Coluna ABDPRO
Embora se trate de sistema de resolução de conflitos distintos, a relação entre o Judiciário e a Arbitragem deve ser analisada sob o prisma da cooperação, sendo essa relação colaborativa essencial ao sistema jurisdicional contemporâneo.
Nesse sentido, é importante ressaltar que hodiernamente o termo Jurisdição ganhou novos contornos, de modo que não se aplica unicamente ao Estado, como ocorria há tempos. Na contemporaneidade, o termo Jurisdição deve ser visto como direito de acesso à justiça dentro de um sistema multiportas.
O CPC/2015 no decorrer de seu texto, mas sobretudo no caput do artigo 3° ressalta que “não se excluirá da apreciação jurisdicional ameaça ou lesão do direito”. Note-se que a expressão “do poder judiciário”, presente no inciso XXXV, artigo 5°, da Constituição Federal, foi substituída pelo termo “jurisdicional”. Assim, a compreensão do acesso à justiça como equivalente ao acesso ao Judiciário resta equivocada atualmente.
O Judiciário é apenas uma das espécies de acesso à justiça. A Jurisdição deve ser observada a partir do modelo multiportas. Há de se ressaltar que os incisos I e II do artigo 3°, do CPC/2015, enfatizam a arbitragem, a conciliação e a mediação, como meios de resolução de conflitos. Na busca por resultados práticos e efetivos, ocorreram mudanças expressivas no modo de se vê e praticar a atividade jurisdicional. O presente trabalho tem por escopo abordar a relação de cooperação entre a Arbitragem e o Judiciário. Nesse sentido, faz-se importante tecer breves diferenças entre os dois institutos.
A Arbitragem é regulada pela Lei n° 9307/96, sendo mais célere e flexível em comparação ao Judiciário. Nela, há o empoderamento das partes, que podem escolher o árbitro, ajustar o procedimento, inclusive decidir se será por equidade ou direito, bem como o estipular o prazo em que se dará a sentença. Nesta última hipótese, na omissão das partes, a lei considera o prazo de seis meses. A possibilidade das partes optarem pela confidencialidade é outro ponto importante, pois, na prática, acaba sendo a regra geral do procedimento arbitral, em contraponto com o Judiciário, cuja prevalência é da publicidade do procedimento.
Ao contrário das exigências para ser Juiz Togado, o árbitro não precisa ter formação em direito ou passar em concurso público. Faz-se necessário, tão somente, ser capaz e ter a confiança das partes. Ao contrário, no Judiciário, a escolha do julgador é definida por meio de sorteio automático do sistema de informática do Tribunal e o procedimento a ser seguido deve ser o estabelecido pelo CPC.
A celeridade do procedimento arbitral, entre outros fatores, ocorre porque a sentença é irrecorrível. A Lei de Arbitragem apenas prevê uma manifestação, a ser apresentada no prazo de cinco dias, salvo outro não tenha sido convencionado entra as partes, a ser contato após a intimação da decisão, para os casos de omissão, contradição, obscuridade e erro material.
Para que um conflito seja resolvido por meio da Arbitragem se faz necessária uma convenção de arbitragem, a ser realizada por meio de cláusula ou compromisso arbitral. A primeira é convencionada de forma anterior ao conflito, enquanto que a segunda se dá quando o conflito já emergiu. Tanto uma quanto a outra, uma vez convencionada vinculam as partes ao procedimento arbitral.
A cláusula arbitral, como dito, é convencionada antes do conflito, podendo ser uma cláusula cheia ou em preto, vazia ou em branco, escalonada ou patológica. A cláusula cheia ou em preto é quando as partes já estipulam todo o necessário para o transcurso do procedimento arbitral. A cláusula vazia ou em branco é exatamente o oposto, isto é, quando as partes convencionam que o conflito, se surgir, será submetido a arbitragem, mas não estipulam todo o necessário para o transcurso do procedimento, como, por exemplo, não realizaram a escolha do árbitro ou o local em que se dará a arbitragem, entre outras coisas.
Feitas essas considerações, destaca-se que quando o árbitro se encontra no exercício da função de resolução do conflito, que lhe foi outorgada pelas partes através da convenção de arbitragem, está para aquele caso específico imbuído da atividade jurisdicional.
Nesse aspecto, há de se destacar que para o caso concreto sob sua análise, o árbitro é considerado juiz de fato e de direito, conforme de verifica no artigo 18, da Lei de Arbitragem, que dispõe: “O árbitro é juiz de fato e de direito, e a sentença que proferir não fica sujeita a recurso ou a homologação pelo Poder Judiciário”.
Embora distintos, o Judiciário e a Arbitragem não devem ser analisados sob o prisma da rivalidade, tampouco unicamente pelo antagonismo. Ao contrário, muitas vezes, se integram, na busca de uma solução efetiva ao conflito. A relação de cooperação entre esses dois sistemas não se resume ao âmbito dos julgadores, ou seja, o Árbitro e Juiz Togado, mas também com relação às partes, que, por vezes, precisam sair do universo da Arbitragem e procurar o Judiciário.
A Carta Arbitral, prevista no artigo 22-C, da Lei de Arbitragem, segue o mesmo regime geral das cartas, artigo 260, § 3°, do CPC/2015, e seguirá em segredo de justiça, caso o processo arbitral seja sigiloso, artigo 189, IV, do CPC/2015. Trata-se de um instrumento a ser utilizado pelo Árbitro para solicitar a cooperação do Judiciário, quando necessário, a exemplo da solicitação do dever de auxílio ao cumprimento das tutelas provisórias, quando descumpridas, ou para que seja determinada a condução de uma testemunha para ser inquerida, quando não atende a convocação do Juízo Arbitral. Nesses casos a cooperação do Judiciário é essencial porque o árbitro não possui poder de coação.
Embora a decisão arbitral tenha a mesma eficácia e validade da decisão estatal, a ponto de ser também um título executivo judicial, como dispõe o artigo 31, da Lei de arbitragem e o artigo 515, VII, do CPC/2015, o árbitro não possui poder coercitivo, para exigir o cumprimento forçado de suas decisões e intimações. Daí a importância da interface entre os dois sistemas. Desse modo, apesar de ter proferido a sentença e desta ter força imperativa, na hipótese de descumprimento, para eventual execução deverá a parte interessada provocar o Poder Judiciário, como previsto no §3°, do artigo 33, da Lei de Arbitragem.
Frisa-se que o Judiciário vai se deter aos atos coativos e procedimentos legalmente previstos para se obter a satisfação do julgado e não reapreciar o mérito da questão, vez que isso já ocorreu na arbitragem e já se encontra albergado pela coisa julgada. O que se tem aí, é tão somente uma cooperação entre os sistemas para o cumprimento da obrigação imposta pelo árbitro na decisão.
Assim, em algumas situações essa interface entre os sistemas é necessária, seja para apoiar o processo arbitral, garantindo a efetividade de provisões e ordens dele emanadas, como explicado, seja para operacionalizar a cláusula compromissória ou mesmo para exercer o papel de supervisão das decisões arbitrais.
Como exemplo de medidas de apoio do Judiciário para com a Arbitragem pode-se citar a concessão de medidas de urgência, como prevê o artigo 22-A e 22-B da Lei de Arbitragem. De acordo com esses dispositivos, não tendo sido instituído o procedimento arbitral e havendo necessidade de uma tutela de urgência, a parte interessada pode requerê-la ao Judiciário. Nesse caso, concedida e efetivada a liminar, a partir da efetivação tem a parte 30 dias para instituir a arbitragem. Por sua vez, quando instituída deverá o árbitro rever a decisão judicial, podendo manter, modificar ou revogar a liminar.
Outros exemplos de medidas de apoio é operacionalização de cláusula compromissória vazia, , pois o impasse para instauração do procedimento arbitral, em face de lacuna existente e não suprida extrajudicialmente pelas partes, pode ser suprido por meio de uma decisão judicial, na qual o Juiz Togado suprirá a lacuna, hipótese em que a sentença valerá como compromisso arbitral judicial, possibilitando ao interessado a instauração do procedimento arbitral. O regulamento desta possibilidade se encontra no artigo 6° e 7° da Lei de Arbitragem
O papel de supervisão das decisões arbitrais referenciado há pouco diz respeito à possibilidade de ajuizamento de ação judicial, com o propósito de anular a decisão arbitral, como prevê o caput do artigo 33, da Lei de Arbitragem. A nulidade da sentença arbitral também pode ser arguida por meio da impugnação ao cumprimento de sentença, conforme prevê o artigo 33, § 3°, da mesma Lei. As hipóteses de nulidade são as previstas no artigo 32, da Lei de Arbitragem, pois sua arguição não pode ser utilizada como sucedâneo de recurso.
A operacionalização de cláusula compromissória patológica e vazia é outro exemplo importante de apoio dado pelo Judiciário. Assim, o impasse para instauração do procedimento arbitral em face de cláusula compromissória vazia ou patológica pode ser suprido por meio de uma ação judicial em que o juiz, caso as partes não consigam acordar entre si, irá dar uma decisão que suprirá a lacuna ou vício, conforme o caso da cláusula, possibilitando a instauração do procedimento perante o árbitro. O regulamento desta possibilidade se encontra no artigo 6° e 7° da Lei de Arbitragem
Tais atos de apoio à instauração do procedimento, a efetivação e, por vezes, supervisão da decisão é essencial e demonstra a integração entre os dois sistemas e não a suplementação da arbitragem ao sistema judicial.
Como se vê, é indispensável um Judiciário eficiente para que o processo arbitral se dê de forma adequada e eficaz. Um sistema de heterocomposição não suplanta o outro. A arbitragem é um sistema de resolução de conflito privado e autônomo, mas que tem sua eficácia vinculada à cooperação judicial
A cooperação do Judiciário para com a Arbitragem é salutar para o bom funcionamento desta, até porque o poder de coação continua sendo do Estado, e a decisão arbitral, assim como a judicial, precisa de controle, pois o árbitro pode, da mesma forma que o juiz, cometer falhas. O Código de Processo Civil prevê meios de controle da decisão judicial. Na Arbitragem o meio de controle se perfaz pela submissão da decisão ao Judiciário através de ação própria, não para questionar seu conteúdo, mas para verificar a existência de ofensas ao devido processo legal, conforme previsto na própria Lei de Arbitragem.
O processo arbitral pode se desenvolver sem qualquer interferência do judiciário. No entanto, em algumas situações essa interferência se faz necessária, seja para apoiar o processo arbitral, garantindo a efetividade de provisões e ordens dele emanadas, seja para operacionalizar a cláusula compromissória ou mesmo para exercer o papel de supervisão das decisões arbitrais.
Notas e Referências
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