Coluna ABDPRO
Nos últimos anos, tenho refletido sobre o problema do baixo grau de consistência sistêmica do discurso decisório no direito brasileiro e, por conseguinte, tenho buscado apresentar uma contribuição à teoria da decisão judicial, o que tenho feito através de algumas construções teóricas, dentre as quais, as classificações estática e dinâmica das normas e o “princípio da maior atração da norma mais densificada”, que findam por revelar inúmeras relações de prioridade normativa, as quais, por sua vez, geram ônus argumentativos para quem pretenda invertê-las.
Foi diante dessa preocupação que, em anterior trabalho,[1] desenvolvi uma classificação estática das normas legisladas. Essa classificação é (i) tipológica, porque, ao identificar os tipos de normas legisladas, não o faz por meio de conceitos abstratos ou concretos, mas por meio de tipos ideais[2] – categoria gnosiológica que, partindo de traços característicos (mas não necessários) de dados empíricos, constrói esquemas, modelos, visando à sistematização do conhecimento e à melhor compreensão da realidade subjacente[3]; (ii) prima facie, logo, provisória, na medida em que, no plano normativo-argumentativo, pode-se inverter a distinção inicial e (iii) engendrada no plano sintático-semântico, pois leva em consideração o maior ou menor grau de especificação ou densificação do conteúdo dos enunciados legais, a partir da formulação dos elementos da estrutura lógica da norma (o delineamento do antecedente e do consequente normativo), bem como a partir da maior ou menor ambiguidade e vagueza semântica da norma.
A principal razão de uma classificação dos tipos normativos, como a que propus, consiste em (i) orientar e facilitar a interpretação e aplicação das normas por meio da antecipação de suas qualidades normativas; (ii) criar relações de prioridade normativa, nas quais determinados tipos de normas têm primazia sobre outros e, a partir daí, (iii) estabelecer ônus argumentativos para aqueles que pretendam inverter tal relação de prioridade normativa, bem como proporcionar uma descarga argumentativa para aqueles que a observam. Ou seja, afigura-se relevante que todos aqueles que se encontram envolvidos numa cadeia argumentativa (na verdade, até mesmo antes de se aventurarem em uma demanda judicial), saibam de antemão os ônus argumentativos que terão que suportar, desincumbir-se etc.
Pois bem, na classificação estática das normas legisladas que desenvolvi em trabalho anterior (ora apenas referenciada), distingui-as, prima facie, em cinco tipos: (i) regras stricto sensu, (ii) conceitos jurídicos indeterminados, (iii) cláusulas gerais, (iv) princípios que são como regras e (v) princípios stricto sensu, que têm as seguintes noções:
- As regras stricto sensu são normas com elevado grau de estruturação normativa, que apresentam antecedente e consequente normativo explícitos e bem delineados, que não fazem referência direta a valores ou fins e apresentam baixo grau de ambiguidade e vagueza semântica. Ou melhor, as regras se estruturam por uma relação “se-então” mais rígida, apresentando, pois, elevado grau de prontidão para, prima facie, servir como razão imediata da norma de decisão de um caso concreto ou de uma questão jurídica. Em virtude disso, as regras stricto sensu têm maior aptidão à decidibilidade que os conceitos jurídicos indeterminados, as cláusulas gerais, os princípios que são como regras e os princípios stricto sensu, constituindo-se, pois, no ponto central da aplicação do direito.
- Os conceitos jurídicos indeterminados são normas com grau de estruturação normativa mediano, que apresentam o antecedente e o consequente normativo, ao menos, minimamente, delineados. Além disso, o antecedente normativo dos conceitos jurídicos indeterminados ou contém ambiguidade e/ou vagueza semântica, ou faz referência a valores; o consequente normativo, contudo, é determinado (v. g., art. 6º, VIII, e art. 51, IV, do CDC). Em virtude disso, conceitos jurídicos indeterminados têm aptidão à decidibilidade inferior à das regras stricto sensu, porém, superior à das cláusulas gerais e dos princípios stricto sensu.
- As cláusulas gerais são normas com grau de estruturação normativa mediano, que apresentam o antecedente minimamente delineado e o consequente, ao menos, esboçado. As cláusulas gerais, tipicamente, além de conterem ambiguidade e/ou vagueza semântica ou fazerem referência a valores no antecedente normativo, apresentam um consequente normativo aberto, indeterminado, que, assim, precisa ser preenchido, especificado pelo intérprete-aplicador (v. g., o art. 300 c/c o art. 297 do CPC/2015 e o art. 887, § 4º, do CPC/2015). Em virtude disso, as cláusulas gerais têm aptidão à decidibilidade inferior ao das regras stricto sensu e dos conceitos jurídicos indeterminados, porém, superior ao dos princípios stricto sensu. Ressalte-se, que, como é comum em uma classificação tipológica, há cláusulas gerais que não apresentam todos esses traços característicos. Alguns enunciados legais que a doutrina, comumente, aponta como veiculadores de cláusulas gerais [v. g., o art. 805 do CPC/2015 (art. 620 do CPC/73); art. 497 do CPC/2015 (art. 461 do CPC/73); o art. 139, IV, do CPC/2015)] não contêm ambiguidade e/ou vagueza semântica no antecedente normativo, mas apenas uma abertura ou indeterminação no consequente normativo.
- Os princípios que são como regras constituem-se, tipicamente, naquelas formulações normativas que apresentam uma estruturação, ao menos indiciária, do antecedente e do consequente normativo e que por protegerem, com pretensão de irrestringibilidade (incondicionalidade), valores básicos da ordem jurídica, ou por fazerem referência no seu antecedente a uma cláusula de restrição[4] ou a uma determinação em relação às exigências de princípios colidentes,[5] geralmente cunhada em termos extremamente abertos (v. g., razoável, provável, injusto etc.), tendem a colidir com outros princípios. Os princípios que são como regras quando não colidem com outros princípios, têm aptidão para servir como razão imediata à norma de decisão de um caso concreto, ao passo que, quando entram em rota de colisão com outros princípios, funcionam como princípios e submetem-se a um juízo de ponderação, cuja síntese é uma regra à qual se subsomem os fatos do caso. Exemplo claro de princípio como regra é o da liberdade de expressão (art. 5º, IX, CF), que, quando não colide com outro princípio, atua como regra, assegurando, por exemplo, a publicação de matérias jornalísticas, artigos científicos, documentários etc. sem qualquer censura, ou melhor, proibindo qualquer intervenção estatal no campo da liberdade de expressão; porém, quando entra em rota de colisão com outro princípio, por exemplo, o da proteção à vida privada, funciona como princípio, carecendo de sopesamento. O plano sintático-semântico revela que os princípios que são como regras têm forma de proposição normativa, mas que, por sua expressão linguística, tendem a colidir com outros princípios no plano normativo-argumentativo.
- Os princípios stricto sensu são normas com baixo grau de estruturação normativa, pois ou se estruturam por uma conexão “se-então” mais elástica, ou apenas fazem referência a fins ou a valores básicos da ordem jurídica sem sequer apresentarem um esboço do antecedente e do consequente normativo, tendendo, assim, a envolver uma postura mais flexível e aberta em face da incorporação de fins e valores, motivo pelo qual apresentam baixo grau de prontidão para, prima facie, servirem como razão imediata da norma de decisão de um caso concreto ou de uma questão jurídica. Os princípios, comumente, são critérios para a aplicação de outras normas, relacionam-se à interpretação aceitável de uma formulação normativa, atuando, pois, sobretudo, como fenômeno axiológico, qualificando algo como bom, valioso etc. Em virtude disso, os princípios stricto sensu são as normas que têm o menor grau de aptidão à decidibilidade.
Como resultado dessa classificação estática das normas legisladas, cheguei à seguinte escala de densificação e especificação (e, consequentemente, de aptidão à decidibilidade):
regras stricto sensu ˃ conceitos jurídicos indeterminados ˃ cláusulas gerais ˃ princípios stricto sensu.[6]
Não é ocioso destacar que, quanto maior for o grau de densificação ou especificação das normas, maior será sua aptidão à decidibilidade, razão pela qual haverá uma relação de prioridade normativa coincidente com a gradação da densificação e da aptidão à decidibilidade das normas.
Ressalte-se, ainda, a seguinte regularidade: (i) quanto maior o ônus argumentativo para se afastar de um tipo normativo, menor o ônus argumentativo para justificar sua aplicação e (ii) quanto menor o ônus argumentativo para se afastar de um tipo normativo, maior o ônus argumentativo para justificar sua aplicação. Logo, se as regras stricto sensu exigem um maior ônus argumentativo para que o intérprete-aplicador delas se afaste, os princípios, as cláusulas gerais e os conceitos jurídicos indeterminados, nessa ordem, impõem um maior ônus argumentativo para que o intérprete-aplicador justifique sua aplicação no caso concreto. Ou seja, o ônus argumentativo necessário para se afastar de um tipo normativo é inversamente proporcional ao ônus argumentativo necessário para justificar sua aplicação em um caso concreto.
2. Sobre a distinção entre os princípios e as cláusulas gerais
Na construção da referida classificação estática das normas legisladas, a distinção dos tipos normativos mais difícil de fazer foi a que se deu entre os princípios e as cláusulas gerais. E, a meu ver, a confusão entre eles é campo fértil para o ativismo judicial, do qual decorrem problemas sérios como o solipsismo, o pan-principiologismo e a aplicação de princípios per saltum, que tanto têm comprometido o Estado Democrático de Direito no Brasil.
A dificuldade de se distinguir os princípios das cláusulas gerais decorre de que muitos dos enunciados legais que a doutrina aponta como sendo cláusulas gerais veiculam um princípio [v. g., cooperação processual (art. 6º, CPC), boa-fé objetiva (art. 421, CC), função social do contrato (art. 421, CC), devido processo legal (art. 5º, LIV, CF), função social da propriedade (art. 5º, XXIII , CF) etc.].[7] Ou seja, em muitos casos há uma superposição entre princípios e cláusulas gerais, o que, além de inviabilizar a distinção dessas categorias, pode ensejar problemas metodológicos, como, por exemplo, legitimar a flexibilização da aplicação de uma norma que, pelas suas características (pela sua estruturação normativa), deveria proporcionar um menor grau de afrouxamento do vínculo que prende o intérprete-aplicador à lei.[8]
Por conseguinte, afigura-se relevante a distinção entre princípios e cláusulas gerais, a fim de minorar os problemas que uma tal superposição pode trazer e, ainda, para justificar a utilidade da categoria das cláusulas gerais num contexto em que é assente a normatividade dos princípios.
Judith Martins-Costa,[9] reconhecendo que muitas vezes um enunciado legal que se configura em cláusula geral veicula um princípio, analisa a distinção ou equiparação entre as duas categorias, em três circunstâncias: (a) sendo as cláusulas gerais uma técnica legislativa não há que se falar em cláusula geral implícita, de forma que não haveria equiparação entre cláusula geral e princípio implícito ou não expresso; (b) há princípios que não contêm vagueza semântica e, assim, não promovem o reenvio a valores jurídicos ou extrajurídicos, ao passo que “não se pode pensar em cláusula geral que não promova o reenvio, seja a outros espaços do próprio ordenamento, seja a standards, jurídicos ou ainda extrajurídicos, ou a valores, sistemáticos ou extra-sistemáticos”[10] e (c) com relação aos princípios expressos que fazem referência a valores (v. g., boa-fé, correção, moralidade pública, razoabilidade etc.), pode-se afirmar que nesse caso há uma cláusula geral que contém um princípio, mas isso não autoriza falar em equiparação das categorias, pois há inúmeras outras cláusulas gerais que não veiculam princípios, mas apenas reenviam a outros estatutos, como é o caso do art. 7º,[11] caput, do CDC.
Convém tecer alguns comentários sobre as ideias de Judith Martins-Costa.
Quanto ao argumento esposado no item “a”, não tenho discordâncias. Contudo, ele é claramente insuficiente para distinguir os princípios das cláusulas gerais, pois, como reconhece a autora, há inúmeros princípios expressos que fazem referência a valores e, assim, acabam se confundindo em certa medida com as cláusulas gerais. Quanto ao item “b”, se realmente há princípios que não fazem referência direta a valores ou não contêm alto grau de ambiguidade e vagueza semântica, como bem demonstra Marcelo Neves (v. g., respectivamente, o art. 146, III, “c”, da CF – princípio do tratamento tributário adequado ao cooperativismo – e art. 1º, II, da CF – o princípio da livre iniciativa), não se pode afirmar, como o faz Judith Martins-Costa, que inexista cláusula geral “que não promova o reenvio, seja a outros espaços do próprio ordenamento, seja a standards, jurídicos ou ainda extrajurídicos, ou a valores, sistemáticos ou extra-sistemáticos”.[12] É que, conforme já demonstrado, embora tipicamente as cláusulas gerais contenham ambiguidade, vagueza ou referência a valores no antecedente normativo, como é próprio das classificações tipológicas, há inúmeras cláusulas gerais que não contêm tais características, mas apenas uma indeterminação no consequente [v. g., art. 805[13] do CPC/2015 (art. 620 do CPC/73); art. 497[14] do CPC/2015 (art. 461 do CPC/73); art. 139,[15] IV, do CPC/2015)]. Por fim, em relação ao argumento exposto no item “c”, discordo integralmente das ideias de Judith Martins-Costa, pois, conforme restará demonstrado a seguir, não se pode aceitar a superposição de cláusulas gerais e princípios, nem mesmo no campo dos princípios expressos que fazem referência a valores.
Entendo que as cláusulas gerais – que corresponderiam, juntamente com os conceitos jurídicos indeterminados, à categoria das regras que são como princípios de Aarnio – encontram-se abarcadas pelas regras lato sensu, pois a rigor já têm delineados, ao menos minimamente, o antecedente e o consequente normativo, que apenas necessitam de preenchimento e determinação pelo intérprete-aplicador.[16]
Como subcategoria das regras lato sensu, as cláusulas gerais estão em um nível mais elevado de estruturação normativa quando comparadas aos princípios. Se a incerteza e a complexidade desestruturada no plano dos valores tornam-se relativamente estruturadas (ou estruturável) por força dos princípios jurídicos, que dão certos contornos e pontos de referência à realização do direito, com as regras lato sensu – as cláusulas gerais, os conceitos jurídicos indeterminados e as regras stricto sensu – atinge-se, de forma crescente, um grau maior de estruturação normativa, reduzindo-se gradativamente a incerteza e a complexidade.
Como demonstra Marcelo Neves, “no plano abstrato dos valores, de ‘complexidade muito indeterminada’, ‘não se alcança’ a ‘justificação da ação’”.[17] Os valores, para poderem justificar uma ação, para poderem ter significado prático, precisam ser incorporados ao sistema jurídico, e essa incorporação se dá tanto por meio de princípios como por meio de regras. Ao nível dos princípios, a complexidade indeterminada no plano dos valores passa a ser relativamente estruturada (ou estruturável), mas somente ao nível das regras essa complexidade estruturável se torna estruturada, “só as regras viabilizam a transformação da incerteza do ponto de partida à certeza obtida com a decisão. Só as regras levam à redução de complexidade ou à seleção suscetível de determinar a solução do caso”.[18]
Larenz bem demonstra que os princípios, no nível mais elevado (v. g., princípio do Estado de Direito, princípio do Estado Social, princípio do respeito da dignidade humana etc.), possuem um grau de estruturação normativa muito inferior ao das regras e, em virtude de, nesse nível, não conterem, ainda, nenhum indício de delineamento do antecedente e do consequente normativo, carecem de concretização ou desgeneralização, para que possam servir como razão imediata da norma de decisão de um caso concreto. Com efeito, “no grau mais elevado, o princípio não contém ainda nenhuma especificação de previsão e consequência jurídica, mas só uma «ideia jurídica geral», pela qual se orienta a concretização ulterior como por um fio condutor”.[19] Em seguida, Larenz afirma que os primeiros indícios de uma especificação do antecedente e do consequente normativo e, assim, do começo da formação de regras, aparecem em princípios como o da igualdade, o da confiança e seus subprincípios; contudo, tais princípios e subprincípios ainda estão longe “de representar regras de que pudesse resultar directamente a resolução de um caso particular. Ao invés disso, são aqui precisas concretizações ulteriores”.[20]
Esser, nos idos da década de 50 (cinquenta) do século passado, já distinguia os princípios das cláusulas gerais – que, para ele, teriam natureza de regra. Os fatores decisivos para Esser distinguir um princípio de uma regra são (i) o grau de estruturação normativa, isto é, o delineamento dos elementos da estrutura lógica da norma (antecedente e consequente normativo) e (ii) a validade imediata da norma, ou melhor, a possibilidade de sua incidência sobre determinados fatos – o que exige, ao menos, um início de estruturação do antecedente e do consequente normativo, mesmo que careçam de preenchimento e determinação pelo intérprete-aplicador.[21]-[22]
As cláusulas gerais, por se encontrarem em um mais elevado nível de estruturação normativa se comparadas aos princípios, não entram em rota de colisão com estes. Um conflito normativo envolvendo cláusula geral dar-se-á com outra cláusula geral, com um conceito jurídico indeterminado ou mesmo com uma regra stricto sensu (v.g., o conflito entre o art. 139, IV, CPC/2015,[23] de um lado, e, de outro, os arts. 824[24] e 831[25] do CPC/2015), resolvendo-se, pois, ou pelos critérios tradicionais (da superioridade, da especialidade ou da temporalidade) ou por uma regra de prioridade normativa (v. g., as regras stricto sensu têm primazia sobre as cláusulas gerais).
As cláusulas gerais concretizam princípios, não colidindo, pois, diretamente com um princípio contraposto ao que concretiza. O princípio contraposto pode colidir com o princípio concretizado pela cláusula geral, mas não diretamente com ela.
No limite, uma cláusula geral pode ser inconciliável com um princípio; nesse caso, se o princípio for de grau hierárquico superior, a cláusula geral será inválida (v. g., princípio constitucional e cláusula geral infraconstitucional); se for de mesma hierarquia, a cláusula geral prevalecerá sobre o princípio.
O exemplo abaixo ajuda a enxergar o ponto com maior clareza.
O art. 10 do CPC/2015, ao estabelecer a vedação da decisão surpresa e o dever de consulta, na minha opinião, concretiza os princípios do devido processo legal e do contraditório. Parece óbvio que as regras emanadas do art. 10 do CPC/2015 (vedação da decisão surpresa e dever de consulta) não devem ser ponderadas com os princípios da razoável duração do processo e da efetividade da tutela jurisdicional. Estes podem entrar em rota de colisão com o princípio do devido processo legal e do contraditório, mas a regra do art. 10 do CPC/2015 já se encontra estruturada normativamente, já houve um prévio juízo de ponderação pelo legislador, de forma que ela não pode ser ultrapassada sob a alegação de colidir com os princípios da razoável duração do processo e da efetividade da tutela jurisdicional.
3. Considerações finais
Enfim, o que se pretende demonstrar é que, ao se confundir uma cláusula geral com um princípio – como se faz ao afirmar que a cooperação processual, o devido processo legal e a boa-fé são cláusulas gerais –, põe-se em um mesmo plano as pseudocláusulas gerais – verdadeiros princípios – (v. g., a cooperação processual, o devido processo legal e a boa-fé) e as cláusulas gerais propriamente ditas [v.g., o art. 300 c/c o art. 297 do CPC/2015 (art. 798, CPC/73); art. 887, § 4º, do CPC/2015 (art. 687, § 2º, CPC/73); art. 805 do CPC/2015 (art. 620, CPC/73)], transigindo, assim, que as normas construídas a partir destes últimos enunciados legais – que têm natureza de regras lato sensu – sejam ponderadas com princípios contrapostos aos que ela concretiza, quando, na verdade, tais normas já se encontram estruturadas, tendo em vista o prévio juízo de ponderação realizado pelo legislador entre os princípios que elas concretizam e os princípios colidentes.
Ou seja, afirmar-se que um enunciado legal que se constitui em cláusula geral veicula um princípio apenas serve para possibilitar um juízo de ponderação entre a cláusula geral e um princípio contraposto, flexibilizando-se, pois, indevidamente o vínculo que prende o intérprete-aplicador à norma, que, claramente, deveria proporcionar um vínculo mais forte do que o de um princípio.
Notas e Referências
[1] ATAÍDE JR., Jaldemiro Rodrigues de. A inércia argumentativa no processo civil brasileiro. Tese de doutorado. PUC, São Paulo, 2017.
[2] De acordo com Larenz, o tipo ideal lógico fora introduzido nas ciências sociais por Max Weber, tratando-se de uma representação do modelo, “que é conseguida enfatizando alguns traços particulares observados na realidade e descurando outros, e é utilizado como padrão de comparação. O próprio Max Weber qualifica-o como um «produto do pensamento» que se consegue enfatizando unilateralmente algum ou alguns pontos de vista e unindo uma multiplicidade de fenômenos particulares, que se dão «aqui mais, ali menos, mas de modo algum esporadicamente», e que se submetem àqueles pontos de vista. Tais tipos ideais, como, por exemplo, o de «economia livre de mercado» e o de uma «economia totalmente dirigida», servem para esclarecer no modelo certas evoluções que são em cada caso «típicas» e, nessa conformidade, para compreender melhor, mediante a comparação com os tipos «puros», as formas híbridas encontradas na realidade”. Por fim, adverte Larenz que, diferentemente do que ocorre com os desenvolvimentos da teoria dos tipos ideais a partir de Weber, este não compactuava com a opinião de se priorizar um tipo em face de outro ou de uma forma híbrida, ou seja, não trabalhava com a ideia de tipo axiológico e tipo normativo. In: LARENZ, Karl. Metodologia da ciência do direito. Tradução de José Lamego. 6ed. Lisboa: Fundação Galouste Gulbenkian, 2012, p. 656-659.
[3] Sobre as noções ora esposadas de conceito e de tipo: ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Tradução de Alfredo Bosi. 5ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007, p. 194-196, 1141; LARENZ, Karl. Op. Cit., p. 650-673.
[4] Como ocorre, por exemplo, no art. 5º, VIII, XIV e XXXIII, e o art. 95, II, da CF, respectivamente: “VIII - ninguém será privado de direitos por motivo de crença religiosa ou de convicção filosófica ou política, salvo se as invocar para eximir-se de obrigação legal a todos imposta e recusar-se a cumprir prestação alternativa, fixada em lei;” “ XIV - é assegurado a todos o acesso à informação e resguardado o sigilo da fonte, quando necessário ao exercício profissional”; “XXXIII - todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”; “II - inamovibilidade, salvo por motivo de interesse público, na forma do art. 93, VIII”.
[5] Como ocorre, por exemplo, no art. 5º, XXV, XXVI e LX, e no art. 173, caput, da CF, respectivamente: “XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano” (relação de primazia da segurança pública frente ao direito de propriedade); “XXVI - a pequena propriedade rural, assim definida em lei, desde que trabalhada pela família, não será objeto de penhora para pagamento de débitos decorrentes de sua atividade produtiva, dispondo a lei sobre os meios de financiar o seu desenvolvimento” (relação de primazia da função social da propriedade frente ao direito de propriedade); “LX - a lei só poderá restringir a publicidade dos atos processuais quando a defesa da intimidade ou o interesse social o exigirem” (relação de primazia da intimidade e do interesse social frente à publicidade); “Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei” (relação de primazia da segurança nacional e do interesse coletivo frente à livre iniciativa); “Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações” (relação de primazia da proteção ao meio ambiente frente a outros princípios como o da livre iniciativa).
[6] Observe-se que na gradação acima não figuraram os princípios que são como regras, pela seguinte razão: como podem funcionar como regra ou princípio, terão ou o status daquela ou o deste a depender da (in)ocorrência de colisão com princípios contrapostos.
[7] Nesse sentido: MARTINS-COSTA, Judith. A boa fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 315-324; MENKE, Fabiano. A interpretação das cláusulas gerais: a subsunção e a concreção dos conceitos. Revista AJURIS, Porto Alegre, n. 103, 2006, p. 70,74; MARQUES, Cláudia Lima. Boa-fé nos serviços bancários, financeiros, de crédito e securitários e o Código de Defesa do Consumidor: informação, cooperação e renegociação? Revista de Direito do Consumidor, São Paulo, vol. 43/2002, jul-set-2002, p. 215-232.
[8] Intuo que muito dessa confusão entre princípios e cláusulas gerais decorre do fato de estas se constituírem em um aporte teórico – visando a atribuir um maior grau de mobilidade ao intérprete-aplicador frente à lei, ou melhor, visando a corrigir a rigidez do positivismo legal racionalista – que, nos países de tradição romano-germânica, surgiu antes da ampla aceitação da normatividade dos princípios constitucionais, de forma que, com a consagração deste estado de coisas, passou a haver, em boa medida, uma superposição entre princípios e cláusulas gerais. Com efeito, as reflexões sobre as cláusulas gerais se iniciaram na Alemanha, no final da segunda década do século XX, quando reflexões semelhantes já se encontravam assentadas na cultura jurídica norte-americana há não menos de 200 (duzentos) anos, sendo que a partir de disposições da Constituição Americana, como as que veiculavam os princípios inviolabilidade da liberdade individual, a igualdade de todos perante a lei, o devido processo legal etc. Em sentido semelhante: DAWSON, John P. The general clauses, viewed from a distance. Rabels Zeitschrift für ausländisches und internationales Privatrecht/The Rabel Journal of Comparative and International Private Law, 41º ano, 3º caderno, Tübingen: Mohr Siebeck GmbH & Co. Kg, 1977, p. 241.
[9] MARTINS-COSTA, Judith. Op. Cit., 323-324.
[10] Ibidem, p. 323.
[11] “Art. 7° Os direitos previstos neste código não excluem outros decorrentes de tratados ou convenções internacionais de que o Brasil seja signatário, da legislação interna ordinária, de regulamentos expedidos pelas autoridades administrativas competentes, bem como dos que derivem dos princípios gerais do direito, analogia, costumes e equidade”.
[12] MARTINS-COSTA, Judith. Op. Cit., p. 323.
[13] “Art. 805. Quando por vários meios o exequente puder promover a execução, o juiz mandará que se faça pelo modo menos gravoso para o executado”.
[14] “Art. 497. Na ação que tenha por objeto a prestação de fazer ou de não fazer, o juiz, se procedente o pedido, concederá a tutela específica ou determinará providências que assegurem a obtenção de tutela pelo resultado prático equivalente”.
[15] “Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;”.
[16] Em sentido semelhante ao ora defendido são as lições de Josef Esser – defendendo que as cláusulas gerais têm natureza de regra, pois o fato de uma norma ter hipótese de incidência genérica não a torna princípio – e Humberto Ávila, que, distinguindo os princípios das cláusulas gerais, defende que estas se encontram a meio caminho entre as regras e os princípios. Vide: ESSER, Josef. Principio y norma en la elaboración jurisprudencial del derecho privado. Tradução de Eduardo Valentín Fiol. Barcelona: Bosch, 1961, 122-123; ÁVILA, Humberto Bergman. Subsunção e concreção na aplicação do direito. In: MEDEIROS, A. P. Cachapuz (Org.). O ensino jurídico no limiar do novo milênio. Porto Alegre: Edipucrs, 1997, p 434-435.
[17] NEVES, Marcelo. Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais como diferença paradoxal do sistema jurídico. São Paulo: Martins Fontes, 2013, p. 40.
[18] Ibidem, XVIII-XIX.
[19] LARENZ, Karl. Op. Cit., p. 674-675.
[20] Idem.
[21] ESSER, Josef. Op. Cit., p. 66-67.
[22] Ibidem, p. 122-123.
[23] “Art. 139. O juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe:
IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária;”
[24] “Art. 824. A execução por quantia certa realiza-se pela expropriação de bens do executado, ressalvadas as execuções especiais.”
[25] “Art. 831. A penhora deverá recair sobre tantos bens quantos bastem para o pagamento do principal atualizado, dos juros, das custas e dos honorários advocatícios.”
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