamento profundamente aferrada à perspectiva da atividade jurisdicional e de seus (denominados) escopos sociais, políticos e jurídicos. Afinal, não é exagero algum afirmar que ecoa de ponta a ponta no País o mantra: processo é de somenos importância, ancilar e subserviente, mero instrumento da jurisdição. Em resumo: o ser constitucional do processo, sua institucionalidade garantística, sua função de resistência esfumaçou-se pela influência impactante de doutrinas ativistas decorrentes de uma processualística orgulhosa e alheia ao englobamento constitucionalístico, apegadas a uma perspectiva meramente utensiliar, como se o processo representasse a própria jurisdição-funcionalmente-manifestada.[7]
O bom-senso me acode: se de um lado a Constituição de 1988 aposta em uma jurisdição que se assume com extremada complexidade, não restrita a ordenar e resolver conflitos que pululam na sociedade, mas operando outrossim em prol da concretização do próprio projeto constitucional (coopera em prol de uma reengenharia social),[8] de outro também supervaloriza o devido processo legal, matriz fundante do processo em particular, e da ciência processual de maneira geral, vedando ao intérprete que soterre seu papel característico de garantir a preservação da liberdade do cidadão frente do Estado-juiz, cujo núcleo característico se pode aferir com facilidade por uma revisitação histórica em busca de suas origens liberais. Não por outra razão o constituinte anunciou, de forma clara e translúcida, entre os direitos e garantias individuais e coletivas, que ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal (CF/88, art. 5o., LIV). Ou seja, a valorização constitucional da atividade jurisdicional, com sua ingerência em uma diversidade de assuntos haja vista a própria analiticidade constitucional e o fenômeno da judicialização da política,[9] implica e justifica, ainda com mais vigor, rigorosas cautelas em seu controle a fim de impedir e debelar abusos e desvios.[10] Uma jurisdição mais intervencionista traz consigo o risco de discricionariedades, ativismos e decisionismos judiciais, que só fazem sedimentar intepretações afrontosas a princípios constitucionais fundantes, entre os quais a própria (e tão desgastada) separação de poderes.[11] Se é inegável o fato de que a Constituição de 1988 confiou especial prestígio à jurisdição no Estado Democrático de Direito, é igualmente notório o destaque não menos relevante que também atribuiu ao processo devido.[12]
Pois bem. Concluído esse ato de confissão pública e de aclaração de meu lugar de fala, quero abusar um pouco mais deste espaço para dialogar com Ricardo Herzl sobre um dos temas que, com maestria, enfrentou nesse livro. E para tanto, inicio com a irrefutável (e desoladora) constatação feita por Lenio Streck: o Direito quotidianamente está perdendo seu império, esfacelando-se e sendo depredado para atender anseios particulares de alguns de seus intérpretes, tornou-se resultado de um filtro moral quando ao revés deveria ele próprio servir de filtro à subjetividade de juízes e promotores de justiça.[13]
A impressão é a de que nosso paradigma de Estado está esquecido. Mal entrou em sua idade adulta e já foi colocado de escanteio! Ou então, o que é ainda pior, tem sido retoricamente ignorado, tanto que alguns nem coram o rosto ao taxarem de mutação constitucional decisões judiciais que, com patente desfaçatez, enjeitam limites semânticos de direitos fundamentais lançados no texto constitucional.
Ao criar ou revogar leis (ou revogar enunciados judiciais vinculativos), o Legislativo não possui o respaldo de uma discricionariedade plena. Afinal de contas, os argumentos de política ali debatidos (é o Parlamento a sede para esse tipo de debate), conquanto habituais e indispensáveis, são manejados para justificar metas coletivas previamente eleitas pelo constituinte, de maneira que, no limite, a atuação parlamentar também se dobra inexoravelmente à Constituição. De outra banda, sob a égide do Estado Constitucional (ou Estado Democrático de Direito), cumpre ao intérprete (em especial à autoridade judicial) desempenhar função crítica, perspectiva que o convida à dúvida, estimula seu espírito e alimenta a incerteza permanente sobre a validade das leis e de sua aplicação.[14] Mas tampouco há – e é este o ponto! – permissivo constitucional legitimando juízes e tribunais a judicarem fora dos limites da racionalidade legal, em desdém à própria Constituição, para além das (restritas) possibilidades às quais se apresenta viável a postura de desconsiderar a lei,[15] cumprindo ou não ditames legais a depender dos ventos que empurram sua própria vontade, como se pudessem desempenhar seu mister com desinteresse à responsabilidade política que distingue sua função, desapegados do dever de reverência à autoridade do Direito.
A supremacia normativa – em suas perspectivas formal e material – confiada atualmente à Constituição Federal é o maior ganho que se obteve com a inauguração do paradigma Estado Democrático de Direito.[16] Tal importe, todavia, não deveria exprimir diminuição, ou desgaste, do princípio da legalidade. Segundo um enfoque atinente à jurisdição, a legitimidade democrática das decisões judiciais assenta-se em sua forçosa sujeição aos parâmetros legais pré-constituídos emanados da vontade do povo, porque discutidos, votados e aprovados por seus legítimos representantes no Congresso Nacional.[17] Nenhuma decisão pública é (ou deveria ser) exigível caso seu fundamento não decorra do anseio popular, a partir do qual todo poder estatal é derivado e exercido, seja diretamente, seja por intermédio de representantes eleitos conforme padrões democráticos (CRFB, art. 1.o, parágrafo único). Ou seja, o princípio da legalidade permanece sendo um dos pilares do Estado Democrático de Direito – como o próprio texto constitucional, aliás, faz questão de ressaltar com ofuscante lucidez (CFRB, arts. 5.o, II, e 37, caput) –, muito embora tenha sofrido variação de sentido, razão pela qual se fala atualmente em legalidade constitucionalizada: a lei não é mais aceita per se, como algo cuja supremacia esteja nela própria, isoladamente considerada, porquanto apenas se legitima, é validada, se conforme a Constituição, isto é, caso esteja ajustada às cargas axiológica e deontológica das normas constitucionais.[18]
E se a legalidade (=legalidade constitucionalizada) permanece sendo uma das colunas mestras no Estado Constitucional, não pode haver dúvidas de que, frente à sua previsão constitucional (uma cláusula pétrea, pois positivada entre os direitos e deveres individuais e coletivos; art. 60, §4.o, IV), o constituinte assegurou a inadequação, no atual regime republicano, de um “governo dos homens”, aquele cujas decisões cedem ao sabor dos caprichos da autoridade. Como é nada menos que evidente, hoje se vivencia um “governo das leis”, fruto da vontade geral (CRFB/88, art. 1.o, parágrafo único), avesso a arbitrariedades praticadas pelo Estado ou por aqueles que o representam.
Entretanto, o que se constata hodiernamente é uma absoluta falta de cuidado com a legalidade. Por exemplo, doutrina e tribunais brasileiros de maneira geral encaram os princípios como dotados de uma aplicação gradual equivalente aos valores, daí se admitindo o uso da proporcionalidade como maneira de responder a casos concretos aos quais supostamente soluções não foram antevistas pelo sistema normativo. O que se fez no Brasil, no entanto, foi uma leitura desalinhada da obra de Robert Alexy, uma vez que, se concorde ou não com a tese do jurista alemão, é impossível negar a preocupação dele com a racionalidade dos juízos de ponderação pela via da argumentação jurídica. Em prestigiosa pesquisa, na qual foram examinadas 189 decisões do Supremo Tribunal Federal, Fausto Santos de Morais chegou a uma conclusão avassaladora: ainda que os ministros façam menção expressa acerca da proporcionalidade, sua aplicação não guarda relação com o “sistema Alexy”, resultando em nada mais que uma vulgata de sua proposta.[19] O que se tem por aqui, portanto, é a aplicação de uma proporcionalidade sui generis, descolada da preocupação com a racionalidade argumentativa alimentada por Alexy, que funciona quer como argumento de autoridade para institucionalizar uma violência retórica, quer como álibi teórico que só faz potencializar o subjetivismo judicial.[20]
Somos muito inventivos. Ao longo de décadas e décadas, foi colocada em prática a arquitetura de uma espécie de válvula de tolerância de grosso calibre que transpassa o âmbito jurídico, ligando-o a outros domínios, manobrada pelo intérprete quando desejoso de acrescer à decisão judicial toda uma série de elementos exógenos (moral, economia, política) hábeis para macular o edifício legislativo e fazer valer aquilo que, segundo seu particular subjetivismo, se apresenta como justo para a solução do caso concreto.[21] Não há como ignorar um contraponto com o chamado Realismo Jurídico Americano, Escola Hermenêutica que eclodiu na primeira metade do século XX, cujos defensores afirmavam que o importante para o surgimento dos provimentos judiciais eram fatores psicológicos, muitas vezes irracionais, que levariam o juiz, primeiramente, a atingir o resultado de seu julgamento para só então, e num segundo plano, procurar as premissas convenientes que o justificassem.[22] As decisões se orientariam por razões emocionais; o Direito se desprenderia da normatividade para ser encarado como uma aposta ou suposição sobre o que decidirão os juízes e tribunais.[23] Mais relevante que estudar as legislações, meras fontes de presunção para vaticínios prováveis, era analisar o comportamento e a personalidade dos magistrados, sobretudo os fatores que os moldaram (sua educação geral e jurídica, seus vínculos familiares e pessoais, a posição econômica e social deles, sua experiência política e jurídica, a filiação e a opinião política que nutriam, seus traços intelectuais e temperamentais).[24] Acima de tudo, se valorizaria a ideologia que cada julgador traz em si, produto de sua própria história, de sua humanidade e suas idiossincrasias, de seus entretons psicológicos. O importante era o resultado decisional pronunciado pelos juízes, não necessariamente resultante dos textos legais, pouco significando que com isso se afrontassem a certeza e a segurança jurídicas, desideratos considerados míopes e que deveriam ceder espaço ante a evolução do Direito.[25]
Nas palavras de Luiz Alberto Warat:
“No realismo, a figura do Deus legislador é transladada para a instituição onde o juiz cumpre o papel de um criador divino. Ali o juiz é divinizado como o legislador no formalismo. (...) Negando que as normas jurídicas possibilitem uma previsão infinita das consequências jurídicas, os realistas chegam a produzir um exagerado ceticismo frente a ditas normas gerais. Negam-lhe todo valor. Afirmam alguns, inclusive, que as normas gerais são um conjunto de enunciados metafísicos que cumprem somente a função retórica de justificar as decisões dos juízes. (...) Para o realismo a atividade do juiz é basicamente um ato de vontade, devendo-se considerar como fontes dessa vontade todos os motivos que influem em seu ato de decisão. O realismo chega, inclusive, a afirmar em suas vertentes extremas, que a lei é só um álibi que permite encobrir, tecnicamente, os juízos subjetivos de valor do juiz. Dito de outra forma, a lei outorgaria uma estrutura racional aos componentes irracionais que determinam a decisão do juiz. Levada a suas últimas consequências, esta postura afirma que uma dor qualquer, a opinião da sogra do juiz, sua situação social, o clima do tribunal, os meios de comunicação são, em muitas hipóteses, as causas reais dos processos de elaboração das decisões, normativamente disfarçadas. Não interessaria, portanto, saber o que as normas dizem, senão o que os juízes dizem que as normas afirmam”.[26]
Não é nenhum exagero declarar que o tão aclamado neoconstitucionalismo nos conduziu a uma prática judiciária bastante assemelhada em boa medida à doutrina encampada pelos realistas jurídicos americanos, que atenta contra a legalidade, fomenta decisionismos, que concentra o ideal de justiça no subjetivismo do julgador e não em leis democraticamente elaboradas pelos representantes do povo. Contudo, a pergunta cuja resposta não foi dada é: se a lei já não merece confiança por representar tão somente a vitória circunstancial de interesses de grupos, o que afinal nos induz a confiar na atuação de juízes guiados por seus próprios critérios de justiça?[27]
O quotidiano do foro é rico em exemplos demonstrando a adoção desse pensamento libertário, caracterizado pelo desapego a compromissos com a legalidade. Confira-se, por exemplo, a amostragem trazida por Lenio Streck de decisões judiciais ativistas-behavioristas produzidas no ano de 2016: i) decisões que determinaram o bloqueio do WhatsApp; ii) decisão do juiz Sergio Moro, em 16 de março, de divulgar interceptação telefônica de conversa entre a então presidente da República e um ex-presidente – o STF excluiu tais provas, comprovando a tese da ilicitude; iii) decisão do STF fragilizando a presunção da inocência contra expresso texto de lei e da Constituição; iv) "medida excepcional" autorizando buscas e apreensões coletivas pela polícia em favela no Rio de Janeiro contra expresso texto legal e constitucional; v) mesmo após a vigência do CPC-2015, o STJ — guardião da legalidade — continua entendendo que nada mudou acerca do dever de fundamentação, como se o artigo 489, parágrafo 1.º, com todos seus incisos, fosse “letra morta” – segundo o decidido nos embargos de declaração no MS 21.315-DF, “o julgador não está obrigado a responder a todas as questões suscitadas pelas partes, quando já tenha encontrado motivo suficiente para proferir a decisão”; vi) decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo anulando o julgamento dos 73 policiais condenados pelo massacre do Carandiru – o relator, segundo seu voto, julgou baseado exclusivamente em sua consciência; vii) decisão do juiz Sergio Moro que autorizou a condução coercitiva do ex-presidente Lula; viii) decisão do ministro Luís Roberto Barroso, em Habeas Corpus, que afirmou, com base na ponderação alexiana, não ser crime a interrupção da gestação até o terceiro mês; ix) decisão do Tribunal Regional Federal (4.a região) entendendo que a Operação "lava jato" não necessita respeitar as regras de casos comuns por representar situação excepcional; x) decisão liminar do ministro Luiz Fux, nos autos do Mandado de Segurança 34.530, determinando "o retorno do Projeto de Lei da Câmara n. 80/2016, em tramitação no Senado Federal, à Casa de Origem", sob fundamentos que intervêm perigosamente no processo legislativo; xi) decisão liminar do ministro Marco Aurélio determinando o afastamento do senador Renan Calheiros da Presidência do Senado, descumprida pelo Senado até decisão do Plenário do STF, que voltou atrás para manter Renan na Presidência, mas fora da linha sucessória.[28]
Enfim, é perceptível na realidade forense uma prática judiciária que corrói dia a dia a legalidade, oriunda de (i) um ativismo judicial muitas vezes desregrado que politiza e corrói o Judiciário; (ii) proferida em atentado às legislações processual e ou material sem que haja justificativas para tanto, a não ser a vontade do juiz; (iii) decorrente daquilo que os próprios magistrados entendem como justiça, com alicerce em critérios de conveniência, cujas premissas jurídicas são buscadas só depois que a solução é intuída; (iv) fundada em princípios constitucionais que desconsideram regras infraconstitucionais hábeis para a solução fácil das questões postas em juízo, ausente qualquer motivação analítica que demonstre aos jurisdicionados a incompatibilidade entre a regra positivada e a Constituição (controle difuso de constitucionalidade); (v) sedimentada em pseudoprincípios, porque carentes de normatividade, dotados de papel retórico e retificativo, elaborados acriticamente pela dogmática (panprincipiologismo ou caos principiológico), adulteradores dos limites hermenêuticos dos enunciados normativos, inclusive aqueles de calibre constitucional.
Esse fenômeno provém de um inconsciente coletivo que aposta todas suas fichas na atuação do Judiciário, que valoriza paradoxalmente a discricionariedade judicial em desatenção a propósitos constitucionalmente previstos. Insiste-se em resgatar métodos do direito livre, cujos adeptos mais radicais se apegam a uma espécie de niilismo legislativo, desdenha-se o papel das leis para cercar-se de um ideário cujo astro maior é o julgador, aquele a quem cumpre julgar com excelência o caso concreto, se necessário até em desprezo ao próprio direito positivo. A consequência disso é que todo o sistema de justiça se torna autofágico e passa a nutrir-se de sua própria substância. Decisões proferidas sem apoio normativo, construídas sem compromisso com o devido processo legislativo, não só atentam contra o princípio da legalidade, como também, e por consequência, consomem alguns outros fundamentos do Estado Democrático de Direito, a exemplo da segurança jurídica. É o Estado Democrático de Direito canibalizando-se, corroendo e extinguindo, por ação própria, ideais que deveria concretizar. Quem perde com isso são sempre os brasileiros, a cada dia mais sufocados por uma atmosfera jurisprudencial esquizofrênica, com teses para todos os gostos, cuja característica manifesta é a imprevisibilidade.
Então, o que fazer para reverter o atual estado de coisas? O que se assiste, como se procurou demonstrar, é o desenrolar de uma atividade jurisdicional que avança para além do intervencionismo ou da preocupação em efetivar direitos fundamentais, assumindo não raramente perfil profundamente intrusivo. Burla-se o edifício legislativo e, em seu lugar, preferem-se critérios extrajurídicos (moral, economia, política) como maneira de estruturar as decisões judiciais, muitas vezes em afronta ao próprio papel contramajoritário que distingue (ou deveria distinguir) a jurisdição no Estado Democrático de Direito. E o processo, linha de frente para o controle desses descomedimentos, tem sua importância cada vez mais amortecida porque aceito e manejado em descompasso com seu ser constitucional.
Quer me parecer, e aqui faço uma ligadura com meu lugar de fala assumido alhures, que um bom começo é realmente encarar o processo como a instituição garantística que ele é. Em outras palavras, é preciso levar a sério o devido processo legal. Significa isso zelar pela imparcialidade judicial, afiançar às partes tratamento isonômico ao longo do desenrolar procedimental, fazer efetivo o contraditório como garantia de influência e não surpresa, concretizar a ampla defesa e, mais expressivo para o tema aqui desenvolvido, observar o direito substancial de fundamentação das decisões judiciais.
Sobre o ponto foi com precisão cirúrgica que Georges Abboud afirmou, em elucidativa entrevista, que a fundamentação é o direito fundamental do século XXI.[29] Nessa mesma linha, eu diria que se trata da vacina da qual precisamos urgentemente para exorcizar entendimentos segundo os quais as decisões podem ser motivadas pelo livre convencimento do julgador! Pois prestação jurisdicional que se preze, legitimada a partir de influxos republicanos e democráticos, é aquela justificada intersubjetivamente, em atenção ao liame histórico que sedimenta e confere racionalidade ao plano jurídico. É julgar o novo caso a partir dos mesmos preceitos já aplicados em circunstâncias anteriores, cujos contornos se apresentem semelhantes, construir argumentos de forma inteirada ao conjunto do Direito. Nada mais que assegurar a igualdade de tratamento, afastar possibilidades de trabalhar com “graus zero de sentidos”, prezar por uma cadeia coesa de discursos e, não menos relevante, atentar-se criteriosamente à Constituição.[30]
No entanto, nada são flores nos maltratados jardins da justiça brasileira. Embora o CPC-2015 tenha acertado em reforçar o direito à fundamentação das decisões judiciais (art. 489, §1o.), trazendo ainda expressamente a positivação de respeito à coerência e à integridade (art. 926), tudo corre o risco de tornar-se letra morta. Palavras ao vento. Conquanto a mídia especializada tenha anunciado revoltas da magistratura em relação à “novidade” (o que já é de doer os ossos!), o pior mesmo é a irritante e prejudicial insurreição silenciosa: basta ler as decisões mais atuais para se constatar que nos tem sido dado apenas mais do mesmo. Nada mudou. Conclusão: a zona nobre do CPC-2015 está sendo canibalizada pelo modus operandi da jurisdição brasileira, infelizmente.
Sejamos otimistas, porém. E lutemos a boa luta. Afinal, de nada adianta cruzar os braços e fazer beicinho. Livros como este, cuja honra me foi concedida de dele participar de algum modo, são sinais de que há viva esperança. Tudo é demasiado lento, mas as possibilidades de mudança existem e seguem sendo construídas. Agradeço imensamente ao Ricardo a oportunidade que me concedeu de elaborar essas reflexões, parabenizando-o por seu novo livro; bem assim felicito a Editora Fórum pelo engajamento em publicações de tão alta qualidade.
Em Orlando (EUA), 22 de janeiro de 2017, às 23h52min, encerrando um domingo chuvoso e com muita ventania, porém deveras agradável na companhia de filhos, esposa, sobrinhos, irmão, cunhada e mamãe.
[1] Conhecido estudioso da Escola Mineira do Triângulo Mineiro, Ronaldo Brêtas é um dos expoentes do processualismo democrático. Para conhecer suas ideias: CARVALHO DIAS, Ronaldo Brêtas de. Processo Constitucional e Estado Democrático de Direito. 3a. ed. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2015.
[2] Rosemiro Pereira Leal é o autor da teoria neoinstitucionalista do processo. Segundo defende, processo é instituição jurídica coinstitucionalizante de regência dos procedimentos legais que põem em movimento direitos processualmente criados e assegurados. Consultar: LEAL, Rosemiro Pereira. Teoria Geral do Processo. Primeiros Estudos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2016.
[3] Baracho talvez tenha sido o primeiro jurista brasileiro a analisar a relação entre Constituição e Processo. Para um aprofundamento em seu pensamento: BARACHO, José Alfredo de Oliveira. Direito Processual Constitucional. Aspectos Contemporâneos. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2006. p. 20).
[4] Para conhecer um pouco da história do evento: <www.cepaj.org.br>.
[5] Nas palavras de Gumerato Ramos (tradução livre): “[d]entro desse panorama de propor a organização dos Institutos Fundamentais seguindo a ordem jurisdição, ação e processo, o discurso da doutrina foi sempre uniforme e legitimador do Poder estatal como o grande dirigente e protagonista da cena processual, e por isso a jurisdição é trabalhada como o polo metodológico preponderante. A partir daí a doutrina passou a valorizar a importância dos Institutos Fundamentais, porém, sempre com o enaltecimento da jurisdição (=Poder) por sobre o processo (=Garantia) e a própria ação (=Liberdade). Como já assinalado, isso se verifica na forma como os livros de teoria geral do processo metodicamente organizam o assunto, de regra principiando pela exaltação/explicação sobre a jurisdição, sendo a ação e o processo tratados sempre após aquela.” (RAMOS, Glauco Gumerato. Proceso jurisdicional, Repúplica y los Institutos Fundamentales del derecho procesal. Revista Brasileira de Direito Processual – RBDPro, Belo Horizonte, ano 22, n. 88, p. 251-272, out./dez. 2014).
[6] FONSECA COSTA, Eduardo José da. O processo como instituição de garantia. Revista Consultor Jurídico. 16 de novembro de 2016. Disponível: <www.conjur.com.br>.
[7] FONSECA COSTA, Eduardo José da. O processo como instituição de garantia. Revista Consultor Jurídico. 16 de novembro de 2016. Disponível: <www.conjur.com.br>.
[8] Sobre o tema: STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão judicial. 3a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 113-118.
[9] Sobre a distinção entre ativismo judicial e judicialização da política: TASSARINI, Clarissa. Jurisdição e ativismo judicial: limites da atuação do Judiciário. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2013.
[10] Em interessante pesquisa, Ran Hirschl analisa a transferência de poder das instituições representativas para o Judiciário, fenômeno por ele designado de juristocracia. Uma tendência crescente, que se estende do Leste Europeu à América Latina e atinge sistemas de clara tradição institucional fundada na soberania parlamentar. É a crença na legitimidade de se garantirem direitos pela via judicial, mesmo que isso se dê em evidente contraposição ao poder político parlamentar. O que faz Hirschl é apresentar o outro lado da moeda mediante análise envolvendo a experiência concreta de quatros países que permearam pela “revolução constitucional” (Canadá, Nova Zelândia, Israel e África do Sul). Segundo seu ponto de vista, hoje praticamente tudo pode ser judicializado, de maneira que juízes não eleitos pelo povo, sem responsabilização política, dia a dia assumem-se no mundo como principal corpo decisório sobre questões importantes para a vida coletiva. E isso, sem dúvida, coloca em xeque a própria ideia de democracia. (HIRSCHL, Ran. Towards juristocracy: the origins and consequences of the new constitucionalismo. Cambridge, MA, Harvard University Press, 2007).
[11] STRECK, Lenio Luiz. Jurisdição constitucional e decisão judicial. 3a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013. p. 113-118.
[12] É suficiente, para uma tal constatação, verificar que o devido processo legal e os direitos fundamentais processuais que lhe conferem substância encontram-se elencados no rol de direitos e garantias fundamentais, trazido pelo art. 5o da Constituição de 1988. Em especial é preciso ler e reler, sempre e sempre, o que rezam os incisos LIV e LV do aludido dispositivo constitucional: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal” e “aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes”.
[13] STRECK, Lenio Luiz. Breve ranking de decisões que (mais) fragilizaram o Direito em 2016. Revista Consultor Jurídico. 29 de dezembro de 2016. Disponível: <www.conjur.com.br>.
[14] FERRAJOLI, Lugi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 2a. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006.
[15] Sobre as seis hipóteses em que o órgão judicial deve deixar de aplicar a lei votada no Parlamento – i) se for inconstitucional; ii) se for possível uma interpretação conforme a Constituição; iii) se for o caso de nulidade parcial sem redução de texto; iv) se for o caso de uma inconstitucionalidade parcial com redução de texto; v) se se estiver em face de resolução de antinomias; e vi) quando do confronte entre regra e princípios (com as ressalvas hermenêuticas no que se refere ao pamprincipiologismo –, conferir: STRECK, Lenio Luiz. Verdade e Consenso. Constituição, Hermenêutica e Teorias Discursivas. 4.a ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
[16] Confira-se a belíssima lição de Lenio Luiz Streck: “Passados os milênios e atravessados por novas manifestações rupturais em que o direito assume um papel de interdição e garantia – como em Hobbes e na Revolução Francesa –, chegamos a um novo corte histórico: o término da segunda guerra mundial. O direito havia fracassado. Duas guerras mundiais, massacres, genocídio. O direito não conseguira garantir a paz. E tampouco, minimamente, assegurara a dignidade humana. Consequentemente, algo precisava ser feito. O lema: Auschwitz nunca mais! Daí a exsurgência de uma espécie de nova pactuação: o direito não mais poderia estar a reboque da política, da moral e de vontades de maiorias eventuais e irracionais. Surge o novo constitucionalismo – ao qual, desde Verdade e Consenso, venho denominando de constitucionalismo contemporâneo. A principal novidade desse novo paradigma: a Constituição passa a ser norma. Consequentemente, ela vale. É dever-ser. Diferentemente do velho constitucionalismo, em que os textos constitucionais eram vistos como cartas de intenções, agora a Constituição mostra a sua força. Essa circunstância pode muito bem ser vista nas teses de Konrad Hesse (força normativa da Constituição), Ferrajoli (Constituição normativa) e Gomes Canotilho (Constituição dirigente). A Constituição como norma jurídica vinculante quer dizer: a partir de então, a democracia passa a ser feita no direito e pelo direito. Daí a importância das cláusulas pétreas e dos mecanismos dificultadores de emendas constitucionais. Mais ainda, o constitucionalismo contemporâneo passou a trazer em seus textos o conteúdo das promessas da modernidade incumpridas, representados pelos direitos fundamentais-sociais, naquilo que se pode denominar de “ideal de vida boa”. Ou seja, direito e moral passaram a ser cooriginários. E a autonomia desse novo direito passou a tomar um novo rumo.” (STRECK, Lenio Luiz. In: ARRUDA ALVIM, Eduardo; KRUGER THAMAY, Rennan Faria; GRANADO, Daniel Willian. Processo constitucional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014. p. 11-14).
[17] CARVALHO DIAS, Ronaldo Brêtas. Responsabilidade do Estado pela função jurisdicional. Belo Horizonte: Editora Del Rey, 2004. p. 134.
[18] Conforme pontua Lenio Streck, “(...) a tradição continental, pelo menos até o segundo pós-guerra, não havia conhecido uma Constituição normativa, invasora da legalidade e fundadora do espaço público democrático. Isso tem consequências drásticas para a concepção do direito como um todo! Quero dizer: saltamos de um legalismo rasteiro, que reduzia o elemento central do direito ora a um conceito estrito de lei (como no caso dos códigos oitocentistas, base para o positivismo primitivo), ora a um conceito abstrato-universalizante de norma (que se encontra plasmado na ideia de direito presente no positivismo normativista), para uma concepção da legalidade que só se constitui sob o manto da constitucionalidade. Afinal – e me recordo aqui de Elias Dias –, não seríamos capazes, nesta quadra da história, de admitir uma legalidade inconstitucional. Isso deveria ser evidente” (STRECK, Lenio Luiz. Aplicar a “letra da lei” é uma atitude positivista? Revista NEJ – Eletrônica, 15, n.1, p. 158-153. Disponível em: <www.univali.br/periodicos>. Acessado em: 06/02/2013).
[19] MORAIS, Fausto Santos de. Ponderação e arbitrariedade: a inadequada recepção de Alexy pelo STF. Salvador: Editora Juspodivim, 2016.
[20] TRINDADE, André Karam. Robert Alexy e a vulgata da ponderação de princípios. Revista Consultor Jurídico. 16 de novembro de 2013. Disponível: <www.conjur.com.br>.
[21] STRECK, Lenio Luiz; DELFINO, Lúcio. Novo CPC e decisão por equidade: a canibalização do Direito. Revista Consultor Jurídico. 29/12/2015. Disponível: <www.conjur.com.br>.
[22] Oskar Bulow, por exemplo, cujas lições influenciaram na formatação do sistema processual brasileiro, ao que tudo indica tinha bastante simpatia pelo realismo jurídico, conforme fica claro pela leitura do seguinte trecho de uma de suas obras: “Então, quando acontece, várias vezes, das decisões dos juízes contrariarem o sentido e a vontade da lei, isso deve ser aceito tranquilamente, como um destino inevitável, como um tributo, o qual os legisladores e juízes prestam à fraqueza do poder de expressão e comunicação humanas. (...). Mesmo a decisão contrária à lei possui força de lei. Ela é, como qualquer decisão judicial, uma determinação jurídica originária do Estado, validada pelo Estado e por ele provida de força de lei. Com isso, não se quer dizer outra coisa do que o juiz ser autorizado pelo Estado a realizar determinações jurídicas, por eles criadas, escolhidas e desejadas” (BULOW, Oskar von. Gesetz un Richtertamt. In: Juritishe zeitgescichte. Kleine Reihe, Klassische Texte. Berl: Berliner Wissenschafts-Verlag Gmbh, 2003. v. 10. p. 37 apud LEAL, André Cordeiro. Instrumentalidade do processo em crise. Belo Horizonte: Editora Mandamentos, 2008).
[23] Leciona Recasens Sinches que os mais destacados representantes do movimento realista são: Underhill Moore, Herman Oliphant, Walter W. Cook, Karl N. Llewellyn, Charles E. Clark e Jerome Frank. Pontua, ademais, não haver entre os jurisconsultos que aderiram ao movimento unanimidade sobre o que se deva entender por realidade, a despeito de, genericamente, a maior parte buscar essa realidade na conduta efetiva dos juízes. (SINCHES, Luis Recasens. Nueva filosofía de la interpretacíon del derecho. México: Editorial Porrúa S.A., 1973. p. 95-96).
[24] HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito. 9a. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 67.
[25] HERKENHOFF, João Baptista. Como aplicar o direito. 9a. ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2004. p. 68.
[26] WARAT, Luiz Alberto. Introdução geral ao direito. Vol. I. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994. p. 57-58.
[27] ABELLÁN, Marina Gascón; FIGUEROA, Alfonso García. Interpretación y argumentación jurídica. San Salvador: Consejo Nacional de La Judicatura, 2003. p. 21.
[28] STRECK, Lenio Luiz. Breve ranking de decisões que (mais) fragilizaram o Direito em 2016. Revista Consultor Jurídico. 29 de dezembro de 2016. Disponível: <www.conjur.com.br>.
[29] JUNIOR, Nelson Nery; ABBOUD, Georges. Núcleo duro do novo CPC é inconstitucional, diz jurista. Entrevistadora: POMBO, Bárbara. Jota. 21 de dezembro de 2016. Disponível: <www.jota.com.br>.
[30] Sugere-se a leitura dos comentários aos artigos 489, §1.o e 926 presentes na obra: STRECK, Lenio Luiz; CARNEIRO DA CUNHA, Leonardo; NUNES, Dierle. Comentários ao Código de Processo Civil. São Paulo: Editora Saraiva, 2016. Consultar também:
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