Coluna ABDPRO
Como bastante anunciado[1], no último dia 04 de junho, Miguel Otávio Santana da Silva, um menino negro de 5 anos, caiu do 9º andar de um prédio de luxo do Recife. Miguel era filho de Mirtes Renata Souza, que trabalhava como doméstica num dos apartamentos do prédio, e o fato ocorreu enquanto sua mãe tinha saído para passear com o cachorro de sua patroa, Sari Côrte Real. Relata-se que Miguel queria muito ver a mãe, que não estava naquele momento, e correu até o elevador. A dona da casa tentou convencê-lo a sair de lá, mas Miguel não arredou o pé.
Pouco tempo depois, a empregadora de Mirtes desistiu de tirar Miguel do elevador e, pelas imagens do circuito de segurança do prédio, ela também parece apertar um botão de um andar alto do prédio, antes de deixar o menino sozinho no elevador, cuja porta se fecha.
A polícia informou que, no hall no 9º andar, o menino foi até a área onde ficam peças de ar-condicionado, escalou a grade que protege os equipamentos e caiu de uma altura de 35 metros.
O triste episódio ocorreu em meio aos diversos protestos contra o racismo no mundo todo, especialmente no Brasil, onde se noticia diariamente a morte de algum negro – normalmente, na periferia. O caso Miguel despertou questionamentos como: “e se fosse o contrário?” Se fosse o filho da patroa - branco - morto por negligência da empregada doméstica - negra?”.
Sari foi presa em flagrante por homicídio culposo e, por parte das autoridades policiais, teve sua identidade mantida em sigilo, em conformidade com o art. 38 da Lei de Abuso de Autoridade (nº 13.869/19)[2] – sigilo quebrado pela própria Mirtes após ver as imagens do prédio. Pouco tempo depois, pagou fiança de R$ 20.000,00 (vinte mil reais) para responder em liberdade.
Em meu último texto nesta coluna[3], critiquei um famoso jargão no meio jurídico, fomentado desde o início da formação acadêmica, que diz que “Teu dever é lutar pelo Direito, mas se um dia encontrares o Direito em conflito com a Justiça, luta pela Justiça”, de Eduardo Juan Couture.
Na oportunidade, apresentei algumas situações em que “justiça” se apresenta como sentimento, desejo, motivação. Nesse caso, não se deixaria de correr o risco de fazer justiças particulares, na medida em que sentimentos, desejos, motivações são particulares e tendem a variar a depender de quem tenha a última palavra. Por tal razão, o sentimento social de justiça pode nortear o legislador para ajustar as leis conforme os anseios sociais – sempre, por óbvio, em observância ao que dispõe a Constituição Federal.
Enquanto operadores do direito, devemos lutar pelo direito, ainda que em conflito com a justiça, porque, nos termos acima, o direito é a ordem jurídica prévia, aplicável a toda sociedade e construída por agentes eleitos (pelo exercício do voto universal) para tal, enquanto a justiça orbita na nossa subjetividade.
Faço questão de tranquilizar o leitor: o direito não é um sistema rígido e imutável. Embora tenha de prevalecer - quando em conflito com a justiça -, o direito pode sucumbir para o próprio direito. Isto é, tantas vezes a estrita aplicação de um direito fere outro, o qual deve prevalecer naquele caso. Assim sendo, não se trata de lutar pela justiça em detrimento do direito, mas pela melhor aplicação do próprio direito[4].
Volvendo ao caso Miguel: cabe a nós lutar pelo direito ou pela justiça?
De logo, podemos afirmar que a luta contra o racismo demanda aprimoramentos no sistema de justiça que envolvem questões de direito e de justiça. Enquanto ainda está em vigor um Código Penal com forte viés patrimonialista, a sociedade já avança para rechaçar com mais veemência crimes como os que tiram vidas de inocentes – muitos deles, negros – do que os meramente patrimoniais. Aqui, o sentimento de justiça move a sociedade para exigir que a lei acompanhe os avanços sociais.
Por outro lado, ao nos depararmos com protestos de “Justiça por Miguel”, precisamos ter sobriedade para entender onde cabe aflorar os sentimentos de justiça da população, e onde é a boa aplicação do direito que vai nortear a condução adequada do caso. Invariavelmente, #JustiçaPorMiguel é um grito contra o racismo em todos os sentidos, isto é, não se esgotando no racismo da relação patroa-empregada e o tratamento dado ao filho desta, mas toca sensivelmente o racismo institucionalizado no nosso Sistema de Justiça.
Com isso, o cuidado que nós, juristas e, em especial, processualistas, devemos ter é o de não fomentar um punitivismo no caso em tela. Por mais que esteja explícito o racismo na situação em análise, investigação, processamento e julgamento ainda se darão nos termos da legislação existente (aqui, falamos de direito), a fim de que, por mais que a mídia e anseios populares justiceiros se aflorem, o caso não se contamine por posturas populistas por parte das autoridades responsáveis, como ensina Antoine Garapon:
O populismo, com efeito, é uma política que pretende, por instinto e. experiência, encarnar o sentimento profundo e real do povo. Esse contato direto do juiz com a opinião é proveniente, além disso, do aumento de descrédito do político. O juiz mantém o mito de uma verdade que se basta, que não precisa mais da mediação processual[5].
Mas, defender o direito no caso em questão importa, sim, lutar ativamente contra o racismo. É preciso fazer esta distinção: defender as garantias fundamentais da investigada/ré do caso Miguel não importa conivência com o racismo estrutural presente no tecido policial-judiciário, que, não raramente, usurpa garantias processuais do preto/pobre, quando este é o indiciado.
Na medida em que todas as garantias à disposição da investigada foram gozadas em curto espaço de tempo, voltamos a questionar: “e se fosse o contrário?” Se fosse o filho da patroa - branco - morto por negligência da empregada doméstica - negra?” Duas declarações de Mirtes, mãe de Miguel, em entrevista ao NETV (TV Globo/Recife), merecem destaque: “meu rosto estaria estampado” e “eu não teria nem direito a fiança”.
Agora, com o olhar focado no sistema de justiça (da investigação ao julgamento final), cabe-nos perguntar: quando é o contrário, as garantias do réu negro são observadas? Eis o racismo que cabe a nós, operadores do direito, discutir. Exemplifico: diante de um caso em que se estipulou R$ 20.000,00 (vinte mil reais) a título de fiança – que, diga-se de passagem, ainda é valor bem próximo do mínimo legal -, não nos caberia questionar se a forma como se tem aplicado o benefício tem alimentado uma “eugenia” em matéria de liberdade provisória? Como podemos repensar o instituto?[6]
Suficiente lembrar, também, os levantamentos estatísticos que apontam que, em matéria de tráfico de drogas, negros são condenados com mais frequência e quantidades menores, enquanto brancos são mais beneficiados com a desclassificação do crime para “porte de drogas para consumo pessoal”[7].
Cientes dos perigos (e inconstitucionalidade) do linchamento, seja ele físico, social ou virtual, cabe-nos, por fim, questionar: será que se o precedente de “justiceirismo” for aberto com uma pessoa branca e de alta classe social, ele só será repetido em casos semelhantes? Ou servirá de mote para mais diárias abordagens policiais truculentas – senão mortais – direcionadas ao morador das periferias, produção de laudos cadavéricos inconclusivos de vítimas negras[8], manutenção do abismo observado no gozo de garantias fundamentais processuais entre brancos e pretos, desde o inquérito penal até o processo?
Portanto, Justiça por Miguel não é punitivismo ou populismo judicial. Justiça por Miguel é, antes de tudo, reconhecer a presença do que Foucault chamou de “mecanismos mudos de um racismo de Estado”[9]. Quando entendermos isso, perceberemos que #JustiçaPorMiguel é lutar pelas garantias fundamentais processuais diariamente saqueadas dos povos marginalizados; que #JustiçaPorMiguel é fortalecer as Defensorias Públicas e órgãos comprometidos com o acesso à justiça desses povos; que #JustiçaPorMiguel é, também, formar delegados, promotores, juízes e auxiliares da justiça não racistas e comprometidos com o combate ao racismo em suas funções, para que não façam “justiças” que gerem distinções entre investigados ou réus brancos e negros.
Notas e Referências
[1] ROCHA, Sabrina. Mãe de menino que morreu ao cair de prédio diz que patroa, que estava com a criança, é mulher de prefeito: 'Se fosse eu, meu rosto estaria estampado'. Globo.com – Pernambuco. Disponível em: https://g1.globo.com/pe/pernambuco/noticia/2020/06/04/meu-rosto-estaria-estampado-diz-mae-de-menino-que-morreu-ao-cair-de-predio-ao-identificar-primeira-dama-de-tamandare-como-patroa.ghtml. Acesso em 08 jun. 2020.
[2] Art. 38. Antecipar o responsável pelas investigações, por meio de comunicação, inclusive rede social, atribuição de culpa, antes de concluídas as apurações e formalizada a acusação: (Promulgação partes vetadas)
Pena - detenção, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa.
[3] PAULA FILHO, Alexandre de. ABDPro #128 - Entre o direito e a justiça, lute pelo direito! Empório do Direito (online). 06/05/2020. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-128-entre-o-direito-e-a-justica-lute-pelo-direito. Acesso em 08 jun. 2020.
[4] Nosso ordenamento jurídico traz diversas soluções para esses impasses, como a declaração de inconstitucionalidade (permitida, inclusive, aos juízes de primeira instância), declaração de nulidade parcial, resolução por antinomia (a regra de que prevalece a lei superior/específica/mais recente), ou simplesmente, a interpretação da norma conforme a Constituição Federal. Para melhor aprofundamento: CARREIRA, Guilherme Sarri. ABDPRO #119 - Por que continuo tendo medo do STJ. Empório do Direito (online). 04/03/2020. Disponível em https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-119-por-que-continuo-tendo-medo-do-stj. acesso em 15 mar. 2020.
[5] GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia: o guardião das promessas. Tradução: Maria Luiza de Carvalho. Rio de Janeiro: Revan, 1999, p. 66.
[6] Apesar de a indiciada residir em prédio de luxo e ser casada com prefeito de um município de Pernambuco, decidiu a autoridade policial fixar valor muito próximo do mínimo legal (art. 325, CPP), o que viabilizou o seu pagamento imediato. No entanto, quando o réu é pobre, quantas vezes o gozo da garantia não fica inviabilizado pela simples questão socioeconômica? Cumpre frisar, ainda, que a liberdade é regra no processo penal, de modo que a fiança deve ser arbitrada em valor pagável, contudo, que, ao mesmo tempo, exerça pressão para que cumpra com as demais obrigações oriundas da investigação/processamento. Como no presente caso, o valor irrisório não tende a desestimular eventuais descumprimentos.
[7]DOMENICI, Thiago; BARCELOS, Iuri. Negros são os mais condenados por tráfico e com menos drogas apreendidas. Exame (online). 07/05/2019. Disponível em https://exame.com/brasil/negros-sao-mais-condenados-por-trafico-e-com-menos-drogas-em-sao-paulo/; acesso em 08 jun. 2020.
[8] Como denunciado no estudo de caso ilustrado em: FARIAS, Juliana. Fuzil, caneta e carimbo: notas sobre burocracia e tecnologias de Governo. CONFLUÊNCIAS | Revista Interdisciplinar de Sociologia e Direito. Vol. 17, nº 3, 2015, p. 88.
[9] FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France (1975- 1976). São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 98.
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