ABDPRO #142- A pandemia do COVID-19 e os julgamentos por videoconferência: a realidade brasileira e a galinha do vizinho    

12/08/2020

Coluna ABDPRO

Em 30 de janeiro de 2020, o COVID-19, doença infecciosa causada pelo coronavírus, veio a ser constituída como uma Emergência de Saúde Pública de Importância Internacional pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Com os níveis alarmantes de disseminação e em virtude das suas severas consequências, a partir de 11 de março de 2020, a doença foi considerada uma pandemia[1].

No Brasil, a edição de atos normativos especificamente sobre o COVID-19 se iniciou em 3 de fevereiro de 2020, com a Portaria nº 188, que declarou Emergência em Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN) em decorrência da infecção humana pelo coronavírus. A partir dela, sucederam-se a edição de outras Portarias, Resoluções, Medidas Provisórias e Leis tratando de temas pertinentes à pandemia.

No âmbito do direito processual, a pandemia fez emergir diversas discussões como, por exemplo, o funcionamento dos tribunais, a digitalização dos processos físicos, mas, sobretudo, a realização de audiências e de sessões de julgamento por videoconferência, tema este que tem gerado um sensível ponto de divergência entre os estudiosos e profissionais do Direito.

É importante esclarecer que, no Brasil, ao contrário de outros países latino-americanos[2], a realização de audiências e de sessões de julgamento por videoconferência não surgiu durante a pandemia. A videoconferência não foi pensada de forma rápida enquanto uma alternativa diante da impossibilidade de atendimento presencial dos fóruns. A pandemia pode até ter impulsionado os debates sobre o tema, mas a previsão legal no âmbito do processo civil, consta nos artigos i) 236, §3º; ii) 385, §3º; iii) 453, §1º ; iv) 461, §2º e v) 937, §4º do Código de Processo Civil de 2015, além de, no âmbito do processo penal, haver referência no artigo 185 do Código, sendo, inclusive, realizados depoimentos e sustentações orais por videoconferência, com mais frequência no processo penal do que no processo civil[3].

O tema, porém, não deixa de ser cercado de polêmicas e uma análise do cenário no direito estrangeiro proporciona “uma enorme significação em termos de oxigenação de ideias, podendo se mencionar mesmo que representa uma excitante atividade intelectual[4], mantendo a sua pertinência, porque, mesmo com o plano de retorno gradual às atividades, até o presente momento, ainda não se tem uma data previamente definida de quando as audiências presenciais deverão retornar.

Passa-se, então, a tratar de algumas recentes notícias. Ao abordar estas notícias, busca-se, porém, afastar o mito de supervalorização de modelos estrangeiros, referido por José Carlos Barbosa Moreira[5] através da máxima que “a galinha da vizinha é sempre mais gorda que a minha”, pretendendo-se apenas a formulação de proposições para se obter um rendimento no ordenamento nacional, afinal, como bem preceitua Aluisio Gonçalves de Castro Mendes[6], a “academia pode melhorar quando estuda os países vizinhos ou outros países, para cotejar, trocar experiências e evoluir no próprio Direito”.

No dia 12 de maio de 2020, foi noticiado que o Supremo Tribunal Espanhol anulou uma sentença do ano de 2005[7], que condenou 12 (doze) presos por motim na prisão de Foncadent, ocasionando a morte de recluso. A realização da audiência de forma virtual foi fundamentada em razão da alta periculosidade dos envolvidos e da segurança da população.

Porém, o Supremo Tribunal Espanhol destacou que a audiência por videoconferência não resguardaria as garantias processuais, na medida que : i) os julgamentos não presenciais dificultariam uma correta percepção sobre a prova, sendo relevante a presença física das partes, advogados e do magistrado para análise do movimento corporais dos acusados, que poderiam auxiliar na formação do convencimento motivado do julgador, ii) seria necessário o contato com o advogado para fins de prestação de uma assistência jurídica adequada.

No dia 9 do mês de julho de 2020, em julgamento de relatoria do Magistrado Luís Guillermo Guerrero, por 5 (cinco) votos a 4 (quatro), a Corte Constitucional da Colombia[8] declarou a inconstitucionalidade do artigo 12 do Decreto Presidencial nº 491, de 28 de março de 2020, que permitia ao Poder Público, incluindo o Congresso, a exercer, de forma virtual, suas competências durante a pandemia. O julgamento teve, porém, seus efeitos modulados, não atingindo julgamentos e sessões já proferidos.

Em relação aos Estados Unidos, recentemente foi noticiado que estudo divulgado pelo Projeto de Supervisão da Tecnologia de Vigilância (Surveillance Technology Oversight Project) afirma que julgamentos virtuais, por meio de videoconferência, prejudicam a defesa[9], por: i) dificultarem a privacidade na comunicação entre advogado e cliente, na medida em que mesmo salas virtuais restritas não substituiriam o contato visual entre advogado e cliente das salas de julgamento; ii) não ser possível a percepção de nuances sutis para os julgamentos, como as expressões corporais e as manifestações faciais.

Por outro lado, vários países estão utilizando a videoconferência. A título de exemplo, o Reino Unido editou o Coronavirus Act, em vigor desde 25 de março de 2020, que traz disposições com previsão inicial de um prazo de 2 (dois) anos, que pode ser reduzido ou prorrogado por até seis meses, a critério ministerial[10].

Nas Regras 53 a 56, o ato dispõe sobre o uso da tecnologia de vídeo e de áudio no Judiciário, sendo as que Regras 53 e 54 dispõem especificamente sobre as alterações para viabilizar a tecnologia de vídeo e áudio no processo penal, enquanto as Regras 55 e 56 tratam das alterações para aplicação do procedimento nos tribunais e a Regra 57 prevê a aplicação da medida também na Irlanda do Norte.

Ressalta-se, inclusive, que as medidas não se restringem ao processo penal. No processo civil, a Regra 51.2 das Civil Procedure Rules, trata do uso da tecnologia de vídeo e de áudio no Judiciário, pelo tempo e nos tribunais previstos no Coronavirus Act, bem como sobre a necessidade de avaliação do uso e das práticas relacionadas ao procedimento, foi complementada pela Diretriz Prática de nº 51, com efeito enquanto vigorar o Coronavirus Act, com a possibilidade de gravação da audiência e de disponibilização do link e da gravação ao público, salvo nos casos de segredo de justiça.

As realidades expostas parecem dicotômicas. Através da perspectiva comparada, pretende-se uma melhor compreensão e operacionalização do direito nacional, já que “o melhor modo de conhecer o próprio ordenamento é o de conhecer outros ordenamentos[11]. Porém, procura-se ter a devida cautela na comparação, sob pena de a pesquisa se tornar inútil ou distorcida, utilizando-se, para isso, não apenas a previsão legislativa, mas também o contexto sistemático da própria ordem jurídica estrangeira.

Nesse ponto, não se pode transpor sem qualquer óbice a realidade estrangeira. A utilização da videoconferência nos julgamentos não foi pensada às pressas durante a pandemia, ela já tinha previsão legal e vinha se desenvolvendo. Não se tratou de uma implementação durante a pandemia, como foi na Colômbia. Por mais que elogiada que pareça a repercussão das medidas do Reino Unido, aqui no Brasil também não se precisou implementar novas previsões legislativas para viabilizar a videoconferência.

Ademais, caso haja ferramentas tecnológicas disponíveis, a participação telepresencial pode não ser igual, mas certamente revela-se a melhor opção para que as partes não fiquem aguardando a prestação jurisdicional até o fim da pandemia, para que seja realizado o ato de forma segura através da atividade presencial. A regra não deve ser a de que a prestação jurisdicional cesse durante a pandemia. Pelo contrário, ela precisa encontrar meios de se tornar viável. E, nesse sentido, parece que, tal como os esforços empregados no Reino Unido, o cenário brasileiro precisa empregar os esforços de seus estudiosos para suprimir dificuldades, e não abandonar as ferramentas tecnológicas.

Isso sem contar com o desenvolvimento da oralidade no processo, todo feito durante a transmissão, que pode representar vantagens ante a transmissão e informações. A atenção ao vídeo permite que o juiz possa avaliar a entonação, a emoção e o nervosismo. Não se descarta o problema da exclusão digital enfrentado no país, mas, havendo recursos tecnológicos adequados, as partes e seus advogados podem ficar frente a frente com o juiz através de uma câmera.

A transmissão em tempo real, e não aquela transmitida para ser acessada virtualmente pelos julgadores por um período, com julgadores com câmeras e microfones abertos, pode permitir que o advogado seja ouvido tal como seria em um julgamento presencial – e sem expor em risco a saúde de todos os envolvidos. A própria dinâmica de possibilidade de todos os participantes controlarem seus microfones, permite a interação em contraditório dos sujeitos do processo.

Ademais, no processo civil, a atuação da parte poderia se dar através de seu advogado, nuance capaz de se tornar mais tênue no processo penal, razão pela qual chama  a atenção o julgamento espanhol e a opinião de advogados norte-americanos, especialmente em se tratando de réu preso, quando o próprio ambiente penitenciário poderia dificultar uma boa comunicação, e das audiências de custódia, para aparecerem na crista da polêmica[12]. Nesse ponto, um estudo mais cauteloso da realidade anglo-saxã poderá colaborar para um futuro mais acertado em relação ao processo penal brasileiro.

É importante lembrar que, nesse novo cenário, não se alterou, porém, uma premissa: persistirá a relação do processo com a Constituição, lançando-se o foco nos resultados das experiências processuais comparadas para assegurar a efetividade do acesso à justiça e um processo justo[13]. Ao mesmo tempo que não é desejável que a prestação jurisdicional pare, o ambiente virtual não pode, ser, porém, uma imposição, deve ser utilizado com a devida cautela e enquanto uma ferramenta para assegurar que os direitos sejam tutelados de forma efetiva e célere, com o devido respeito às garantias constitucionais.

Deve haver prévia comunicação de sua utilização, com consulta às partes sobre sua utilização, para que seja possível aferir se sua utilização não prejudicará qualquer um dos envolvidos, em nítida realização da cooperação e da boa-fé consagradas no ordenamento brasileiro. A tecnologia deve ser adotada enquanto uma modalidade mais vantajosa para a solução do litígio, em tempo razoável, mas não quando comprometa direitos fundamentais.

Nesse sentido, destacam Marco Antônio Rodrigues e Thiago Delfino que a “tecnologia se encontra a serviço dos jurisdicionados – os destinatários do serviço público jurisdicional – e de seus direitos fundamentais, não podendo ser meramente um mecanismo de eficiência do Judiciário, já que a eficiência não pode ser um fim em si mesma[14].

O ambiente virtual deve ser utilizado com a devida cautela, em nítida cooperação entre os sujeitos processuais, e enquanto uma ferramenta para assegurar que os direitos sejam tutelados de forma efetiva e célere, com o devido respeito às garantias constitucionais, sem que possa gerar qualquer prejuízo a qualquer um dos envolvidos. Quando puder haver comprometimento, sem que seja possível que os esforços empregados por todos os sujeitos do processo busquem alternativas para alcançar uma segunda melhor opção do que aguardar até que seja possível realizar o ato presencial, o ato deve ficar adiado até que sua realização seja segura e viável a partir do retorno das atividades nos fóruns.

Por sua vez, naturalmente, ainda que se opte pelos meios inteiramente digitais, será possível, em determinado caso, arguir, posteriormente, oportuna necessidade de invalidação, diante da demonstração de efetivo prejuízo porventura ocorrido.

O que ora se afirma e, assim se conclui, é que, em tese, não se enxerga, no Direito Brasileiro, óbice a que os atos processuais em questão se realizem virtualmente, porém, pontualmente, eventual invalidade poderá ser pleiteada, por específico prejuízo, a ser demonstrado pelos meios e instrumentos processuais admissíveis.

 

Notas e Referências

[1] O acompanhamento do Covid-19 pode ser feito na página da Organização Mundial de Saúde: https://www.who.int/emergencies/diseases/novel-coronavirus-2019/events-as-they-happen. Acesso em 27 jul. 2020.

[2] Uma das autoras deste texto já teve a oportunidade de participar do debate no âmbito do Instituto Iberoamericano de Direito Processual. Vídeo disponível em https://www.youtube.com/watch?v=UYmC8ZaJBxs. Acesso em 28 jul. 2020.

[3] RODRIGUES, Marco Antonio; CABRAL, Thiago Dias Delfino. O futuro é virtual? Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/tribuna-da-advocacia-publica/o-futuro-e-virtual-14062020#_ftn4. Acesso em 18 jun. 2020.

[4] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. O Direito Processual Comparado no Mundo Contemporâneo. Revista Eletrônica de Direito Processual. Rio de Janeiro: UERJ, ano 14, volume 21, número 2, mai.-ago. 2020, p. 7.

[5] BARBOSA MOREIRA, José Carlos. O futuro da justiça: Alguns mitos. In: ______. Temas de direito processual: Oitava série. São Paulo: Saraiva, 2004, p. 7.

[6] MENDES, Aluisio Gonçalves de Castro. Desafios e perspectivas da justiça no mundo contemporâneo. Revista Eletrônica de Direito Processual. Rio de Janeiro: UERJ, v. 20, n. 3, set.-dez./2019, p. 30.

[7] Notícia disponível em https://www.elconfidencial.com/espana/2020-05-12/supremo-tumbo-juicios-telematicos-covid_2589715/. Acesso em 27 jul. 2020.

[8] Disponível em https://www.corteconstitucional.gov.co/noticia.php?Corte-declara-constitucional,-en-general,-el-Decreto-Legislativo-491-de--2020,-con-excepci%C3%B3n-del-Art%C3%ADculo-12,-por-vulnerar-el-principio-de-autonom%C3%ADa-de-las-ramas-Legislativa-y-Judicial-del-Poder-P%C3%BAblico-8958. Acesso em 27 jul. 2020.

[9] Notícia disponível em https://www.conjur.com.br/2020-jul-27/julgamento-videoconferencia-prejudica-defesa-estudo. Acesso em 27 jul. 2020.

[11] TARUFFO, Michele. Processo civil comparado: Ensaios. São Paulo: Marcial Pons, 2013, p. 12.

[12] Na 35ª Sessão Virtual Extraordinária do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o Ministro Dias Toffoli destacou que a videoconferência é inadequada aos objetivos das audiências de custódia, apontando a necessidade de atenção redobrada quando o ato envolver depoimento especial de criança e de adolescente. “Audiência de custódia por videoconferência não é audiência de custódia e não se equiparará ao padrão de apresentação imediata de um preso a um juiz, em momento consecutivo a sua prisão, estandarte, por sinal, bem definido por esse próprio Conselho Nacional de Justiça quando fez aplicar em todo o país as disposições do Pacto de São José da Costa Rica”. A notícia está disponível em https://www.cnj.jus.br/cnj-regula-videoconferencia-na-area-penal-com-veto-em-audiencia-de-custodia/#:~:text=%E2%80%9CAudi%C3%AAncia%20de%20cust%C3%B3dia%20por%20videoconfer%C3%AAncia,o%20pa%C3%ADs%20as%20disposi%C3%A7%C3%B5es%20do. Acesso em 27 jul. 2020.

[13] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. Salvador: Juspodivm, 10.ed, 2020, p. 34.

[14] RODRIGUES, Marco Antonio; CABRAL, Thiago Dias Delfino. Op. Cit.. Acesso em 18 jun. 2020.

 

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