Coluna ABDPRO
É visível, por todos os ângulos que se queira examinar, o desconforto generalizado causado por decisões judiciais que são proferidas sem qualquer tipo de fundamentação, sem qualquer justificativa racional das funções decorrentes deste ato (endoprocessual e extraprocessual). O desconforto é reflexo, acima de tudo, de uma imensa falta de compromisso profissional daqueles que são responsáveis pela elaboração dos referidos atos processuais, mais ainda, é reflexo de um desrespeito para com os jurisdicionados, seja sob qual ótica queiramos administrar este indispensável requisito do ato decisório.
Abre-se mão, diante de tal comportamento, da necessária compreensão de que só se pode falar de “processo” em nível constitucional, de que toda linguagem sobre o “processo” deve ser, por razões óbvias, constitucional, de que “processo” é, acima de tudo, instituição de garantia que serve, justamente, aos jurisdicionados, optando-se, na via reversa, por um modelo impregnado de verdadeiros compilados decisórios, tudo em razão de uma simulada operatividade que não satisfaz a nada e a ninguém.
A propósito, já foi escrito nesta coluna, por várias vezes, e com imenso acerto, que “processo” tem natureza pública (não em decorrência da ideia disseminada – incorretamente – de que estamos diante de efetivo “instrumento” do Estado-juiz, mas para que, quando da utilização do “processo”, o mister estatal seja exercido de forma legitimada) e é uma garantia contrajurisdicional do cidadão com a finalidade de protegê-lo dos abusos, dos desacertos tão comuns que decorrem do exercício do poder, mas, mesmo assim, o Estado-juiz faz ouvidos moucos quando instado a se manifestar de forma correta em suas decisões. Eduardo José da Fonseca Costa, há tempos, e com imensa propriedade, consignou que:
“O instituto é de direito público não porque sirva ao Estado-juiz, mas justamente porque o desserve quando age com arbítrio. É público não porque atenda ao interesse público, mas porque instaura uma relação jurídica garantística entre os cidadãos-jurisdicionados e o Estado-jurisdição. Mete-se entre o juiz e as partes para eliminar, neutralizar ou mitigar eventuais erros, excessos e desvios judiciais. Antepara os cidadãos do Estado. Protege-os dele. Impede que se rebaixem a súditos. Por isso, JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA é impreciso quando chama o garantismo processual de «neoprivatismo» (v. O neoprivatismo no processo civil. RePro, v. 30, n. 122, p. 9-21, abr. 2005). O termo obscurece, porquanto indevidamente associa o garantismo ao ordo iudiciorum privatorum romano e, em consequência, a algo ruínico e démodé; por exclusão, associa o instrumentalismo processual – apelidado de «publicismo» – a la dernière mode à Paris, à coqueluche do momento. Tudo como se o mundo «evoluísse» do privado ao público. Como se o Estado fosse a causa finalis da história. É o próprio HEGEL proclamando que «Der Staat ist göttlicher Wille als gegenwärtiger, sich zur wirklichen Gestalt und Organisation einer Welt entfaltender Geist» (Grundlinien der Philosophie des Rechts. § 270) (tradução livre: «O Estado é a vontade divina como espírito presente ou atual que se desenvolve na formação e organização de um mundo»)”. (Breves meditações sobre o devido processo legal. Revista eletrônica Empório do Direito. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-15-breves-meditacoes-sobre-o-devido-processo-legal. Acessado em 13.03.2020).
Ora, se é através do “processo” que se confere limites e racionalidade ao exercício do poder estatal, como conceber a ideia de que o fundamento de determinadas decisões, e aqui já adentrando no exame do objeto do presente texto, possa recair, por exemplo, na simplória reprodução de uma eventual manifestação ministerial anteriormente inserida naquele feito que se apresenta para julgamento?
A fundamentação “per relationem” (ou “ad relationem”, na expressão de Antônio Magalhães Gomes Filho, em “A motivação das decisões penais”, São Paulo, RT, 2001, p. 199), por mais que se tente interpretar de forma diversa, constitui-se em técnica utilizada comumente para reduzir o “empenho justificativo” que se espera do órgão jurisdicional, tal qual uma tentativa de resposta para apaziguar o que não deve ser apaziguado, mas, sim, devida e corretamente justificado. Não pactua, portanto, de forma alguma, com os ideais democráticos e apresenta-se como verdadeiro desserviço.
Estamos, assim, ante arremedos decisórios, de artifícios de fundamentação (quiçá válvulas de escape) que pululam aos nossos olhos e que, sem qualquer cerimônia, viram as costas para o dever constitucional de motivação das decisões judiciais. A propósito, exemplos diários, que alimentam o que aqui se discorre, não faltam, tanto na esfera cível quanto na esfera penal, seja no Supremo Tribunal Federal, seja no Superior Tribunal de Justiça, notadamente, evidenciando uma ausência de preocupação para com as consequências (nefastas) que advém de cada um dos respectivos julgados. Apenas a título de confirmação, seguem trechos de ementas de recentes julgados oriundos do Superior Tribunal de Justiça e que respaldam, sem qualquer restrição, a motivação “per relationem”:
“O Superior Tribunal de Justiça possui firme entendimento de ser válida a utilização da técnica da fundamentação per relationem, em que o magistrado emprega trechos de decisão anterior ou de parecer ministerial como razão de decidir, desde que a matéria tenha sido abordada pelo órgão julgador, com a menção a argumentos próprios, como ocorreu no caso em análise” (STJ, AgInt no AREsp 1.420.569/RJ, rel. Min. Og Fernandes, Segunda Turma, j. 11.2.2020, p. 14.2.2020).
“A fundamentação per relationem é válida, inexiste óbice à utilização de elementos contidos em manifestações ministeriais ou em sentença, não havendo que se falar em violação aos princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal pelo emprego da técnica. Precedentes” (STJ, AgRg no REsp 1.848.688/PR, rel. Min. Leopoldo de Arruda Raposo (Desembargador convocado do TJ/PE), Quinta Turma, j. 11.2.2020, p. 18.2.2020).
Não fossem somente os vários acórdãos emanados de ambos os tribunais superiores, o tema, no Superior Tribunal de Justiça, ainda foi fixado, na esfera penal, na tese sob nº 18, cuja redação é a seguinte: “A utilização da técnica de motivação per relationem não enseja a nulidade do ato decisório, desde que o julgador se reporte a outra decisão ou manifestação dos autos e as adote como razão de decidir”.
A fundamentação de todos os atos decisórios, já foi mencionado, é garantia constitucional estabelecida, de forma expressa, no art. 93, IX, sendo, também, imprescindível para uma adequada avaliação do raciocínio que é desenvolvido com lastro no exame de todo o conjunto probatório. É somente através da fundamentação que podemos aferir, avaliar, se fora observado o devido processo legal, pois estamos em contato, é certo, com um elemento essencial cuja eficácia e cuja observância legitimam o poder contido no ato decisório, até porque, insista-se, a referida legitimação se dá somente pela estrita observância das regras do devido processo.
Justificar o ato decisório não é busca que se faz em torno de uma eventual erudição do órgão jurisdicional, mas, sim, é busca que se faz em torno da explicação dos reais motivos que levaram à conclusão então firmada. Aliás, jurisprudência clássica já existe, há tempos, no sentido de que “Constituição não exige que a decisão seja extensamente fundamentada. O que se exige é que o juiz ou tribunal dê as razões de seu convencimento” (2ª Turma, rel. min. Carlos Velloso, AI 162.089-8-DF, DJU 15/3/1996, p. 7.209). O que não se deve, sob hipótese alguma, é querer chancelar a fundamentação “per relationem”, como se fosse a solução para todas as panaceias.
Por outro lado, o que estabelece o nosso Código de Processo Civil? Não é possível vislumbrar, observando as alterações propostas pelo legislador, aquilo que chamamos de fundamentação “exauriente”? É certo que sim.
Pois bem. Prova concreta e efetiva de que há uma verdadeira mutação no sistema de fundamentação advém do fato de o legislador, em termos infraconstitucionais, ter optado por repetir, em seu art. 11, basicamente, o teor do comando constitucional, ao passo que, no § 1º, do art. 489, na mesma linha de entendimento, disciplina, em 6 (seis) incisos, situações em que não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, o que revela uma patente intenção de se exigir um conteúdo decisório mais elaborado e que tenha a capacidade de revelar um serviço judicial eficiente e de qualidade. Mas não é só. O mesmo texto infraconstitucional, ainda, considera omissa a decisão que “deixe de se manifestar sobre tese firmada em julgamento de casos repetitivos ou em incidente de assunção de competência aplicável ao caso sob julgamento”, sendo cabível o recurso de embargos de declaração (inciso I, do parágrafo único, do art. 1.022), apontando, também, que, caso o juiz incorra em qualquer das situações descritas no referido § 1º, do art. 489, a decisão será igualmente considerada omissa e caberá, da mesma forma, o recurso de embargos de declaração (inciso II, do parágrafo único, do art. 1.022).
Como se percebe, e em razão do até aqui apresentado, resta nítido que o sistema de fundamentação decisória se apresenta como “exauriente”. E se assim o é, a incompatibilidade com as decisões “per relationem” fica clarificada. Neste sentido, aliás, é o próprio Código de Processo Civil que, em seu art. 1.021, § 3º, dispõe ser vedado ao relator limitar-se à reprodução dos fundamentos da decisão agravada para julgar improcedente o agravo interno, numa clara corroboração do que se que aqui se expõe.
Sim, a fundamentação discricionária, solipsista, subjetiva, que se apropria de razões constatadas em ato jurídico diverso, sem qualquer respeito ao comando constitucional e assentada em posições pré-concebidas, se revela absolutamente incoerente com a essência do Estado Democrático de Direito e com o devido “processo”, bem como com os princípios do contraditório substancial, da boa-fé objetiva e da cooperação, todos expressamente consagrados pelo texto de 2015.
“Mantenho a decisão pelos seus próprios fundamentos” ou “As alegações do autor merecem prosperar, e, amparado no parecer do Ministério Público retratado a fls. X, julgo procedente o pedido inicial para...” são, com a devida vênia, alguns exemplos de fundamentação por remissão, por referência, inquestionavelmente inaplicáveis quando nos deparamos com a alteração legislativa proposta pelo legislador de 2015.
Júlio César Rossi, escrevendo a respeito da presente temática, muito bem pondera, como sempre o faz, que: “Em um Estado Democrático de Direito, onde o monopólio da produção e aplicação do Direito cabem às instituições constitucionalmente criadas, ao Poder Judiciário é ínsito, em última análise, o dever não só de prestar tutela jurisdicional, sob pena de descambar para a proibição do “non liquet”, mas também prestá-la de forma adequada, ou seja, oferecê-la por meio da irrenunciável, arreliada, imaleável, motivação de inconfundível conteúdo eminentemente jurídico. Isso é um dever fundamental ao jurisdicionado” (A (des)motivação per relationem: uma espécie non liquet na era do processo tecnocrático Revista eletrônica Empório do Direito. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/abdpro-88-a-des-motivacao-per-relationem-uma-especie-non-liquet-na-era-do-processo-tecnocratico. Acessado em 13.03.2020).
Evidentemente, o que se quer deixar claro, nestas singelas linhas, é que não é sequer razoável, aos órgãos jurisdicionais, simplesmente, a transcrição da decisão recorrida, situação a refletir uma completa dissociação do sistema de fundamentação “exauriente” dos atos decisórios. Se a opção do julgador for pelo aproveitamento de trechos que considere relevantes, e que estejam devidamente justificados, que sejam demonstrados os motivos pelos quais a decisão é considerada válida e correta, a fim de justificar a manutenção do seu conteúdo. A mera transcrição de um determinado conteúdo decisório, por si, faz com que a dialeticidade recursal se perca, faz com que a insurgência então apresentada não tenha qualquer finalidade, seja inútil. Não é isso que se quer, que busca o jurisdicionado.
Se vivemos num país que, ao menos em sede constitucional, é considerado como Estado de Direito, é fato que, desde a sua origem, repudia-se, de um lado, todo e qualquer despotismo, havendo que se privilegiar, por outro lado, e acima de tudo, a razão. É neste sentido que o “processo” judicial deve criar condições para que sejam perfectibilizadas todas as garantias constitucionais, inclusive a da fundamentação das decisões judiciais.
Alfredo Araújo Lopes da Costa, de forma singular, escreveu, na primeira metade do século passado, que “não é motivação, mas desta simples aparência, dizer o tribunal que confirma a decisão de primeira instância ‘por ser conforme ao direito e à prova dos autos’. É um círculo vicioso, um idem per idem. É implícito que a confirmação de uma sentença declara-a certa e justa, de acordo com a lei e a prova. Então não carecia o tribunal vir dizê-lo. O que é necessário é externar porque ela não está errada” (Direito processual civil brasileiro, v. 3, Ed. Forense, 1959, p. 296).
Destarte, seja qual for o argumento que se queira adotar para justificar a fundamentação “per relationem”, privilegiando-se, dentre outros, a economia processual e a razoável duração do processo (não olvidando que a Lei dos Juizados Especiais Cíveis, 9.099/95, a incorpora em seu art. 46, parte final), tem-se que o maior equívoco daí advindo é a não legitimação do exercício da função jurisdicional, comprometendo, sobremaneira, o resultado final e a expectativa dos demais sujeitos processuais, diria, da própria sociedade. Se, em diversos momentos da história, a fundamentação foi erigida ao papel de garantidora de uma maior racionalidade e transparência das atividades estatais, ter sua previsão em textos constitucionais, logo após a queda de sistemas ditatoriais que então imperavam, é um manifesto sinal de desenvolvimento das sociedades democráticas como um todo.
O dever jurídico de motivação dos atos decisórios é decorrência do mencionado desenvolvimento histórico-social, é imposição que, naturalmente, objetiva o afastamento do arbítrio judicial (situação, como já destacada, totalmente afrontadora dos princípios que estruturam o Estado Democrático de Direito) e que já prevalecia, até mesmo, em períodos anteriores à própria configuração política do Brasil como Estado independente (as Ordenações Filipinas (promulgadas por Felipe II da Espanha e I de Portugal, em 1.603), em seu Livro III, Título LXVI, parágrafo 7º, primeira parte, assentavam: “E para as partes saberem se lhes convém apelar, ou aggravar das sentenças diffinitivas, ou vir com embargos a ellas, e os Juízes da mór alçada entenderem melhor os fundamentos, por que os Juízes inferiores se movem a condenar, ou absolver, mandamos que todos nossos Desembargadroes, e quaisquer outros Julgadores, ora sejam Letrados, ora não o sejam, declarem specificamente em suas sentenças diffinitivas, assim na primeira instancia, como no caso da appellação, ou agravo ou revista, as causas, em que se fundaram a condenar, ou absolver, ou a confirmar, ou revogar”).
O provimento emanado por intermédio do exercício processual da função jurisdicional tem o condão de findar a controvérsia litigiosa de forma imperativa (no sentido de acatamento à decisão porque construída discursiva e democraticamente pelas partes). Esta é uma situação que poderá gerar, junto aos afetados pelo conteúdo decisório, e como corolário da democracia, insatisfações que serão (ou não) inarredavelmente questionadas em sede recursal.
A observância do devido processo, no tramitar da demanda, se revela, pois, como imprescindível quando da suscitação de tal inconformismo, afastando, por completo, as inferências que amparam, que dão suporte à fundamentação “per relationem”.
Mais ainda, é somente a partir da fundamentação (racional) dos atos decisórios que a atividade jurisdicional, como um todo, restará legitimada no Estado Democrático de Direito, possibilitando transparência, publicidade e a devida fiscalização que poderá ser exercida pelo povo numa verdadeira “prestação de contas” da atividade estatal. José Carlos Barbosa Moreira resume o caráter justificador de que as decisões judiciais sejam fundamentadas: “No Estado de Direito, todos os poderes sujeitam-se à lei. Qualquer intromissão na esfera jurídica das pessoas deve, por isso mesmo, justificar-se, o que caracteriza o Estado de Direito como ‘rechtsfertingender Staat’, como ‘Estado que se justifica’. Distingue a doutrina dois aspectos complementares dessa ‘justificação’: o material e o formal. A intromissão é materialmente justificada, quando para ela existe fundamento; é formalmente justificada, quando se expõe, se declara, se demonstra o fundamento” (A motivação das decisões judiciais como garantia inerente ao Estado de Direito. Temas de Direito Processual (segunda série). São Paulo: Saraiva, 1980, p. 89).
O controle dos atos decisórios emanados do órgão judicial funda-se, então, em comportamento ínsito à existência democrática, motivo pelo qual justifica-se que a pertinente motivação seja destacada, como de fato o foi, como garantia constitucional.
O ideal formato de construção de uma decisão judicial há que se amoldar ao que reza o ordenamento através da sua base principiológica, pois sua legitimidade será aperfeiçoada, também, a partir do instante em que a motivação a ela inerente não esteja calcada em critérios subjetivos, pessoais, de sentimentos vagos de justiça, em critérios de referência, mas, sim, quando resultar da atividade procedimental que tenha sido desenvolvida mediante a apreciação de todas as questões discutidas e dos argumentos produzidos em contraditório pelos sujeitos processuais, até porque é sabido que estes últimos é que serão os afetados pelos respectivos efeitos oriundos do provimento.
É preciso que se elimine, definitivamente, a ideia de provimento como ato de inteligência, de superposição, de volição, que advenha da sensibilidade magnânima de quem julga, sob pena de manutenção do “status quo” do sistema jurídico e de conformação com o raciocínio de que não se faz necessário restaurar ou reconstruir o conceito de provimento em si, deslegitimando a própria essência do ato de decidir.
Em suma, é preciso sempre recordar que o alcance que deve ser conferido à motivação dos provimentos se estende, necessariamente, pelo exercício da jurisdição através do devido processo constitucional e, também, pela compreensão de que o procedimento deve se desenvolver de forma compartilhada entre os sujeitos processuais, tudo a justificar a atuação do órgão jurisdicional.
A fundamentação “per relationem”, com a devida vênia, passa muito longe do ambiente democrático, sequer legitima a atuação estatal.
Imagem Ilustrativa do Post: Figures of Justice // Foto de: Scott Robinson // Sem alterações
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