ABDPRO #151 - Cadê o seu direito que estava aqui? A depender das Leis 14.034/2020 e 14.046/2020, sumiu!

14/10/2020

Coluna ABDPRO

Em 19/03/2020, foi publicada a Medida Provisória Nº 925/2020, posteriormente convertida na Lei 14.034/2020, tratando de medidas de socorro ao setor de aviação civil brasileira em razão da pandemia de Covid-19.

Ao tratar do direito de reembolso de nós consumidores, decorrente do cancelamento de voos, seu art. 3º dispôs que:

Lei 14.034/2020:

Art. 3º O reembolso do valor da passagem aérea devido ao consumidor por cancelamento de voo no período compreendido entre 19 de março de 2020 e 31 de dezembro de 2020 será realizado pelo transportador no prazo de 12 (doze) meses, contado da data do voo cancelado, observadas a atualização monetária calculada com base no INPC e, quando cabível, a prestação de assistência material, nos termos da regulamentação vigente.

Para que não haja dúvidas: sim, é um socorro ao setor da aviação civil brasileira com o dinheiro dos consumidores. O meu, inclusive. Um empréstimo forçado, a ser restituído em 12 (doze) meses, sem juros remuneratórios.

Não se assuste ainda. Fica pior.

No dia 08/04/2020, foi publicada a Medida Provisória Nº 948/2020, posteriormente convertida na Lei 14.046/2020, versando sobre o adiamento e o cancelamento de serviços, de reservas e de eventos turísticos e culturais, em razão da pandemia de Covid-19.

Essa Lei, por sua vez, ao tratar do direito de reembolso dos consumidores desses serviços, dispôs no seu art. 2º que:

Lei 14.046/2020:

Art. 2º  Na hipótese de adiamento ou de cancelamento de serviços, de reservas e de eventos, incluídos shows e espetáculos, em razão do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, e da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente da pandemia da Covid-19, o prestador de serviços ou a sociedade empresária não serão obrigados a reembolsar os valores pagos pelo consumidor, desde que assegurem:

I - a remarcação dos serviços, das reservas e dos eventos adiados; ou

II - a disponibilização de crédito para uso ou abatimento na compra de outros serviços, reservas e eventos disponíveis nas respectivas empresas.

§1º As operações de que trata o caput deste artigo ocorrerão sem custo adicional, taxa ou multa ao consumidor, em qualquer data a partir de 1º de janeiro de 2020, e estender-se-ão pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias, contado da comunicação do adiamento ou do cancelamento dos serviços, ou 30 (trinta) dias antes da realização do evento, o que ocorrer antes.

§2º Se o consumidor não fizer a solicitação a que se refere o § 1º deste artigo no prazo assinalado de 120 (cento e vinte) dias, por motivo de falecimento, de internação ou de força maior, o prazo será restituído em proveito da parte, do herdeiro ou do sucessor, a contar da data de ocorrência do fato impeditivo da solicitação.

§3º (VETADO).

§4º O crédito a que se refere o inciso II do caput deste artigo poderá ser utilizado pelo consumidor no prazo de 12 (doze) meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

§5º Na hipótese prevista no inciso I do caput deste artigo, serão respeitados:

I - os valores e as condições dos serviços originalmente contratados; e

II - o prazo de 18 (dezoito) meses, contado da data do encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020.

§6º O prestador de serviço ou a sociedade empresária deverão restituir o valor recebido ao consumidor no prazo de 12 (doze) meses, contado da data de encerramento do estado de calamidade pública reconhecido pelo Decreto Legislativo nº 6, de 20 de março de 2020, somente na hipótese de ficarem impossibilitados de oferecer uma das duas alternativas referidas nos incisos I e II do caput deste artigo.

§7º Os valores referentes aos serviços de agenciamento e de intermediação já prestados, tais como taxa de conveniência e/ou de entrega, serão deduzidos do crédito a ser disponibilizado ao consumidor, nos termos do inciso II do caput deste artigo, ou do valor a que se refere o § 6º deste artigo.

§8º As regras para adiamento da prestação do serviço, para disponibilização de crédito ou, na impossibilidade de oferecimento da remarcação dos serviços ou da disponibilização de crédito referidas nos incisos I e II do caput deste artigo, para reembolso aos consumidores, aplicar-se-ão ao prestador de serviço ou à sociedade empresária que tiverem recursos a serem devolvidos por produtores culturais ou por artistas.

§9º O disposto neste artigo aplica-se aos casos em que o serviço, a reserva ou o evento adiado tiver que ser novamente adiado, em razão de não terem cessado os efeitos da emergência de saúde pública referida no art. 1º desta Lei na data da remarcação originária, bem como aplica-se aos novos eventos lançados no decorrer do período sob os efeitos da emergência em saúde pública e que não puderem ser realizados pelo mesmo motivo.

O artigo é longo. Mas vale a pena ser ignorado. Digo, comentado.

Aqui não existe empréstimo forçado. Na verdade, só se o fornecedor quiser. Se ele quiser, ficará obrigado a lhe devolver o dinheiro, em 12 (doze) meses, sem juros remuneratórios. Mas se não quiser, não precisa devolver. Basta disponibilizar-lhe o valor como crédito, que você deverá obrigatoriamente utilizar. Ou, melhor ainda, basta remarcar o serviço, a reserva ou o evento cancelados. A opção é do fornecedor. E se você não quiser ou não puder ir na nova data? Eu sei lá. A Lei não se preocupou com isso. Lembre-se: o socorro não é para você.

Retomemos a sobriedade do discurso. Os mencionados dispositivos legais trouxeram mudanças significativamente prejudiciais aos consumidores. O direito ao reembolso por impossibilidade da prestação, previsto no art. 248 do Código Civil, foi simplesmente extinto.

Transferiu-se o risco da atividade, do fornecedor para o consumidor. Instituiu-se uma moratória, com o dinheiro privado dos consumidores, em favor dos fornecedores. Não só isso. No caso da Lei 14.046/2020, ressarcir-se o consumidor passou a ser uma opção do fornecedor.

Esse novo regramento ofende a Constituição ao menos nos pontos a seguir expostos.

(1)  Ambas as Leis violaram o disposto no art. 5º, XXXII, da Constituição (cláusula pétrea, cf. CF/88, art. 60, §4º, IV). As mudanças por elas promovidas são a antítese da defesa do consumidor.

(2)  Atingiu-se o ato jurídico perfeito (CF/88, art. 5º, XXXVI; cláusula pétrea, cf. CF, art. 60, §4º, IV), em relação a todos os contratos celebrados antes da publicação das respectivas MPs. É que, ao tempo da celebração dos referidos contratos, a regra era a de que serviço cancelado por força maior ensejava direito ao ressarcimento (CC, art. 248). Tendo os contratos sido celebrados sobre essa regra, não poderia a lei retroagir para atingi-los.

(3)  Prejudicou-se o direito adquirido (CF/88, art. 5º, XXXVI; cláusula pétrea, cf. CF/88, art. 60, §4º, IV) ao ressarcimento, no que se refere a todas as reservas, serviços e eventos turísticos e culturais que já haviam sido cancelados ao tempo da publicação da MP 948/2020, ou seja, entre 01/01/2020 e 08/04/2020.

(4)  Contrariou-se se o princípio da proporcionalidade. Em diversos aspectos. (3.1) Primeiro, ao se desconsiderar que a pandemia não afetou apenas fornecedores, mas toda a sociedade, inclusive consumidores desses mesmos serviços. (3.2) Segundo, ao se estabelecer um prazo excessivamente longo para o ressarcimento ou, no caso da Lei 14.046/2020, ao dispensar-se o fornecedor do seu dever de ressarcimento, permitindo-lhe optar entre remarcar o serviço ou disponibilizar o valor na forma de crédito ao consumidor. (4.3) Terceiro, ao se conferir um prazo excessivamente longo ao fornecedor para a remarcação do serviço, da reserva e do evento, regulados pela Lei 14.046/2020 (18 meses). (4.4) Quarto, também no que toca à Lei 14.046/2020, ao se estabelecer um prazo prescricional exíguo ao consumidor (120 dias ou 30 dias antes do evento), que não encontra paralelo algum na legislação brasileira vigente.

O que pode ser dito a título de conclusão? Que, pelo menos, o Poder Judiciário responderá à altura. Ou que, pelo menos, é nisso que eu quero acreditar.

 

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