ABDPRO #124 - ANIMAIS DOMÉSTICOS COMO PARTES EM PROCESSO CIVIL

08/04/2020

Coluna ABDPRO

Recentemente veio à tona a informação, através de artigo escrito no site JOTA[i], de que um grupo de 23 gatos, representados por sua guardiã, havia ajuizado uma ação civil em face de duas construtoras.

Na ação, os 23 autores alegaram que as condutas das construtoras, ao ingressar no local onde se encontravam, os havia privado de alimento, água e espaço, razão pela qual pleiteavam indenizações individuais de R$ 10 mil por danos morais, bem como que fossem as rés condenadas a arcar com as despesas necessárias pelo sustento de cada um dos autores.

Diante do ineditismo da ação, o próprio Poder Judiciário mostrou suas incertezas quanto à legitimidade ativa dos gatos, tendo o primeiro juiz despachado no processo determinando a prévia oitiva das rés, indicando uma possível aceitação.

Entretanto, um segundo magistrado foi mais incisivo em suas dúvidas, ao invocar a inexistência de legislação, no Brasil, que permita que animais sejam partes em um processo, “embora seja correto afirmar que, no Brasil, há leis, normas infralegais e princípios que norteiam os direitos dos animais de existirem com dignidade”, preferindo marcar audiência de mediação para o dia 05 de março.

Com base nas informações trazidas pelo artigo, tendo em vista o não acesso aos autos, passa-se a fazer algumas considerações iniciais com relação à legitimidade ativa de animais em processos civis.

 

Da legitimidade ad causam

Deixando de lado as críticas à teoria de Liebman, inclusive no que concerne à manutenção ou não da categoria das condições da ação no atual CPC[ii], o certo é que o Código, em seu art. 18, deixa claro que somente o sujeito da relação material controvertida pode estar em juízo tanto no polo ativo quanto no passivo, salvo as exceções autorizadas pelo ordenamento jurídico.

As considerações acerca do entendimento de quem poderia ser o sujeito das relações materiais controvertidas será objeto de considerações abaixo.

Entretanto, e considerando apenas esta situação, tem-se que os 23 gatos seriam legítimos para pleitear, em nome próprio, a indenização por danos morais e o pagamento do valor necessário à sua manutenção.

 

Da legitimidade ad processum ou da capacidade processual

A capacidade processual é bem definida nos seguintes termos do art. 70, do CPC: “Toda pessoa que se encontra no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo” (grifo meu).

Ou seja, para o direito processual civil, somente pessoas são capazes de atuar em juízo, ativa ou passivamente, para a defesa de seus direitos. E o conceito de pessoas naturais, definido pelo Código Civil em seus artigos 1º e 2º, não engloba os animais não humanos. Da mesma forma, também não se enquadram os animais como pessoas jurídicas, previstas a partir do art. 40, do mesmo Código.

Porém, pode-se argumentar que o processo civil permite a quem não tem personalidade jurídica a atuação ativa ou passiva em juiz, como se verifica da lista do art. 75, do CPC.  Mais uma vez, contudo, verifica-se a ausência de animais não humanos na referida lista, bem como em leis extravagantes que eventualmente contemplam a legitimidade de entes não personalizados.

No ordenamento jurídico brasileiro atual, animais são coisas móveis[iii], apesar de haver entendimento diverso em outros ordenamentos jurídicos[iv].  Como coisas que são, os animais são suscetíveis de serem objeto de diversas formas de negócios jurídicos, incluindo-se a posse, a propriedade, a compra e  venda.

A distinção que o direito brasileiro confere aos animais em relação a outras coisas móveis diz respeito à proteção ao meio ambiente (fauna e flora), presente na Declaração Universal dos Direitos dos Animais[v] e na Constituição Federal de 1988[vi].  Os animais são dignos de proteção em sua dignidade e qualquer crueldade que possam sofrer deve ser objeto de sanção.

Apesar disso, tem crescido em diversos meios, jurídicos ou não, o entendimento de que animais são mais do que coisas, não podendo ser objeto de aquisição onerosa, por exemplo.

 Já de algum tempo, tem o Poder Judiciário brasileiro se debruçado sobre litígios que envolvem proibição de práticas que sejam consideradas como cruéis aos animais, ainda que derivem de tradições regionais, como a proibição de “rinhas de galo”[vii] ou da “vaquejada”[viii].

Mais além, questões sobre posse e guarda de animais domésticos, após o fim de relações conjugais, também têm sido levadas ao Judiciário.  Em boa parte dessas decisões, têm os magistrados decidido que, apesar de não serem pessoas, o afeto dedicado aos animais pelas partes se equipara àquele dedicado a filhos humanos, razão pela qual pode ser estipulada até mesmo a guarda compartilhada dos animais.

“’Buscando atender os fins sociais, atentando para a própria evolução da sociedade, independentemente do nomen iuris a ser adotado, penso que a resolução deve, realmente, depender da análise do caso concreto, mas será resguardada a ideia de que não se está frente a uma ‘coisa inanimada’, mas sem lhe estender a condição de sujeito de direito. Reconhece-se, assim, um terceiro gênero, em que sempre deverá ser analisada a situação contida nos autos, voltado para a proteção do ser humano e seu vínculo afetivo com o animal’, apontou o relator do recurso especial, ministro Luis Felipe Salomão”[ix] (grifos meus).

Esta paulatina mudança de entendimento do Poder Judiciário, entretanto, não muda a natureza jurídica dos animais, ainda que domésticos, no ordenamento jurídico brasileiro e, consequentemente, sua capacidade para estar em juízo.

Verifica-se, aliás, que as diversas ações anteriormente ajuizadas o eram em nome de, ou em face de, pessoas físicas ou jurídicas, e que tinham por objeto a proteção dos animais, silvestres ou domésticos: a proteção de sua dignidade, de sua integridade física. 

Não houve, ainda, alteração das leis brasileiras para fins de mudança do status jurídico dos animais, para que possam ser considerados sujeitos de direitos e não apenas objetos de proteção jurídica.  Tais alterações vêm sendo propostas para alterar o Código Civil (instituindo uma natureza jurídica diferenciada para enquadramento dos animais como “sujeitos de direitos despersonificados”[x] ou como titulares de “personalidade jurídica sui generis”[xi]) ou a criação de Códigos específicos[xii].

Assim sendo, por não deterem personalidade jurídica ou qualquer status equiparado a tal, não têm os animais capacidade de estarem em juízo como autores ou como réus, ainda que representados por uma pessoa física ou jurídica.

Portanto, não há que se confundir as posições dos animais em um processo. Não há dúvidas que são – e sempre devem ser - objeto de proteção contra maus tratos e crueldade em geral, que devem ser tratados com dignidade, que têm direito “a alimentação, a integridade física, a liberdade, dentre outros necessários à sobrevivência digna”.  Mas daí não se pode inferir que isto os coloca no mesmo patamar jurídico que as pessoas físicas e/ou jurídicas que são responsáveis por lhes fazer valer tais direitos.

Para que seu status processual possa ser alterado, há, inicialmente, necessidade de alteração de sua natureza jurídica no Código Civil (com a sua equiparação a pessoas) ou a criação de alguma lei específica para tal.  Contudo, e este tema é por demais amplo para ser discutido nos limites deste artigo, há que se ter bastante cuidado com relação ao tema.  Isto porque o conceito de animais engloba uma fauna imensa e diversa, e mesmo definir o que são animais domésticos pode levar a eventuais exageros[xiii].

Não se nega, em momento algum, que os animais são seres sencientes[xiv] e, inclusive, inteligentes em um nível que pode até mesmo ser superior aos seres humanos. O que se considera neste artigo, entretanto, são unicamente os aspectos processuais.

O que se pode afirmar, diante da Constituição Federal e das leis infraconstitucionais em vigor, é que animais não humanos não detêm capacidade para estar em juízo como autores ou réus, podendo, no máximo, ser objeto de proteção jurídica em processos movidos por e em face de pessoas físicas ou jurídicas. 

 

Notas e Referências

[i] RIBAS, Mariana. “Gatos podem ajuizar uma ação?”,  in https://www.jota.info/paywall?redirect_to=//www.jota.info/justica/gatos-podem-ajuizar-uma-acao-28022020.

[ii] Fredie Didier Jr é um dos autores que entende que, apesar de ainda persistirem, no ordenamento processual brasileiro, os institutos da legitimidade e do interesse processual (arts. 17 e 18, do CPC), a não utilização da tradicional expressão “condições da ação” (ver, por exemplo, arts. 337, inc. XI e 485, inc. VI, do CPC), levaria à conclusão de que o legislado optou por considerá-los como pressupostos processuais ou, pelo menos, como categorias à parte (“Será o fim da categoria ‘condição da ação’? Um elogio ao projeto do novo CPC”, in http://www.frediedidier.com.br/wp-content/uploads/2012/06/Condi%C3%A7%C3%B5es-da-a%C3%A7%C3%A3o-e-o-projeto-de-novo-CPC.pdf).

[iii] Conforme art. 82, do Código Civil.

[iv] Em países como Alemanha, Áustria, França, Países Baixos, Portugal e Suíça as leis variam entre considerar os animais em uma categoria intermediária entre coisas e pessoas ou como “seres vivos dotados de personalidade”. (GUIMARÃES, Taís Precoma. “Animais de estimação: coisas ou integrantes da família”, in

https://www.migalhas.com.br/depeso/305759/animais-de-estimacao-coisas-ou-integrantes-da-familia).

[v] Arts. 2º e 5º.

[vi] Art. 225, § 1º, inc. VII.

[vii] STF, ADI 2.514/SC, rel. Min. Eros Grau, Tribunal Pleno, j. 29 jun. 2005, DJ de 9 dez. 2005.

[viii] STF, ADI 4.983/CE, rel. Min. Marco Aurélio Melo, Tribunal Pleno, j. 6 out. 2016, DJ de 17 out. 2016.

[ix] STJ garante direito de ex-companheiro visitar animal de estimação após dissolução da união estável”, in http://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2018/2018-06-19_20-21_STJ-garante-direito-de-excompanheiro-visitar-animal-de-estimacao-apos-dissolucao-da-uniao-estavel.aspx

[x] Art. 3º, do Projeto de Lei 6.799/2013, de iniciativa do deputado federal Ricardo Izar.

[xi] Projeto de Lei 7.991/2014, de autoria do deputado Eliseu Padilha, cujo objetivo é acrescentar o artigo 2º-A ao Código Civil.

[xii] Como o Projeto de lei 215/2007, de iniciativa do deputado Ricardo Tripoli, que visa à criação de um Código Federal de Bem-Estar Animal,  o Projeto de Lei 3.676/2012, de autoria do deputado Eliseu Padilha, que propõe a criação de um Estatuto dos Animais, ou o Projeto de Lei 650/2015, de autoria da senadora Gleisi Hoffmann, que propôs a criação de um Código de Proteção e Defesa do Bem-Estar dos Animais.

[xiii] A discussão deve ser profunda e bem detalhada, uma vez que permitir a quaisquer animais (domésticos, domesticados ou silvestres) ter capacidade civil, poderia levar a que insetos ou mesmo roedores, como os ratos de esgoto, por exemplo, possam ter capacidade para estar em juízo como autores.

[xiv]  “Cientistas brasileiros afirmam que os animais têm sentimentos”, in https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/ciencia-e-saude/2014/09/21/interna_ciencia_saude,448119/cientistas-brasileiros-afirmam-que-os-animais-tem-sentimentos.shtml.

 

Imagem Ilustrativa do Post: Lady Justice // Foto de: jessica45 // Sem alterações

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