Coluna ABDPRO
Um dos argumentos assaz empregados pela indústria do fumo[1] e mais validados pela jurisprudência funda-se na ideia do livre-arbítrio.[2] Nesse sentido, o ato de fumar resultaria de uma escolha voluntária e consciente, de maneira que os efeitos deletérios, porventura acarretados àquele que assim decidiu agir, jamais poderiam ser impingidos às fornecedores de cigarros, e sim, apenas e tão-somente, ao próprio tabagista. Ter-se-ia, a partir de tal linha de raciocínio, mero hábito e não propriamente um vício.
Daí um passo é suficiente para a aceitação da atrativa (porém falsa) conjectura que viralizou nos tribunais brasileiros: a indústria do tabaco estaria blindada contra pretensões indenizatórias, já que escorada na excludente de responsabilidade civil culpa exclusiva da vítima.
A análise a ser trilhada adiante seguirá duas perspectivas: i) num primeiro momento será apurado se o consumidor, decidindo por iniciar a prática do tabagismo, age livremente, sem qualquer interferência externa; e ii) depois, será examinado se, ao tabagista, bastaria a sua livre manifestação de vontade, uma mera opção, para se abdicar do tabagismo, considerando-se, outrossim, a existência, ou não, de algum estímulo externo atuando contra tal intenção.
1. A metodologia adotada
A insistência no exame de possíveis interferências externas na manifestação da vontade do consumidor, já fumante ou propenso a fumar, tem sua razão de ser. É que o livre-arbítrio apenas haverá de se configurar acaso influências exteriores, capazes de conduzir o consumidor a escolhas pré-determinadas, sejam isoladas das hipóteses analisadas. Percebidas tais ingerências, e dependendo do seu grau de atuação, a independência do consumidor restará comprometida, quiçá completamente, porquanto seria um contrassenso falar-se em livre-arbítrio sem liberdade de decisão.
Essa perspectiva metodológica encontra respaldo no próprio conceito da expressão examinada – aliás, demasiado controvertida, sendo que muitos chegam a negar sua existência. Livre-arbítrio denota “possibilidade de decidir, escolher em função da própria vontade, isenta de qualquer condicionamento, motivo ou causa determinante.”[3] É faculdade própria do homem que, pelo fato de possuir a razão, ou pela capacidade de ser racional, mostra-se capaz de escolher entre várias possibilidades.[4] É o poder de agir de determinada forma, ou deixar de agir, sem nenhuma razão para tal escolha a não ser o próprio alvedrio; é a escolha dirigida pela vontade, de sorte que o indivíduo age de certa maneira porque assim quer e sente-se responsável pelo ato praticado.[5] Para que o livre-arbítrio seja exercido – ou melhor, para que efetivamente se possa falar em livre-arbítrio –, não deve haver impedimentos externos ao movimento,[6] porquanto, nessa hipótese, a margem de atuação do alvedrio é eliminada ou, ao menos, reduzida.
A esfera do não-eu é percebida pela consciência, a partir dos órgãos dos sentidos; toda a realidade é concebida a partir da experiência. No seu cotidiano, o homem é bombardeado, direta e indiretamente, por excitações exteriores, muitas delas responsáveis pela moldura do seu próprio caráter. Por igual, parte considerável dos hábitos, vícios e prazeres, se originam desse contato com as determinações provenientes do exterior, sejam quais forem suas naturezas. Um sujeito, por exemplo, é mais ou menos extrovertido, não apenas em decorrência de suas características hereditárias, também influindo nisso o meio social em que vive ou viveu (família, grupos de amigos, cultura na qual está inserido, esporte que pratica, clima, etc.) e as próprias experiências pessoais vivenciadas.
Enfim, a vontade humana não apresenta cunho invariável ou inatingível, podendo ser conduzida e transformada por estímulos externos, advindos de uma realidade obtida pela experiência vivenciada no mundo sensível. Daí por que, sempre que se pretender alicerçar um ponto de vista com base no livre-arbítrio, será necessário exercitar o raciocínio, visando investigar possíveis inferências externas motivadoras de um agir específico. Presentes tais inferências, a liberdade de ação restará comprometida, já que o agente atuou, não por sua própria e exclusiva vontade, mas motivado, instigado por uma força exterior condicionante do seu agir.
2. Condicionamentos externos responsáveis pela decisão de iniciar a prática do tabagismo
As decisões de iniciar a prática do tabagismo, e a de mantê-la viva no cotidiano, advêm de um ou alguns estímulos externos, os quais, de algum modo, influenciam (ou influenciaram) a vontade do indivíduo, conduzindo a sua ação em direção ao consumo inicial e contínuo de tabaco. Era assim com mais impacto antes do CDC e das proibições legais implementadas contra as publicidades de cigarro, mas ainda hoje não se pode negar força a algumas excitações exteriores funcionando em prol da difusão de produtos do tabaco.
Se esse argumento é verdadeiro – e ele efetivamente o é – certamente cairá por terra a tese do livre-arbítrio do fumante. Afinal, não haveria sentido em se defender uma propensa liberdade de agir, quando a vontade do indivíduo foi maculada, já que pastoreada para um determinado comportamento por fatores outros que não a sua própria consciência.
São vários os fatores responsáveis por conduzir as pessoas a experimentar o cigarro. A curiosidade pelo produto, seu baixo custo, a imitação do comportamento dos adultos pelos jovens e a necessidade desses últimos de se auto-afirmarem são apenas algumas dessas determinantes externas. Contudo, essas determinantes seguiram sendo, por anos a fio, meros coadjuvantes, atuando em auxílio a uma força mestra poderosíssima e, às vezes, imperceptível, cunhada artificialmente em prol do estímulo ao tabagismo.
Mediante uma estratégia sofisticadíssima, pautada na omissão de informações acerca dos males do fumo, na negativa e ataque de esclarecimentos científicos apontando esses males, e em técnicas requintadas de marketing massivo, a indústria do fumo estabeleceu uma imagem positiva em torno do tabagismo, de modo que o consumo de cigarros acabou sendo aceito socialmente, visto, por muitos, como símbolo de status, riqueza, sucesso profissional, requinte e, até mesmo, saúde. Esse o principal fator externo a condicionar as pessoas, principalmente jovens, a experimentar o cigarro: a aura positiva, essa atmosfera de aceitação social de um produto potencialmente perigoso à saúde daqueles que o consomem direta e indiretamente, cuja edificação teve por matéria prima blocos de ganância e embustes, pavimentados com uma incrível falsidade, direcionada apenas a garantir o sucesso de vendas e a consequente obtenção de vultosos lucros.
Aliás, se é verídica a conhecida estatística a apontar que 90% dos fumantes habituais iniciam-se no tabagismo antes dos 19 anos,[7]isso se deve, obviamente, ao êxito da estratégia de vendas perpetrada pela indústria do fumo. De igual maneira, esse êxito fenomenal é confirmado pelo fato de existirem hoje, em todo o globo, quase 1 bilhão de fumantes, que consomem anualmente toneladas de nicotina, e geram para as fornecedoras lucros elevadíssimos.
E nem se queira impingir a essas afirmações a insígnia de vazias ou lacunosas. Afinal, depois que se deu publicidade aos famosos documentos secretos da indústria do fumo, o véu que encobria a estratégia por ela desenhada, isso para assegurar o sucesso de vendas de seus produtos, foi em parte erguido, permitindo-se uma visão peculiar e extensa das ideias e artimanhas que desenvolveu e colocou em prática durante muitas décadas. A divulgação dos tais documentos representou, a bem da verdade, um súbito e inesperado baque para as fabricantes de cigarros, em especial porque demonstraram que o discurso por elas elaborado e difundido, entre os anos 1950 e 1990, era cínico e fraudulento. Para ser direto, espelham evidências de que a indústria tabaqueira, muito embora conhecesse os fatos de que o cigarro provoca câncer e de que a nicotina é uma droga poderosíssima, utilizou-se, naquele tempo, de uma imagem pública com tonalidades bem distintas para promover a praga marrom.[8]
O ponto merece explicação mais ampla: em 12 de maio de 1994, Stanton A. Glantz, professor da Divisão de Cardiologia da Universidade da Califórnia, São Francisco, Estados Unidos, ativo militante contra o tabagismo, recebeu de um missivista, ocultado sob o pseudônimo Mr. Butts, aproximadamente 4 mil páginas de memorandos, relatórios, cartas, cópias de atas, que correspondem a um período de 30 anos de atividade da British American Tobacco e de sua subsidiária nos Estados Unidos, a Brown and Williamson Tobacco Corporation. Ulteriormente, Merry Williams, ex-técnico da Brown and Williamson, forneceu ao Prof. Glantz grande número de documentos referentes às atividades dessa companhia de cigarros. Os documentos foram repassados ao Sub-Comitê de Saúde e Ambiente do Congresso Norte-Americano. Além de sua publicação em periódicos científicos, foram divulgados numa série de artigos do New York Times. Após vários recursos das fabricantes de cigarros, alegando interferência na sua privacidade, a Corte Superior do Estado da Califórnia reconheceu sua legitimidade, decidindo que esses documentos deveriam ser do domínio público.[9] Anos depois, em 8 de maio de 1998, as companhias de tabaco propuseram um acordo com o Estado de Minnesota, numa ação instaurada pelo Promotor Geral do Estado de Minnesota, Estados Unidos, e pela Blue Cross Shield. Numa das cláusulas do acordo, constou a obrigatoriedade de a indústria tabaqueira confiar ao público acesso aos seus documentos internos (atas, memoriais, cartas, relatórios, planos de administração), e de toda a correspondência referente às suas atividades técnicas, científicas e comerciais. Em inúmeros desses documentos, constam pronunciamentos de técnicos, cientistas, consultantes, assessores e advogados.[10]
Toda essa documentação, conjuntamente considerada, refere-se a sete empresas fabricantes de cigarros e duas organizações a estas filiadas, em atividade nos Estados Unidos: Phillip Morris Incorporated, RJ Reynolds Tobacco Company, British American Tobacco, Brown and Williamson, Lorillard Tobacco Company, American Tobacco Company, Liggett Group, Tobacco Institute e o Center for Tobacco Research. Ao todo, são 5 milhões de documentos, com 40 milhões de páginas, que podem ser consultadas pela internet (<http://www.library.ucsf.edu/tobacco/>), encontrando-se, ainda, à disposição, no arquivo oficial de Minnesota e em Guilford Surrey nos arredores de Londres.[11]
Apenas para exemplificar, os documentos secretos demonstram que, já nos anos 60, a indústria do tabaco em geral – a Brown and Williamson e a British American Tobacco em particular – havia provado, em seus próprios laboratórios, que o alcatrão do cigarro causa câncer em animais.[12] Além disso, no início dessa década, os cientistas da British American Tobacco (e os advogados da Brown and Williamson) já trabalhavam com a ideia de que a nicotina motivava a dependência. A British American Tobacco respondeu, tentando criar secretamente um cigarro “seguro” que minimizaria os elementos perigosos existentes na sua fumaça. Entretanto, publicamente, essas empresas mantiveram a posição de que o cigarro não era prejudicial e muito menos viciante. A meta primária da indústria do tabaco era a de se manter como um grande nicho comercial, protegendo-se de processos judiciais e contra a regulação dos governos. Até hoje, apesar de irrefutáveis evidências científicas e relatórios governamentais oficiais, algumas fabricantes de cigarros insistem em sustentar que os produtos do tabaco não são viciantes e igualmente não causam doenças, colocando-se por detrás de uma “parede de negativas”, construída com o fim único de criar controvérsias e dúvidas acerca das evidências técnico-científicas dos malefícios do consumo de cigarros obtidas no curso dos anos.[13] Para se constatar essa realidade, basta a leitura de contestações apresentadas pelas fabricantes de cigarros em ações judiciais que sofrem no Brasil.[14]
Em sua aplaudida obra, Mario Cesar Carvalho faz referência ao conhecimento obtido pelo exame de tais documentos, agora se referindo exclusivamente à empresa tabaqueira Philip Morris e a seu cigarro Marlboro, o mais vendido do mundo:
Outros textos menos contundentes mostravam que a indústria fazia campanhas publicitárias para atingir adolescentes e manipulava o nível de nicotina no cigarro. Um memorando de 1965, do pesquisador Ron Tamol, da Philip Morris, produtora do cigarro mais vendido no mundo, o Marlboro, trazia a seguinte anotação: “Determinar o mínimo de nicotina para manter o fumante normal ‘viciado’”.[15]
Já José Rosemberg, numa análise focada unicamente à nicotina, sintetiza as revelações obtidas pelo exame dos entabulados documentos secretos: i) as pesquisas conduzidas pela indústria tabaqueira sobre a nicotina foram mais avançadas que as das comunidades médico-científicas; ii) de longa data, a indústria tabaqueira, clara e comprovadamente, detém conhecimentos de que a nicotina é droga, causadora de dependência físico-química, agindo de forma deletéria sobre os centros nervosos cerebrais; e iii) as pesquisas foram conduzidas com o objetivo de melhor esclarecer a neuro-farmacologia da nicotina, a sua natureza, suas formas de presença no tabaco, sua mais fácil liberação e maior ação sobre o cérebro, a elevação do seu teor no tabaco, e a intensificação da dependência.[16]
Como se vê, não há como ignorar o caráter pérfido da postura assumida pela indústria do tabaco, omitindo e negando conhecimentos que possuía sobre os malefícios do tabagismo. Pior que isso, apenas a sua estratégia marqueteira. Afinal, adotou manobras voltadas a difundir massivamente publicidades insidiosas, e a fazer apologia do cigarro. A frieza e o egoísmo dos responsáveis pelas decisões estratégicas de venda e publicidade também acabaram aflorando com o surgimento dos documentos secretos [...].
Muitos dados relevantes, atinentes a publicidade veiculada pelas fabricantes de cigarros, vieram a tona a partir da aludida documentação. Alguns deles estão delineados abaixo:
i) A indústria do fumo adotou estratagema destinado a desacreditar a ciência legítima, somando esforços para incitar controvérsias e dúvidas sobre estudos divulgados desde o início dos anos 1950, que vinculavam a prática do tabagismo aos prejuízos à saúde humana. E a publicidade massiva e insidiosa veiculada pela indústria do fumo sempre foi uma peça fundamental desse complexo quebra-cabeças voltado a construir uma atmosfera socialmente favorável ao tabagismo;
ii) Mesmo antes que as evidências científicas começassem a apontar a ligação entre consumo de cigarros e diversas doenças, as companhias de tabaco, nos EUA, já promoviam anúncios publicitários insinuando que algumas marcas eram ‘mais saudáveis’, ou ‘menos irritantes’, que outras;
iii) Estudiosos dos documentos secretos esclarecem que esses slogans, juntamente com o memorando escrito por Ernest Pepples, referindo-se à ‘corrida do alcatrão’,[17] indicam que a indústria do fumo começou a promover os cigarros de filtro e de baixos teores, durante os anos 1950, especialmente para acalmar a animosidade pública surgida em razão de estudos publicados vinculando o cigarro a várias doenças. Embora os anúncios da época sugerissem que os novos cigarros eram ‘mais saudáveis’, não havia nenhuma evidência real de que isso era realmente verdade. Quando as evidências finalmente começaram a aparecer (depois de vinte anos, em 1977), concluiu-se que a diminuição de teores e a utilização de filtros tinham apenas um efeito modesto na redução do risco enorme representado pelo consumo de cigarros.[18]
Com o passar dos anos, a publicidade ofertada pela indústria do tabaco foi se tornando mais e mais sofisticada e incisiva, fosse para garantir uma gorda fatia do competitivo mercado, fosse ainda para incitar controvérsias e dúvidas quanto aos estudos que vinham se assomando com maior frequência, evidenciando uma ligação direta do consumo de cigarros a varias enfermidades. Ressalte-se que especificamente no Brasil – e acredita-se, em todo o mundo – essa publicidade jamais teve cunho informativo e esclarecedor. Sempre foi promovida com o objetivo de criar uma necessidade artificial de consumo e manter uma ambientação constante do produto nocivo. A motivação do consumidor era buscada mediante a aproximação de modos de ser e viver ao produto anunciado. Assim, relacionavam-se os cigarros com atividades esportivas, sociabilidade, saúde, requinte, sucesso profissional, etc. Refletia-se a noção de que fumar era algo prazeroso, “hábito” de pessoas inteligentes, produtivas e livres. Tal estratégia publicitária, hoje proibida no Brasil, objetivava primordialmente a persuasão, já que tinha por matéria prima sons e imagens sedutores, voltados a incitar a prática do tabagismo, tática funcional, sobretudo quando endereçada a crianças e jovens,[19] pessoas ou normalmente imaturas, ou inseridas num contexto de mudanças psicológicas e hormonais próprias da adolescência.
Nessa linha, a precisa observação da festejada professora Cláudia Lima Marques, em parecer confeccionado em prol de um fumante:
[...] não somente as empresas [do tabaco] desinformaram voluntariamente seus milhares de consumidores, como enviaram mensagens que – para estes leigos – eram aceitáveis e acreditáveis. Em outras palavras, a informação publicitária (imagens, induções, sons, risos, frases, personagens, situações de esporte, lazer, prazer etc.) é recebida e processada por um leigo, o consumidor brasileiro, que nela acredita, de forma totalmente escusável![20]
Não se olvide, ademais, que a indústria do fumo, na divulgação de seus produtos, não se limitou a ofertar publicidades diretas. Valeu-se, outrossim, de técnicas publicitárias sutis e muito sedutoras. Para ilustrar, hoje se sabe que atores e diretores cinematográficos receberam pagamento das empresas do fumo para que imagens de cigarro fossem divulgadas nas telas de cinemas. A informação é de um estudo publicado numa das edições da revista “Tobacco Control”, vinculada à British Medical Association, baseado em 1.500 desses documentos secretos da indústria do tabaco. Como exemplo, cite-se a cena em que a personagem Betty Boop vende maços de cigarros no filme “Uma Cilada para Roger Rabbit”, de Robert Zemeckis; ou, ainda, a cena em que Sean Connery, na pele de James Bond, acende um cigarro com prazer em “007 – Nunca Mais Outra Vez”. O mesmo fizeram Paul Hogan em “Crocodilo Dundee”, Bruce Willis, no primeiro “Duro de Matar” e vários personagens de “Grease – Nos Tempos da Brilhantina” e “Wall Strett”. A lista inclui, nada menos, que 188 atores e diretores que receberam pagamento da indústria do fumo entre, pelo menos, 1978 e 1988. Só a Philip Morris teve a divulgação de seus produtos em 191 filmes no período. O acordo era interrompido se os cigarros não fossem mostrados de forma positiva. O plano previa, ainda, medidas menos explícitas e mais prosaicas, como o envio de pacotes de cigarro para a casa ou o set de filmagem de notórios atores fumantes como Jerry Lewis e Liv Ullmann e diretores como John Cassavetes, na esperança de que eles fumassem em cena ou aparecessem na imprensa com um cigarro. E é bom que se diga: não há provas de que a indústria do tabaco tenha abandonado o acordo feito com o governo americano no começo dos anos 90, segundo o qual se comprometeu a não mais pagar por merchandising de seus produtos em filmes e na TV.[21]
No esporte, a indústria de cigarros sempre encontrou uma forma eficaz de formar e consolidar sua imagem. Uma das mais famosas relações entre a publicidade tabagista e o esporte no Brasil aconteceu na década de 70. O tricampeão mundial, Gerson, imortalizou o slogan “Você também gosta de levar vantagem em tudo, certo?” e acabou gerando a famigerada “Lei de Gerson”.[22] A fabricante dos cigarros Vila Rica, da qual era garoto-propaganda, certamente alegrou-se com o sucesso.
Vejam-se mais exemplos da ligação entre cigarros e esporte:
i) Atletas ligados ao futebol também ajudaram a difundir o cigarro, mas apenas pelo uso. Uma listagem rápida contabiliza o holandês Cruyff, o inglês Gascoigne, o francês Platini, o dinamarquês Elkjaer-Larsen, o italiano Riva, os argentinos Ardiles e Passarella e o brasileiro Sócrates. Eles não só assumiam o vício, como se deixavam fotografar com cigarros entre os dedos;
ii) O maior símbolo de ligação esporte-tabaco, no entanto, está na Fórmula 1. Dezenas de pilotos já colocaram sua imagem a serviço das empresas, também patrocinadoras de suas equipes e eventos da modalidade. A Philip Morris, por exemplo, já patrocinou Emerson Fittipaldi,[23] Ayrton Senna, Raul Boesel e Rubens Barrichello, entre os brasileiros. Em outras categorias do automobilismo aparecem Gil de Ferran, Hélio Castro Neves, Tony Kanaan etc. Fittipaldi chegou até a fazer lobby no Congresso pela não proibição da publicidade tabagista [...].[24]
iii) Interessante, ainda, mencionar o atleta chinês Liu Xiang, que surpreendeu o mundo em Atenas ao triunfar nos 110 metros com barreiras e igualar o recorde mundial – 12s91. Com o ouro no peito, virou celebridade na China e sinônimo de sucesso. A indústria do tabaco não perdeu tempo: na contramão do movimento que tenta desvincular a imagem do tabaco da prática esportiva, o corredor assinou contrato para ser garoto-propaganda do grupo Baisha, a principal companhia de cigarros da China.[25]
De tudo isso se vê a presença irretorquível de estímulos externos, em sua grande maioria perpetrados pela própria indústria do fumo, engendrados com o intuito de motivar o consumo de cigarros, isso mediante a construção pensada de uma atmosfera socialmente favorável ao tabagismo, cuja influência atinge principalmente os mais jovens, pessoas ainda em formação física e mental, presas fáceis dessa estratégia assustadoramente comprovada em vários dos documentos secretos, especialmente aqueles a indicar serem eles, os jovens, que “representam o negócio de cigarros do amanhã”.[26]
É imprescindível aos que se debruçam sobre o tema, em especial os julgadores responsáveis por dirimir controvérsias entre fumantes e a indústria do fumo, o aprofundamento no estudo dos aspectos aqui delineados, hoje devidamente comprovados. Só assim poderão perceber a ilegitimidade da postura adotada pelas fabricantes de tabaco para garantir o sucesso de venda dos cigarros por elas produzidos. Essa análise permitirá ao estudioso a compreensão da estratégia, elaborada e colocada em prática pela indústria do fumo, para ambientalizar seus produtos nas sociedades de todo o mundo, garantindo o estímulo necessário a conduzir as pessoas a experimentá-los e deles se tornarem dependentes. Trata-se de prática ilícita, enquadrada perfeitamente na teoria do abuso do direito.[27]
3. A nicotina e o poder que exerce sobre a vontade do fumante
O raciocínio deve se alongar um pouco mais. Examine-se o juízo à mostra em algumas frases vazias, muito em voga nas decisões proferidas em favor da indústria do fumo. Transcrevam-se duas delas: “a cessação da atividade de fumar é um fato notório e que depende única e exclusivamente do usuário [...]”; e “sabe-se que a decisão de experimentar, como também a decisão de continuar fumando [...], é tão-somente do fumante [...]”.
Tais frases deixam transparecer que a manutenção do tabagismo decorreria, única e exclusivamente, de uma opção do próprio fumante, de maneira que teria ele condições de abdicar da prática, quando bem entendesse – a vontade seria a única alavanca a ser movida pelo tabagista, para garantir-lhe a renúncia certa ao consumo de tabaco. Data venia, essa visão apenas demonstra desconhecimento científico acerca do tema, pois segue na contramão dos muitos estudos já desenvolvidos, representando uma forma cômoda de solução dos litígios a envolver consumidores e indústria do tabaco.
Hodiernamente, a ciência encara o tabagismo como sendo uma doença-crônica. Aliás, a Organização Mundial de Saúde, desde 1992, cataloga o tabagismo na Classificação Internacional de Doenças – Capítulo F12.2, síndrome da tabaco-dependência. Na mesma senda, afirme-se que a Associação Americana de Psiquiatria vê a nicotino-dependência como uma desordem mental pelo uso de substância psicoativa.
A nicotino-dependência foi bem definida nas conclusões do relatório do Surgeon General, do Departamento de Saúde e Serviços Humanos dos Estados Unidos: i) a nicotina é droga que causa dependência, é psicoativa; é reforçadora da motivação de fumar; com a repetição do uso desenvolve-se tolerância, exigindo doses progressivamente maiores para desencadear o mesmo efeito; ii) a nicotina liga-se a receptores específicos do sistema nervoso; no cérebro, interage com todos os centros, alterando o metabolismo energético cerebral; as interações incluem ativação elétrica, relaxação muscular e efeitos sobre o sistema cardiovascular e endocrínico; iii) o processo famacológico determinador da dependência é similar aos desenvolvidos em outras drogas, como cocaína e heroína; iv) a supressão do uso da nicotina é acompanhada por sintomas desagradáveis, quase sempre insuportáveis, que desaparecem prontamente com nova dose de nicotina.[28]
De tal sorte, do mesmo modo que um hipertenso necessita adotar novos hábitos, sem abrir mão do auxílio de remédios, a maioria dos fumantes igualmente necessita de ajuda, não bastando apenas sua força de vontade para que abdique do vício. Numa frase: o tabagismo não só causa doenças como também é uma doença.
A médica americana Nancy Rigotti é categórica ao afirmar que, em sendo o tabagismo um problema crônico, o seu tratamento deve ser conduzido por toda a vida. Um fumante deve adotar e manter hábitos ainda mais saudáveis do que uma pessoa que jamais fumou e, se necessário, voltar a recorrer a algum tratamento químico e a programas psicológicos para aprender a lidar com a falta do cigarro. Segundo a médica, associar-se o abandono do vício exclusivamente à força de vontade, não é a forma correta de encarar a questão. Afinal, não bastasse ter a consciência de que o fumo está agredindo a sua saúde, o fumante ainda se sente incapaz de combatê-lo, circunstância que apenas o desestimula ainda mais. Por tal razão, os médicos que hoje atuam nessa área defendem que só a força de vontade é muito pouco. O grande desafio é eliminar o vício da nicotina, e isso se consegue através de remédios e terapias.[29]
Para José Rosemberg, a “nicotino-dependência, ou seja, a dependência tabágica é o melhor exemplo de doença crônica com remissões e recaídas periódicas”[30]. Segundo o estudioso, a “nicotina tem características neurobiológicas; é droga psico-estimulante. O processo farmacológico da nicotino-dependência é semelhante ao da cocaína e heroína. Estas drogas, como a nicotina e opiáceos em geral, liberam dopamina e aumentam a produção de norepinefrina. Aliás, as drogas psicoativas, como a nicotina especialmente, agem sobre os centros mesolímbicos, dopaminérgicos colinérgicos, nucleus acumbens, provocando o aumento e a liberação de dopamina e outros hormônios psicoativos, levando à dependência pelas propriedades euforizantes e ansiolíticas. Isso é facilmente demonstrável administrando essas drogas endovenosamene. Outros estimulantes podem agir da mesma forma e o mecanismo é fundamental para a criação da dependência”.[31]
Implantada a dependência, e faltando o aporte de nicotina nos centros nervosos, surge disforia e um quadro clínico de sintomas desagradáveis, denominado “síndrome de abstinência” – quadro esse caracterizado por um forte desejo de fumar, ansiedade, inquietação, irritabilidade, distúrbios do sono, dificuldade de concentração, além de outros sintomas. A intensidade da síndrome de abstinência varia com o grau da dependência.[32]
Sintetizando, a dependência ao tabaco é caracterizada como um transtorno de longa duração – uma verdadeira doença crônica –, com altas taxas reincidentes;[33] são constantes os cuidados exigidos. O tratamento inclui – isoladamente ou em combinação – intervenções comportamentais e farmacológicas,[34] como aconselhamento, suporte psicológico intensivo e administração de medicamentos que contribuam para a redução ou superação da dependência pelo tabaco.[35]
É a nicotina, pois, a grande vilã responsável pelo desencadeamento da dependência químico-física no organismo do tabagista.[36] Se tal substância não fizesse parte da composição do produto perigoso, o seu consumo seria considerado unicamente um hábito perigoso, podendo ser abandonado sem maiores dificuldades.[37] Se comparada com a cocaína, heroína, maconha, álcool, e outras drogas, devido a sua maior toxidez e letalidade, capacidade de desenvolver uma dependência mais intensa, por ser a mais difundida, e de fácil acesso aos adolescentes, a nicotina classifica-se em primeiro lugar[38]. Sem qualquer exagero, a nicotina torna o fumante um escravo do cigarro.[39]
Precisamente por tais razões é que o tratamento se mostra indispensável.[40] Para os tabagistas, é assaz difícil abandonar o tabaco, justamente devido à dependência implantada em seus organismos pelo consumo de nicotina.[41] Há inúmeros registros indicando que os desejosos em cessar a prática do tabagismo, valendo-se apenas desse desejo, quase sempre fracassam em suas empreitadas, as quais se repetem por várias e várias vezes, sem alcançar o sucesso esperado[42].
Portanto, é curiosa a afirmativa de que ao tabagista bastaria uma decisão sua para abandonar o cigarro. Se para o doente bastasse a sua vontade para se curar, o problema mundial envolvendo a saúde pública estaria resolvido. Não haveria mais enfermos no mundo, simplesmente porque ninguém, em boas condições mentais, pretende permanecer num estado de morbidade. Mais do que óbvia a constatação de que é insuficiente a mera intenção do doente para que se restabeleça. É indispensável fornecer-lhe tratamento adequado,[43] voltado a debelar, ou, ao menos, minimizar a sua enfermidade. E se o tabagismo realmente é uma doença – e a ciência o vem encarando como tal –, salta à vista que a grande maioria dos fumantes apenas terá condições de renunciar ao tabaco se submetida a tratamentos eficientes, capazes de aliviá-la de seu mal.
Daí porque é intuitiva a necessidade de os juízes considerarem, nos julgamentos de casos concretos envolvendo fumantes e indústria do tabaco, as doutrinas produzidas pela ciência especializada, notadamente aquelas que se referem à substância denominada nicotina, sendo muito pouco que se contentem com frases vazias, carentes de profundidade técnica, oriundas de uma visão sem qualquer sustentação técnica. Sendo direto: decisões judiciais que seguem rumo à improcedência de pedidos indenizatórios, formulados por fumantes contra a indústria do fumo, cujo fundamento central cinge-se à afirmativa de que “a vontade do fumante seria suficiente para que ele abdicasse do consumo de cigarros”, tão só evidenciam a pouca intimidade por parte do Poder Judiciário com o tema nicotina.[44]
Em conclusão, o argumento pautado no livre-arbítrio do fumante, como arma direcionada a excluir a responsabilidade civil da indústria do fumo, também cai por terra sob uma análise voltada exclusivamente à nicotina, substância psicotrópica responsável pela dependência do fumante. Essa dependência, implantada no organismo do fumante pelo mero consumo de tabaco, apresenta-se como uma fortíssima influência externa, a mantê-lo na condição de tabagista, já que macula a sua vontade, impedindo-o de abdicar do fumo espontaneamente, por meio apenas da sua vontade.
4. Considerações finais
Há aportes teóricos interessantíssimos que corroboraram imensamente para a fragilização da crença desenfreada na racionalidade moderna, em especial naquilo que diz respeito à tomada de decisões. Contrariamente ao que acreditavam cientistas sociais da década de 1970, as pesquisas mais atuais concluem que o ser humano, em muitas de suas decisões, age pautado em instintos e emoções, e não ancorado pela razão. É incorreta a crença segundo a qual o homem estaria sempre apto a avaliar de modo objetivo e racional toda a fortuna de questões que lhe é submetida, julgando e operando com clareza em seu caminhar pelo cotidiano da vida.[45] Ainda que confiantes de si, não raro decidimos e atuamos de forma desacertada, porquanto vítimas de tendenciosidades, preconceitos, propensões ou inclinações. Julgamos amiúde sob incertezas, já que afetados por heurísticas e vieses não facilmente identificáveis.[46]
São inquietantes, como se pode consultar no livro de Yuval Noah Harari, as descobertas contemporâneas surgidas especificamente acerca do livre-arbítrio, por meio das quais geneticistas e neurocientistas, ao responderem perguntas como “porque fulano fez uma determinada escolha”, elucidam que o agir sempre encontra respaldo em tais ou quais processos eletroquímicos no cérebro, configurados por uma formação genética específica, que é o reflexo de antigas pressões evolutivas aliadas a mutações causais. Processos eletroquímicos no cérebro ou são determinísticos, ou aleatórios; jamais uma combinação de ambos. Ou seja, quando um neurônio dispara uma carga elétrica, isso pode ser uma reação determinística a um estímulo externo, ou resultado de uma ocorrência randômica tal como a decomposição espontânea de um átomo radioativo, mas nenhuma dessas opções deixa espaço para o livre-arbítrio. O autor chega a colocar em xeque o conceito: até onde vai o melhor de nosso entendimento científico, determinismo e aleatoriedade dividem o bolo e não deixam uma só migalha para a sagrada palavra “liberdade”.[47]
É, portanto, no mínimo curioso – para não dizer assustador – o menoscabo e a frieza que seguem pautando o raciocínio (com raríssimas exceções) no que tange a temática do livre-arbítrio na construção da jurisprudência sobre litígios travados entre fumantes e indústria do tabaco. Em absoluto, nada disso, nenhum desses estudos e dados científicos têm sido levados a sério, e o conceito de livre-arbítrio é abraçado de maneira irrefletida por nossos julgadores, como espécie de dogma, quase religiosamente, blindado contra toda sorte de sólidos questionamentos.
Não que seja adequado a alternativa antagônica de negar completamente o livre-arbítrio. No entanto, não se pode recusar as evidências de que não somos assim tão livres como se imaginava, e sobretudo o fumante não é livre do modo algum, pois quando já é um viciado, a sua vontade não se mostrará suficientemente capaz, ao menos na maioria das vezes, de permitir que se liberte do fumo.
É fato que a indústria do tabaco assumiu uma estratégia sofisticadíssima de desinformação e marketing, atuante em diversos flancos, adequada a iludir e seduzir o consumidor a experimentar seus produtos. Também é fato que o próprio consumo de cigarros acaba por viciar o consumidor, tornando-o um doente crônico, um verdadeiro dependente de nicotina. São essas as verdades mostradas pelos documentos secretos e pela doutrina médico-científica.
Alberto Magno já dizia que “era livre o homem que é causa de si e que não é coagido pelo poder de outro”[48]. Frente ao cigarro, o homem não é causa de si, coagido que foi e é pelo influente poder econômico da indústria do tabaco, que além de seduzi-lo a experimentar um produto mortífero, acaba por transformá-lo num doente crônico, instalando em seu organismo uma dependência que o estorva, pelo simples exercício da sua vontade, de abdicar do tabagismo.[49]
Notas e Referências
[1] Artigo originariamente publicado em: Direito e Saúde – o caso do tabaco. Organizadores: Adalberto de Souza Pasqualotto, Eugênio Facchini Neto e Fernanda Nunes Barbosa. Belo Horizonte: Grupo Editorial Letramento e Casa do Direito, 2018.
[2] Para ilustrar, é de bom alvitre transcrever alguns trechos de decisões nesse sentido:
“Evidente que há culpa exclusiva do consumidor, que assumiu voluntariamente o risco de desenvolver doenças pulmonares e/ou outras moléstias a partir do hábito de fumar.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação cível n. 70000144626, Relatora Desembargadora Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira, Nona Câmara Cível, julgado em 29 de outubro de 2003. Disponível em <www.tjrs.gov.br>. Acessado em 31/07/2017).
“Quebra-se o nexo de causalidade, pois o dano não advém diretamente do produto, senão do vício incontrolável do de cujus, que preferiu o prazer a contê-lo e, quiçá, desenvolver hábitos mais saudáveis, os quais poderiam obstaculizar ou estancar o desenvolvimento de doenças.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação cível n. 70000144626, Relatora Desembargadora Ana Lúcia Carvalho Pinto Vieira, Nona Câmara Cível, julgado em 29 de outubro de 2003. Disponível em <www.tjrs.gov.br>. Acessado em 31/07/2017).
“A atividade de fumar é daquelas que tem início e continuidade mediante livre arbítrio do cidadão, não raro na adolescência, não se podendo reconhecer que a atividade de fumar tenha início e se dê tão somente por força de propaganda veiculada pela indústria fabricante de cigarros.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação civil n. 700091204290, Relator Desembargador Paulo Antônio Kretzmann, Quinta Turma Cível, julgado em 17 de dezembro de 2004. Disponível em <www.tjrs.gov.br>. Acessado em 31/07/2017).
“Também é certo afirmar que eventual vício contraído pelo usuário do fumo não é permanente e irreversível, já que a cessação da atividade de fumar é um fato notório e que depende única e exclusivamente do usuário, não estando jungida à vontade da empresa fabricante.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação civil n. 700091204290, Relator Desembargador Paulo Antônio Kretzmann, Quinta Turma Cível, julgado em 17 de dezembro de 2004. Disponível em . Acessado em 31/07/2017).
“Sabe-se que a decisão de usar cigarros, de experimentar, como também a decisão de continuar fumando, muitas vezes por anos e anos, é tão somente do fumante, que em lugar de pensar nos malefícios que o cigarro traz, somente pensa em seus “benefícios”, jamais abrindo mão do prazer que o cigarro proporciona.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação civil n. 700091204290, Relator Desembargador Paulo Antônio Kretzmann, Quinta Turma Cível, julgado em 17 de dezembro de 2004. Disponível em <www.tjrs.gov.br>. Acessado em 31/07/2017).
“Nesse ponto, pondero que a alegação do vício causado pela nicotina, a justificar a dependência ao cigarro, não pode ser considerada da forma como colocada pelo autor. A nicotina pode até causar dependência física e psíquica, mas não a ponto de retirar do fumante sua autodeterminação. A decisão pessoal de iniciar e continuar a fumar é fruto da escolha consciente do fumante, e sendo cediço que inúmeras pessoas largam o hábito querendo decidem fazê-lo, necessitando apenas de força de vontade para persistir nessa decisão.” (Tribunal de Justiça do Distrito Federal, Apelação cível n. 1999011048788-9, Relatora Desembargadora Adelith de Carvalho Lopes, Segunda Turma Cível, julgado em 20 de junho de 2002. Disponível em <www.tjrs.gov.br>. Acessado 31/07/2017).
[3] Houaiss, Antônio Dicionário Eletrônico Houaiss de Língua Portuguesa. Versão 1.0.7, set. 2004, Instituto Antônio Houaiss. Produzido e difundido pela Editora Objetiva Ltda.
[4] Trecho colhido da Encyclopaedia Britannica do Brasil Publicações Ltda., disponível em: <http:// geocities. yahoo.com.br/edterranova/raven079.htm>. Acessado em 04/09/2006.
[5] Ibid., 2006.
[6] Ibid., 2006.
[7] ROSEMBERG, José. Nicotina. Droga universal. São Paulo: SES/CVE, 2003. p. 28. Mister a citação de um trecho da obra do citado autor: “Recentemente verificou-se mais aprofundadamente a importância da idade em que se começa a fumar, no desenvolvimento mais intenso da dependência da nicotina. Os que se iniciam no tabagismo em torno dos 14 anos de idade, cerca de 90% estão dependentes aos 19 anos. Tem-se comprovado que os que começam a fumar entre os 14 a 16 anos, desenvolvem muito maior dependência da nicotina, em comparação com aqueles que fumaram o primeiro cigarro depois dos 20 anos. Nos adolescentes a nicotina provoca ação imediata sobre a função colinérgica, com alterações persistentes refletindo-se na dependência, aprendizado e memória. O adolescente é mais vulnerável para a disfunção colinérgica quando submetido à ação da nicotina. A nicotina no adolescente produz rápida alteração no sistema noradrenérgico e dopaminérgico dos centros nervosos cerebrais. A vulnerabilidade dos adolescentes à nicotina deriva da circunstância de que o cérebro ainda não está completamente desenvolvido. Experimentalmente constatou-se que a instilação de nicotina em ratos jovens exerce extensa ação sobre os receptores acetilcolínicos, o que não ocorre nos ratos adultos. Além disso, verifica-se que em ratos mais jovens, a nicotina provoca maiores prejuízos funcionais no sistema de recompensa, que em ratos adultos.”
[8] Veja-se, nesse sentido, esclarecedor trecho da monumental obra de José Rosemberg: “Desde os idos de 1950, a indústria tabaqueira vem desenvolvendo pesquisas que lhe forneceram a certeza de que a nicotina é geradora de dependência físico-química, assim como estudos para sua maior liberação e absorção pelo organismo e inclusive estudos genéticos objetivando desenvolver planta de tabaco hipernicotinado. A indústria tabaqueira, ciente das propriedades psico-ativas da nicotina geradora de dependência, sempre negou a existência dessas qualidades farmacológicas. É edificante o episódio ocorrido no início de 1980, quando a Phillip Morris obrigou seu cientista Vitor de Noble a retirar o artigo que havia entregado para publicação no Journal of Psychopharmacology, no qual relatava suas investigações comprovadoras de que ratos recebendo nicotina desenvolviam dependência físico-química. Isso tudo veio a lume com os documentos secretos que se tornaram públicos. Entretanto, a indústria tabaqueira continuamente pronunciou-se com ênfase, negando essas propriedades da nicotina.” (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 42). E mais: “Não obstante a exaustiva documentação acumulada de que a nicotina é droga geradora de dependência químico-física e da existência de fatores genéticos que ditam a reação orgânica com vasto polimorfismo [...], é de interesse ressaltar o fato histórico de que a ciência oficial demorou muito para se convencer dessa certeza, enquanto a indústria tabaqueira já tinha disso conhecimento de longa data. É também fato histórico edificante, como as multinacionais do tabaco esconderam por tanto tempo a certeza que tinham da nicotina ser droga psicoativa, promovendo vasta propaganda enganosa, afirmando que ela não causa dependência, enquanto secretamente trabalhou para a obtenção de cigarros com teores mais altos de nicotina para tornar os fumantes mais escravizados ao seu consumo. É impressionante que em 1979 o relatório oficial do Departamento de Educação, Saúde e Assistência Social, dos Estados Unidos, abordando a temática da nicotina, não se pronunciou sobre a sua característica de gerar dependência. Mais inexplicável é que, ainda em 1964, o Comitê Consultivo do Serviço de Saúde Pública dos Estados Unidos, com o endosso do Surgeon General, tenha declarado que “a nicotina causa apenas hábito, não sendo droga que desenvolve dependência”. Entretanto, a indústria tabaqueira, que vinha, desde 1950, promovendo pesquisas sofisticadas sobre a farmacodinâmica da nicotina, havia chegado À conclusão de que ela era droga geradora de dependência orgânica. Assim, em março de 1963, um ano antes do acima citado relatório do órgão oficial da saúde pública dos Estados Unidos, negando que a nicotina causa dependência, a Brown and Williamson, na reunião de seus dirigentes face às pesquisas de seus técnicos, concluiu pela propriedade da nicotina de causar dependência. A companhia tabaqueira Brown and Williamson, sediada nos Estados Unidos, é subsidiária da British American Tobacco (BAT), assim como a Souza Cruz do Brasil. Nessa reunião, o vice-presidente, Addison Yeaman, afirmou: “além do mais, a nicotina causa dependência. Nós estamos, portanto, num negócio de vender nicotina, que é uma droga que causa dependência, eficaz para anular os mecanismos de estresse.” Aliás, desde a década dos anos 1950,. a indústria tabaqueira já tinha a convicção da ação psico-ativa da nicotina, conforme se depreende do pronunciamento de H.R. Hammer, diretor de pesquisa da British American Tobacco, como consta da ata da reunião de 14 de outubro de 1955: “Pode-se remover toda a nicotina do tabaco, mas a experiência mostra que esses cigarros e charutos ficam emasculados e ninguém tem satisfação de fumá-los”. Em 1962 em outra reunião da British American Tobacco, o executivo Charles Ellis afirmou: “fumar é conseqüência da dependência [...]. Nicotina é droga de excelente qualidade.” (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 42-43).
[9] Ibid., 2003. p. 43.
[10] ROSEMBERG, op. cit. 2003, p. 43.
[11] Ibid., p. 43.
[12] Vejam-se, a esse respeito, as informações apontadas por Mario Cesar Carvalho: “Há dois gêneros de documentos: os científicos e os memorandos do alto escalão da indústria. O mais antigo dos textos científicos revelados é de fevereiro de 1953, oito meses antes de a pesquisa com os ratos pintados com nicotina ter sido apresentada pela primeira vez. Assinado por Claude Teague, um pesquisador da R.J. Reynolds, o texto associa com câncer o uso de cigarros por períodos longos: “Estudos de dados clínicos tendem a confirmar a relação entre o uso prolongado de tabaco e a incidência de câncer no pulmão” Logo em seguida, o pesquisador descreve quais são os agentes cancerígenos do cigarro: “compostos aromáticos plinucleares ocorrem nos produtos pirológicos [ou seja, que queimam] do tabaco. Benzopireno e N-benzopireno, ambos cancerígenos, foram identificados.”. (CARVALHO, Mário Cesar. O cigarro. São Paulo : Publifolha, 2001. p. 16-17).
[13] GLANTS, Stanton A.; SLADE, John; BERO, Lisa A.; HANAUER, Peter; BARNES, Deborah E. The cigarette papers. University of California Press, 1996. p. 4-5.
[14] Em trabalho de peso, produzido e editado pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA), órgão do Ministério da Saúde, intitulado ‘Ação global para o controle do tabaco – 1º Tratado Internacional de Saúde Pública’, acessível a todos pela internet, no site <http://www.inca.gov.br>, vários documentos internos da indústria do fumo são analisados, de sorte a evidenciar, de maneira lúcida, parte do pensamento e estratégia da indústria do tabaco. Veja-se a transcrição de alguns desses documentos, quando comparados ao posicionamento da indústria do tabaco perante o público: 1) Posicionamento da indústria perante o público: “A propaganda não é dirigida aos jovens”. O que os documentos mostram: “Eles representam o negócio de cigarros do amanhã. À medida que o grupo etário de 14 a 24 anos amadurece, ele se tornará a parte chave do volume total de cigarros, no mínimo pelos próximos 25 anos” (J.W. Hind, R.J. Reynolds Tobacco, internal memorandum, January 23, 1975). 2) Posicionamento da indústria perante o público:“A pressão dos amigos é o fator mais importante para o tabagismo infantil.” “A propaganda de cigarros afeta meramente a demanda dentro da categoria de produtos, através do fortalecimento da lealdade à marca ou criando mudanças de marca, mas não é dirigida para aumentar o consumo total às custas de não fumantes.” O que os documentos mostram: “Atingir o jovem pode ser mais eficiente mesmo que o custo para atingi-los seja maior, porque eles estão desejando experimentar, eles têm mais influência sobre os outros da sua idade do que eles terão mais tarde, e porque eles são muito mais leais a sua primeira marca.” (Escrito por um executivo da Philip Morris em 1957).3) Posicionamento da indústria perante o público: “A Souza Cruz fabrica cigarros para o consumo exclusivo de adultos, baseada nos melhores mecanismos e meios de produção.” (<www.souzacruz.com.br/2002>). O que os documentos mostram: “[...] um cigarro para o iniciante é um ato simbólico. Eu não sou mais a criança da minha mãe, eu sou forte, eu sou um aventureiro, eu não sou quadrado [...]. À medida em que a força do simbolismo psicológico diminui, o efeito farmacológico assume o papel de manter o hábito.” (Rascunho de relatório do Quadro de Diretores da Philip Morris, 1969). “É importante saber tanto quanto possível sobre os padrões de tabagismo dos adolescentes. Os adolescentes de hoje são os potenciais consumidores regulares de amanhã, e a grande maioria dos fumantes começa a fumar na sua adolescência [...]. Devido ao grande espaço que ocupa no mercado entre os fumantes mais jovens, a Philip Morris sofrerá mais do que qualquer outra companhia com o declínio do número de adolescentes fumantes” (Memorando enviado por um pesquisador da Philip Morris, Myron E. Johnston para Robert B. Seligman, Vice Presidente de pesquisa e desenvolvimento da Philip Morris, 1981). 4) Posicionamento público: “Nicotina é importante para dar sabor ou aroma – não para a dependência.” “Aqueles que definem fumar como uma dependência, o fazem por razões ideológicas e não científicas”. (Posição da Philip Morris em 1996). “Em 1994, durante uma audiência no Congresso Americano sete altos executivos de escritórios de companhias de tabaco americanas deram testemunhos de que a nicotina não causa dependência: Nós não ocultamos antes, nem ocultamos agora, nem nunca ocultaremos [...] nós não temos nenhuma pesquisa interna que prove que fumar [...] é aditivo.” (Martin Broughton, Chief Executive BAT). “Entrevista para uma revista – John Carlisle da Tobacco Marketing Associaton (UK, 1998): Pergunta – A nicotina causa dependência? Carlisle – “A definição de dependência é ampla e variada. Pessoas são dependentes de Internet. Outras são dependentes de shopping, sexo, chá e café. A linha que eu consideraria é a de que o tabaco não causa dependência e sim de que é formador de hábito.” “Posicionamento sobre dependência de nicotina, homepage da Souza Cruz, 2002: “A nicotina é um componente natural do fumo e apresenta propriedades farmacológicas que contribuem para o prazer. Mesmo sendo uma parte importante da experiência de fumar, a nicotina não é a única razão para fumar. Aspectos culturais e sociais, entre outros, estão envolvidos no ato de fumar, que é uma escolha da caráter puramente individual. Certamente é difícil deixar de fumar para alguns fumantes, mas não existe nada em nossos produtos que retire do fumante a sua capacidade de parar de fumar.” (). O que os documentos mostram: “Nicotina causa dependência. Nós estamos, portanto, no ramo de vender nicotina, uma droga que causa dependência.” (Addison Yeaman from Brown and Williamson B&W, 1963). “A nicotina tem a propriedade de uma droga de abuso. Ela tem propriedade de droga de adição... Estes (os resultados) são completamente contraditórios com a posição da indústria de que a nicotina está nos cigarros para dar sabor. Nós sabemos que eles (os camundongos) pressionavam a alavanca devido aos efeitos da droga nos cérebros dos animais. Nós também sabemos, a partir de estudos, que se a droga fosse cocaína ou morfina ou álcool os camundongos continuariam a pressionar a alavanca. Nós encontramos o mesmo com a nicotina.” (Informações do cientista Victor DeNoble da Philip Morris sobre experimentos em camundongos nos quais injetou nicotina diretamente no coração – Philip Morris, quoted on Dispatches, Channel 4, 1996). “A BAT deveria aprender a se ver mais como uma companhia de droga do que como uma companhia de tabaco.” (Memorando escrito por cientistas da BAT, 1980). “Nós também achamos que se deve considerar a hipótese de que os altos lucros adicionais associados com a indústria do tabaco estão diretamente relacionados ao fato do consumidor ser dependente do produto... Olhando de outra forma, não procede que o produto X, enquanto alternativa futura, mantenha um nível de lucro acima da maioria das outras atividades do ramo de produtos, a não ser que, como o tabaco, seja associado à dependência.” (BAT, 1979). “Tem sido sugerido que a fumaça do cigarro é a droga mais aditiva. Certamente, um grande número de pessoas continuará a fumar porque eles não conseguem deixar. Se eles pudessem, eles o fariam. Não se pode mais dizer que eles fizeram uma escolha adulta.” (Dr. Green, funcionário da BAT, 1980).
[15] CARVALHO, op. cit., 2001. p. 18. Mario Cesar Carvalho informa que a manipulação do nível de nicotina era tema proibido. Se essa prática fosse provada, demonstrar-se-ia que a indústria alterava os ingredientes de seu produto, como se este fosse uma droga – e aí a venda de cigarros poderia sofrer limitações. Complementa o jornalista: “O governo dos EUA encontrou a prova da manipulação, num texto escrito em português, descoberto por uma bibliotecária da Food and Drugs Administration (FDA, a agência que controla remédios e comida). O texto era um pedido de patente da Brown & Williamson, empresa irmã da Souza Cruz, para “uma variedade de fumo geneticamente estável”. O pedido era de 1992. Mesmo sem saber português, a bibliotecária, Carol Knoth, reparou num número: 6%. E uma dúvida persistia: por que o texto fora escrito em português?
Primeiro, a FDA descobriu que o número referia-se ao percentual de nicotina produzido pela planta transgênica. Era praticamente o dobro dos níveis de nicotina encontrados no fumo sem manipulação genética, que variam de 2,5% a 3,5%. O porquê de o texto ter sido escrito em português seria revelado com a ajuda de Janis Bravo, uma funcionária da DNA Plant Technology, empresa que produzira a planta geneticamente modificada (com o nome futurista de Y1). Janis contou que tinham sido enviadas ao Brasil sementes suficientes para produzir mil toneladas de fumo. Uma pesquisa nos arquivos alfandegários dos EUA revelou que a Brown & Williamson despachara 1 milhão de quilos de sementes do fumo geneticamente modificado Y1 para a Souza Cruz Overseas. O roteiro das sementes era o mesmo dos negócios escusos: iam para as ilhas Cayman e depois para o Brasil.
O Brasil fora escolhido porque a indústria fez nos EUA um acordo de cavalheiros para não elevar os níveis de nicotina. Do contrário, haveria uma espécie de jogo sujo que viciaria, de tal forma, o consumidor, que isso praticamente eliminaria a concorrência entre marcas. Cultivando o Y1 no Brasil, onde as sementes foram plantadas no Rio Grande do Sul, a Brown & Williamson, segundo sua visão particular de ética, não estava violando o acordo. Um empregado da Brown & Williamson também decidiu abrir a boca. Contou à FDA que a empresa estocara, nos EUA, entre 125 e 250 toneladas de fumo Y1.
Por causa do processo aberto nos EUA contra a Brown &Williamson, a Souza Cruz interrompeu a produção do Y1 no Brasil.
A engenharia genética era a forma mais sofisticada de alterar o nível de nicotina do cigarro, mas não era a única. Um manual de mistura de fumos da Brown & Williamson ensinava outro métodos – a adição de amônia. “Um cigarro que incorpore a tecnologia da amônia vai distribuir mais compostos de sabor na fumaça, inclusive nicotina, do que um sem nada.” A técnica é simples: a amônia reage com os sais da nicotina e eleva o nível de liberação da mesma nicotina. As fábricas brasileiras também recorreram ao método da amônia, segundo o Instituto Nacional do Câncer.
É mais um ingrediente para engrossar a lista de cerca de 600 compostos que são adicionados ao cigarro, conforme a própria indústria.” (Ibid., 2001. p. 18-20).
[16] ROSEMBERG, 2003. p. 44. José Rosemberg, na mesma obra, esclarece que o elenco e a variedade das investigações em animais e em humanos são difíceis de resumir, porém os itens mais marcantes são: “Estudos neuro-endocrínicos da ação da nicotina sobre os vários centros cerebrais. Regulação da função da glândula pituitária. Liberação mais rápida da nicotina e seu maior impacto sobre o cérebro. Controle da nicotina sobre o estresse e efeito tranqüilizante. Liberação de hormônios psico-ativos pela ação da nicotina sobre os centros nervosos cerebrais. Transposição da nicotina presa em nicotina livre, objetivando sua maior ação. Transposição da nicotina da fase particulada para a fase gasosa, mais ativa. Fenômeno de tolerância dos centros nervosos nicotínicos. Graus da dependência à nicotina no tabaco através do tabaco reconstituído.” Continua o estudioso, evidenciando que essas e outras linhas de pesquisa conduziram a vários conhecimentos, sendo os essenciais: “A ação neuro-farmacológica da nicotina é de proeminente importância para as pessoas fumarem. Substâncias como a amônia, elevando o pH do tabaco, liberam mais nicotina. Exploração de métodos de enriqucimento de nicotina no tabaco: o tabaco reconstituído e engenharia genética. Eletroencelografia como meio de medição dos graus de intensidade da nicotino-dependência. Ajustamento dos tabagistas nas maneiras de fumar, para obter níveis mais adequados de nicotina no sangue, proporcionando maior “satisfação”. Elevação do índice de absorção orgânica da nicotina, em geral na média de 11% para 40%. Conseguir tabacos que farmacologicamente desencadeiam maior sensação prazerosa no fumante. Cigarros que liberam menos de 0,7 mg de nicotina não são vantajosos comercialmente. É urgente a confecção de cigarros com maior nível de liberação de nicotina. Para os futuros produtos é imprescindível a maior liberação de nicotina. Por isso, além dos procedimentos pesquisados, impõe-se a cooperação da engenharia genética para obtenção de tabaco mais rico de nicotina.” (Ibid., p. 44-45).
[17] Um dos memorandos internos, esse escrito por Ernest Pepples, vice-presidente e advogado geral da Brown & Williamson, evidencia que a primeira reação da indústria do tabaco à crescente preocupação pública com os efeitos danosos do cigarro, foi a de “produzir mais marcas com filtro e marcas com baixos índices de alcatrão” Segundo Pepples, a fatia do mercado dos cigarros com filtro cresceu rapidamente durante os anos 50 e 60, criando uma atmosfera de competição feroz que ficou conhecida como a “corrida do alcatrão” (empresas competindo para baixar o alcatrão dos cigarros). Os documentos secretos mostram, entretanto, que essas novas marcas não eram exatamente mais saudáveis que as antigas. Em verdade, essas marcas foram desenvolvidas com propósitos de marketing, para que as empresas de tabaco pudessem declarar em seus anúncios que sua marca tinha “menos alcatrão” que as outras – o próprio Pepples assinala, no tal memorando citado alhures, que os filtros não faziam os cigarros mais saudáveis, apenas davam aos fumantes a ilusão de fumar um produto mais saudável[17]. A esse respeito, os cientistas da British American Tobacco fizeram uma distinção entre os cigarros “orientados à saúde”, que incorporavam avanços tecnológicos que foram testados e sabia-se que reduziam os riscos, e cigarros “de imagem saudável”, que eram projetados para dar aos fumantes a ilusão de estarem consumindo um produto mais seguro.
[18] GLANTS; SLADE; BERO; HANAUER; BARNES, op. cit., 1996. p. 30.
[19] Sobre a importância da idade em que se começa a fumar para desenvolvimento mais intenso da dependência da nicotina, mister citar-se passagem da obra de José Rosemberg: “Os que se iniciam no tabagismo em torno dos 14 anos de idade, cerca de 90% estão dependentes aos 19 anos. Tem-se comprovado que os que começam a fumar entre os 14 a 16 anos desenvolvem muito maior dependência da nicotina, em comparação com aqueles que fumaram o primeiro cigarro depois dos 20 anos de idade. Nos adolescentes, a nicotina provoca ação imediata sobre a função colinérgica, com alterações persistentes refletindo-se na dependência, aprendizado e memória. O adolescente é mais vulnerável para a disfunção colinérgica quando submetido à ação da nicotina. A nicotina no adolescente produz rápida alteração no sistema noradrenérgico e dopaminérgico dos centros nervosos cerebrais. A vulnerabilidade dos adolescentes à nicotina deriva da circunstância de que o cérebro ainda não está completamente desenvolvido. Experimentalmente, constatou-se que a instilação de nicotina em ratos jovens exerce extensa ação sobre os receptores acetilcolínicos, o que não ocorre nos ratos adultos. Além disso, verifica-se que em ratos mais jovens, a nicotina provoca maiores prejuízos funcionais no sistema de recompensa, que em ratos adultos. Estudos em humanos indicam que o cérebro de adolescentes é particularmente vulnerável à nicotina, e que a dependência é mais intensa, razão porque a interrupção de sua administração, por deixar de fumar, apresenta maiores perturbações da função neurológica, com maior frequência de depressão. Estudo de mais de 30 mil homens e cerca de 19 mil mulheres, ambos adolescentes, demonstrou que os iniciados no tabagismo desenvolveram intensa dependência, traduzida pelo aumento de consumo de cigarros quando na idade adulta. Os que começaram a fumar antes de 14 anos, 19,6% quando adultos consumiam 41 ou mais cigarros por dia, comparados com 10,3% quando começaram a fumar aos 20 ou mais anos de idade. O consumo foi um pouco inferior, no sexo feminino. Outro estudo demonstrou que adolescentes fumantes têm duas vezes mais dificuldade de deixar de fumar que os tornados tabagistas, depois de 20 anos. Em suma, é farta a documentação evidenciando que a dependência da nicotina processa-se mais rapidamente e é mais forte, nos que ingressam no tabagismo em torno dos 14 anos, sendo mais difícil de superá-la, obrigando a consumir maior quantidade de cigarros continuamente, com sérias consequências à saúde.” (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 28-29).
[20] MARQUES, Cláudia Lima. Violação do dever de boa-fé de informar, corretamente, atos negociais omissivos afetando o direito/liberdade de escolha. Nexo causal entre a falha/defeito de informação e defeito de qualidade nos produtos de tabaco e o dano final morte. Responsabilidade do fabricante do produto, direito a ressarcimento dos danos materiais e morais, sejam preventivos, reparatórios ou satisfatórios. Revista dos Tribunais, 835, p. 74-133, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 93-94.
[21] DÁVILA, Sérgio. Atores receberam para fumar em filmes. Saúde. Mundo. Folha de S.Paulo, quarta-feira, 13 de março de 2002. A11. “Uma pesquisa realizada pelo Centro de Câncer de Norris Cotton (EUA) demonstrou que a proposta, firmada voluntariamente pela indústria do cigarro, em 1989, de não veicular imagens de celebridades de Hollywood fumando em produções cinematográficas, jamais foi respeitada. Especialistas afirmam que a associação do cigarro com imagens atraentes de aventura e glamour é um poderoso estímulo para o seu consumo, sobretudo entre o público jovem, que se identifica com situações dessa natureza, por estar em fase de formação de personalidade. Foram analisados os 25 filmes de maior audiência entre 1988 e 1997. Desses, cerca de 85% continham cenas de tabagismo, o que representa quase a mesma proporção registrada antes do acordo. O estudo ainda indica que a veiculação das marcas é quase tão freqüente nos filmes adolescentes quanto nos voltados para o público adulto. Nos filmes infantis, o índice é de 20%.” (Multinacionais do cigarro e cinema hollywoodiano continuam associados. Disponível em <http://www.inca.gov.br/atualidades/ano10_1/ multinacionais.html>. Acessado em 22/07/2005).
[22] A respeito da Lei de Gerson, é interessante conferir uma reportagem publicada na Revista Isto é: “O País passou por várias crises de identidade neste século. A pergunta "quem somos nós?" esteve em vários momentos permeando a produção da intelectualidade nacional. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter criado por Mário de Andrade, surge exatamente da necessidade de uma nova definição do que era ser brasileiro, tema pulsante na década de 20, quando os imigrantes contribuíam para um novo perfil de nação. A convicção era de que a mão-de-obra importada era muito melhor que a nacional. Alguns estudiosos defendiam que dos escravos havíamos herdado o horror ao trabalho e dos índios um talento especial para a preguiça. É desse cenário que surge a compreensão da força da malandragem, uma espécie de contraponto ao exército de trabalhadores dedicados e produtivos, que primeiro a agricultura e depois a indústria tanto necessitaram para competir no mercado internacional. Os malandros passaram a fazer parte do imaginário de um país de alma escravista como uma espécie de resistência ao modelo europeu cheio de regras. Era astuto, esperto e vivia de "expediente", como se dizia na época, e, mais do que tudo, sabia dar um "jeitinho" em tudo. Ganhava dinheiro fora das formas oficiais, jogando bilhar, apostando em cavalos e, em alguns casos, sobrevivendo na gigolagem. Com o passar dos anos, o malandro despencou cada vez mais para a contravenção, mas o folclore do jeitinho já havia marcado definitivamente o caráter nacional. Sua expressão mais agressiva vai desembocar na década de 70, tendo como marco o comercial do cigarro Vila Rica. Era um momento em que se pensava o nacionalismo em parâmetros bem diferentes dos anos 20. Havia um orgulho verde-amarelo e uma megalomania alimentada pela ditadura. Nesse contexto, um herói nacional como o tricampeão Gerson solta sua frase mais famosa. "Você gosta de levar vantagem em tudo, certo?" A propaganda não teve uma interpretação pejorativa na época, mas depois virou lei. "Para o período era um jargão superdifundido. A propaganda captou um elemento de identificação que estava no imaginário popular", acredita Maria Izilda Matos, historiadora e pesquisadora da boemia. "A lei de Gerson funcionou como mais um elemento na definição da identidade nacional e o símbolo mais explícito da nossa ética ou falta de ética", completa a historiadora.” (Disponível em: <http://www.terra.com.br/istoe/politica/1999/12/22/003.htm>. Acessado em: 10/11/2006).
[23] O bicampeão mundial de Fórmula-1 e campeão da Indy, Emerson Fittipaldi, virou marca de charuto. Foi lançado em Miami o “Fittipaldi Cigar”. Trata-se de um empreendimento de Fittipaldi em conjunto com uma loja especializada no assunto, a Macabi Cigar Store, líder do setor no sul da Flórida. Um fato curioso é que, mesmo sem fumar, Emerson foi patrocinado, na Fórmula I, por mais de 20 anos, pelos cigarros Malboro, fabricados pela Phillip Morris. No entanto, nunca foi fotografado com um cigarro nas mãos. Agora, Fittipaldi decidiu seguir outra linha e posou fumando um dos charutos que levam o seu nome. (Emerson vira marca de charuto. Disponível em: <http://www.inca.gov.br/atualidades/ano6_2/ emerson.html>. Acessado em: 22/07/2005).
[24] Atletas ajudam empresas a forjar imagem e marca. Folha de S.Paulo. Esporte. Sexta-feira, 22 de outubro de 2004. D2.
[25] Herói chinês rema contra onda e vai vender cigarro. Folha de S.Paulo. Esporte. Sexta-feira, 22 de outubro de 2004. D2.
[26] Veja-se o inteiro teor de tal documento: “Eles representam o negócio de cigarros do amanhã. À medida que o grupo etário de 14 a 24 anos amadurece, ele se tornará a parte chave do volume total de cigarros, no mínimo pelos próximos 25 anos.” (J. W. Hind, R. J. Reynolds Tobacco, internal memorandum, January 23, 1975). (Ação global para o controle do tabaco. 1º Tratado Internacional de Saúde Pública. 3. ed. Criação do Instituto Nacional de Câncer (INCA), 2004. p. 9. Disponível em: <http://www.inca.gov.br>).
[27] A postura adotada pela indústria do tabaco, no decorrer de décadas e décadas, não só no Brasil, como na maioria dos países em que os seus produtos encontram-se disponíveis no mercado, denota uma prática irregular do direito de produção e comercialização de cigarros, na medida em que foi ela responsável pela criação de uma atmosfera artificial de dúvidas e ceticismo acerca da natureza do cigarro e dos riscos à saúde advindos de seu consumo. Essa deslealdade na relação de consumo, capitaneada não só pela omissão intencional de informações necessárias ao esclarecimento da sociedade acerca da natureza do cigarro, mas também pela divulgação de publicidade insidiosa e ilegítima, resulta numa circunstância de evidente abuso do direito, suficientemente capaz de alicerçar condenações mesmo antes da publicação do Código de Defesa do Consumidor. Para uma visão mais completa sobre a toeira do abuso do direito aplicável à responsabilidade civil da indústria do tabaco: DELFINO, Lúcio. Responsabilidade civil e tabagismo. Curitiba. Juruá, 2008.
[28] ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 30-31.
[29] BUCHALLA, Ana. Vontade não basta. Entrevista Nancy Rigotti. Revista Veja, 9 de junho de 2004. p. 11-15.
[30] ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 27.
[31] Ibid., p. 27.
[32] ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 28.
[33] Em alguns indivíduos – esclarecem Antonio Fosé Pessoa Dórea e Clovis Botelho – a síndrome de abstinência pode “ser observada por 30 dias ou mais, mas os sintomas de compulsão pelo fumo podem durar por muitos meses ou anos. É interessante notar que a abstinência lenta pode resultar em sintomas de compulsão mais intensos que a interrupção brusca, fenômeno que não é observado com a maioria das outras drogas. Reduzindo a dose, ao invés de uma interrupção brusca, os sintomas persistem por mais tempo e este fato pode estar associado a nível maior de recidiva. Isso talvez explique porque a maioria dos usuários que tem sucesso ao parar de fumar o faz de maneira brusca.” (DÓREA; BOTELHO, op. cit., 2006).
[34] Os medicamentos disponíveis na atualidade para o tratamento de fumantes podem ser divididos em nicotínicos e não nicotínicos. Os primeiros contêm nicotina, constituindo a chamada terapêutica da reposição da nicotina (TRN); existem 7 (sete) formas: a transdêmica, pela aplicação de adesivos (pach); a via oral, com a goma-nicotina de mascar; por inalação; por aerossol; por tabletes; pastilhas; e os pseudo-cigarros (PREPs), surgidos mais recentemente. Os medicamentos não nicotínicos são, preferencialmente, os antidepressivos. Entre esses, destaca-se a bupropiona. (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 100).
[35] Tabagismo & saúde nos países em desenvolvimento. Documento organizado pela Comissão Européia em colaboração com a Organização Mundial de Saúde e o Banco Mundial para a Mesa Redonda de Alto Nível sobre Controle do Tabagismo e Políticas de Desenvolvimento. Tradução: Instituto Nacional de Câncer/Ministério da Saúde do Brasil. Disponível em <http://www.inca.gov.br>. Acessado em 10 de setembro de 2005.
[36] São suficientes algumas tragadas de fumo, ou mesmo a administração de nicotina por qualquer via, para que os sintomas desagradáveis desapareçam, voltando a euforia, isso unicamente para reforçar a compreensão de que é, sim, a nicotina a substância responsável pelos distúrbios que surgem ao cessar de fumar (síndrome de abstinência). (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 96).
[37] ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 96.
[38] Ibid., p. 96. Esclarece José Rosemberg que a “intensidade da dependência da nicotina cresce com o tempo e o número de cigarros fumados. Todas as formas de usar o tabaco geram dependência: cigarros, charutos, cachimbos, fumo de mascar, rapé etc. Os que começam a fumar muito jovens, em torno dos 14 anos, por peculiaridades orgânicas, desenvolvem altos graus de dependência da nicotina, escravizando-os ao consumo do tabaco, e quando adultos consomem maiores quantidades de cigarro”. (Ibid., p. 95-96).
[39] A complexidade do assunto envolvendo a ‘nicotina’ levou o professor José Rosemberg a escrever um verdadeiro tratado sobre o assunto, a obra intitulada ‘Nicotina. Droga universal’, à disposição de todos pela internet (<http://www.inca.gov.br/tabagismo/publicacoes/nicotina.pdf>). Obra de peso, cuja bibliografia, contendo nada menos que 1.111 indicações, impressiona até mesmo o mais cuidadoso dos cientistas. Àqueles envolvidos no estudo do tema abordado nesse trabalho é indispensável o conhecimento da obra citada, haja vista a sua seriedade e a riqueza de informações que proporciona ao leitor.
[40] A situação é tão séria que especialistas afirmam não haver tratamento para 5% dos fumantes com dependência muito forte à nicotina. Esses estariam fadados a morrer fumando. (Informação obtida em entrevista feita com o professor José Rosemberg. Disponível em: <http://www. drauziovarella.com.br/entrevistas/nicotina5.asp>).
[41] Recente pesquisa realizada na conceituada Universidade de Harvard confirmou um estudo do Estado de Massachusetts, o qual teria verificado um aumento em níveis de nicotina em cigarros de 1997 a 2005. A análise, baseada em informações fornecidas por fabricantes de cigarro ao Departamento de Saúde Pública de Massachusetts, verificou aumentos anuais de, em média, 1,6% na quantidade de nicotina em cada cigarro, o equivalente a um crescimento de 11% nesse período. Howard Koh, pesquisador que trabalhou na análise, esclareceu: “Cigarros são dispositivos finamente ajustados para a entrega da droga, designados para perpetuar uma pandemia de tabaco.” E mais: “Apesar disso, informações precisas sobre esses produtos continuam em segredo, escondidas do público.” Massachusetts é um dos três Estados dos EUA que obrigam empresas de tabaco a fornecerem informações sobre níveis de nicotina em cigarros e o único com dados desde 1997. O estudo, divulgado em outubro, examinou níveis de nicotina em mais de cem marcas ao longo de seis anos. A análise verificou um aumento estável na quantidade de nicotina em cigarros e afirma que níveis mais altos da droga facilitam a aquisição do vício de fumar e dificultam o seu abandono. Segundo George Connolly, diretor do Programa de Controle de Tabaco na Harvard, a pesquisa põe em questão se a indústria do tabaco está cumprindo o acordo, feito em 1998 com Estados americanos, de que lançaria uma campanha para reduzir o fumo entre jovens. “Se a indústria avança na quantidade de nicotina no produto, você pode não conseguir baixar o número de crianças fumantes.” (Estudo aponta mais nicotina no cigarro. Pesquisa da universidade americana de Harvard analisou mais de cem marcas nos EUA e verificou uma elevação de 11%. Folha de São Paulo. Cootidiano. C7. Sexta-feira, 19 de janeiro de 2007).
[42] ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 95.
[43] Consoante leciona José Rosemberg, os “métodos de cessação de fumar podem ser diretos e indiretos. Os primeiros são procedimentos clínicos de avaliação do grau de dependência da nicotina, psicoterapia, esclarecimentos, aconselhamento, aplicação de medicamentos e acompanhamento; os segundos, constituem ações anti-tabágicas integradas na atenção primária da rede de saúde pública, campanhas educativas atingindo, desde a infância, os diversos seguimentos da população, proibição de fumar em locais públicos, elevação dos impostos sobre os preços dos cigarros, advertências nos invólucros dos produtos do tabaco. Os métodos diretos são de custo “per capita” mais elevados e, embora obtenham maior número de resultados positivos na cessação de fumar, atingem menores contingentes de fumantes. Por outro lado, os métodos indiretos com menores resultados individuais de tabagistas para abandonarem o tabaco, exercem maior impacto na epidemia tabágica, por englobar a população como um todo.” (ROSEMBERG, op. cit., 2003. p. 97).
[44] Não seria exagerado afirmar que essas decisões judiciais atentam contra um direito constitucional, na medida em que a vaguidade que as alicerça, tecnicamente não pode ser rotulada de fundamentação. A fundamentação é característica essencial a toda decisão judicial. Num Estado Democrático de Direito, ela se mostra imprescindível, porquanto além de demonstrar as razões da decisão, permitindo que seja atacada de forma mais precisa e eficiente, garante que os atos judiciais não se apresentem arbitrários e descompromissados com a razão e a lógica. Ora, aquela decisão, cujo embasamento se limita à afirmativa de que “bastaria a mera decisão do fumante para que abandonasse o tabagismo”, sem os devidos esclarecimentos sobre os caminhos lógicos percorridos para se chegar a tal conclusão, apresenta-se carente de fundamentação, data maxima venia.
[45] Sabe-se hoje que o homem: i) possui aversão ao esforço mental e, por isso, está inclinado a não pensar suficientemente, aceitando a resposta mais agradável ou familiar; ii) soluciona problemas sem ter acesso a todas as alternativas possíveis, apegando-se apenas em experiências passadas; iii) sujeita-se a alterações comportamentais pela exposição a qualquer coisa influenciável (palavras, objetos, ambiente); iv) não é imparcial ou neutro e a todo momento busca uma causalidade por não conseguir aceitar fatos sem que estejam acompanhados de uma história; v) tem a tendência de aceitar uma informação inicial como se verdadeira fosse (efeito halo) (ROSA, Alexandre Morais da; TOBLER, Giseli Caroline. Teoria da Decisão Rápida e Devagar, com Kahneman. Disponível em: <www.emporio-do-direito.jusbrasil.com.br/noticias/182398340/teoria-da-decisao-rapida-e-devagar-com-kahneman>. Acessado: 02/07/2015). Ou seja, é mera ilusão a crença de que o ser humano é racional e consciente acerca de todas as decisões que toma ao longo da sua existência, em especial porque o cérebro ostenta, entre os seus segredos, desvios cognitivos que afetam negativamente a qualidade da decisão (FREITAS, Juarez. A Hermenêutica Jurídica e a Ciência do Cérebro: Como Lidar com os Automatismos Mentais. Revista Ajuris, 130. Porto Alegre: Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul, 2013. p. 223-244).
[46] Essa última frase é a tradução do título de importante estudo publicado por Kahneman e Tversky, em 1982, na Revista Science, transcrito para o português no livro “Rápido e Devagar: Duas Formas de Pensar”. Nele os autores descreveram os atalhos simplificadores do pensamento intuitivo e explicaram cerca de vinte vieses. Originalmente publicado em: KAHNEMAN, D.; TVERSKY, A. Judgement Under Uncertainty: Heuristics and Biases. In, The Simulation Heuristic. P. Slovic e A. Tversky (Orgs). Nova York: Cambridge University Press. p. 201-208.
[47] HARARI, Yuval Noah. Homo Deus. Uma breve história do amanhã. São Paulo: Editora Companhia das Letras, 2015. Em outra passagem da mesma obra: “Quando confrontadas com essas explicações científicas, as pessoas costumam afastá-las, ressaltando que se sentem livres e que agem em conformidade com sua vontade e suas decisões. É verdade. Humanos agem de acordo com suas vontades. Se com ‘livre-arbítrio’ você está se referindo à capacidade de agir segundo seus desejos – então, sim, humanos têm livre-arbítrio, assim como chimpanzés, cães e papagaios. Quando Louro quer um biscoito, Louro come um biscoito. Mas a pergunta-chave não é se papagaios e humanos são capazes de agir segundo seus desejos interiores – a questão é, para começar, se podem escolher esses desejos. Por que Louro quer um biscoito e não pepino? Por que eu decido matar meu vizinho irritante em vez de oferecer-lhe a outra face? Por que quero comprar o automóvel vermelho e não o preto? Por que prefiro dar meu voto a um partido de direito e não a um partido de esquerda? Não escolho nenhuma dessas vontades. Sinto um desejo específico brotar dentro de mim porque esse é o sentimento criado pelos processos bioquímicos em meu cérebro. Esses processos podem ser determinísticos ou aleatórios, mas não livres.” Mais: “Não são apenas hipóteses ou especulações filosóficas. Hoje, podemos usar scanneres de cérebro para predizer os desejos e as decisões das pessoas bem antes de elas terem consciência disso. Em um experimento, pessoas são postas dentro de um enorme scanner de cérebro tendo em cada mão um interruptor. Elas são orientadas a apertar um dos dois interruptores, se tiverem vontade. Os cientistas, observando a atividade neural no cérebro, podem prever qual dos interruptores será pressionado bem antes de a pessoa ter consciência da sua intenção. Eventos neurais no cérebro indicam que a decisão começa – de algumas centenas de milissegundos a alguns segundos – antes que se tenha consciência da escolha. A decisão de apertar o interruptor da direito ou o da esquerda com certeza refletiu uma escolha. Mas não foi uma livre escolha. Na verdade, nossa crença no livre-arbítrio resulta de uma lógica defeituosa. Quando uma reação em cadeia bioquímica me faz querer apertar o interruptor da direita, eu sinto que realmente quero apertar o interruptor da direita. E isso é verdade. De fato eu quero apertá-lo. Mas as pessoas chegam equivocadamente à conclusão de que, se quero apertá-lo, é porque eu escolhi querer fazer isso. Isso é falso. Eu não escolho minhas vontades. Eu apenas as sinto e ajo de acordo. (...) Duvidar do livre-arbítrio não é apenas um exercício filosófico. Existem implicações práticas. Se organismos realmente carecem de uma vontade livre, a implicação é de que poderíamos manipular e até mesmo controlar seus desejos utilizando drogas, engenharia genética ou estimulação cerebral direta.”
[48] ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. São Paulo: Martins Fontes, 2000. p. 606.
[49] Em 2007, o Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul acolheu o entendimento defendido neste ensaio, e decidiu que “não há falar em liberalidade/voluntariedade do usuário do tabaco. Isso porque, a voluntas do indivíduo estava maculada, quer pela ausência de informações a respeito dos malefícios do produto, seja pela dependência química causada por diversos componentes, especialmente, pela nicotina.” (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Apelação Cível n.º 70017634486, Quinta Câmara Cível, Relator Desembargador Paulo Sergio Scarparo, julgado em 27/06/2007. Disponível em: <www.tj.rs.gov.br>).
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