Para o renomado autor, situação jurídica é a unidade básica do fenômeno jurídico que expressa todas as formas que o revelam e o configuram concretamente, nela inseridos os sujeitos ativo e passivo, objetivamente existentes, desempenhantes do papel prescrito pelo ordenamento, cuja posição que assumem é legitimada por título conferido pela norma que lhes permite o exercício da ação jurídica típica que o direito lhes reserva. Nesse mister, ensina o mestre, tanto o polo ativo titula um direito-poder, quanto o polo passivo um direito-dever.
A intersubjetividade, portanto, se trava com o corpo do objeto definido normativamente: relações de contato enquanto projeções das que lhes são atributivas, com reserva clara à ideia de sujeito ativo/passivo corresponder a uma vantagem/desvantagem. O sujeito passivo pode agir, inclusive contra a vontade do credor, para resguardar o vínculo. Eles têm a titularidade ativa dos poderes ações e exceções próprias. Devedor e credor são perfis intersubjetivos dos sujeitos frente ao mesmo objeto. Direitos e deveres são vistos como medidas de posições assumidas.
Citando Pontes de Miranda[3] sobre normas jurídicas pré-juridicizantes, juridicizantes e desjuridicizantes, passa a estudar as primeiras, cuja situação jurídica criada tem por fim conferir previamente “ao sujeito nela posicionado” uma qualidade (efeito jurídico), que é pressuposto de sua legitimação “em outras situações jurídicas” (a personalidade, a exemplo). Se isso é verdade, conclui que aquela situação jurídica “isola o sujeito enquanto o refere ao objeto”, este, que é exatamente aquela qualificação, “realiza-se e se satisfaz com a só presença do sujeito assim qualificado”.
O sujeito posicionado, então, não se relaciona com nenhum outro para chegar ao objeto, tampouco esse relacionamento teria qualquer relevo para a eficácia imposta pela norma qualificante. Não há, dessa forma, aí, intersubjetividade, menos ainda entre sujeito e objeto, mas referência, uma relação semiotizada. O que faz com que o objeto acesse o sujeito (posicionado na respectiva situação jurídica, que a chamou uniposicional) por mediação normativa.
Torquato traz à tona uma das maiores dificuldades para muitos juristas, a de vislumbrar uma relação jurídica sem intersubjetividade, ou sujeito universal, o que é possível com o método semiótico, presente nas entrelinhas de seu livro: tais situações jurídicas uniposicionais são qualificações que se impõem erga omnes, de modo algum seriam relações entre um e todos, uma coletividade, indeterminadamente, ilidindo qualquer mestria desse sujeito. Daí que a norma-situacional significa plenamente em função da concretude do seu objeto; inserindo-o, na situação jurídica, o sujeito também concreto, agora posicionado: a norma faz significar o fato, o sujeito e a coisa como “pontos situados no problema” perante outros.
A “existência pensada” da norma é que a diferencia da norma-situacional. Essas duas dimensões não se excluem, complementam-se. Sendo o sujeito “A”, o objeto “O” e a linha vertical, que os une, a “posição “, tem-se abaixo uma situação jurídica uniposicional:
Figura 1. Situação jurídica uniposicional: as concernentes à personalidade, capacidade, estados de família, direitos potestativos, reais; situações individualizantes do sujeito, não extensivas a outro. Tais que elas podem vir a constituir título suficiente (ou não) para posicionar o sujeito em situações diversas.
Ao apontar a norma a posição de mais de um sujeito, “A” (que detém poder-direito; a quem o objeto deve ser deferido) e “B” (detentor de poder-dever; poder-função; sujeito constringido a realizar a ação atributiva esperada; dever jurídico; obrigação) perante o mesmo objeto “O”, cria, por consequência, intersubjetividade entre eles, que os coordena para a consecução do objeto, posicionando-os opositivamente em relação a ele:
Figura 2. Na primeira imagem, a norma destaca a quem deve ser deferido o objeto; mas para que isso ocorra é preciso que B seja avocado, dele depende a atribuição normativa para aquela consecução, que faz resultar a relação intersubjetiva (linha horizontal, segunda imagem), consolidando a situação jurídica relacional (terceira imagem), de ocorrência mais ampla no mundo do direito. Observar que essa separação de imagem, de tessitura lógico-semiótica, é um momento da axiomatização no movimento lógico da significação. “A norma mete o sujeito jurídico dentro de uma relação intersubjetiva, mesmo quando o fato sócio-jurídico não seja de si mesmo relacional”: o herdeiro-posicionado com outro sujeito no lugar do de cujus; seja no fato-morte, ou na ocupação da res nullius. A primeira em separado (ou contida na terceira) e a última imagem são os elementos mínimos que comporiam todo e qualquer fenômeno jurídico: situação jurídica uniposicinal e situação jurídica relacional, respectivamente.
Se a norma é mediadora da relação semiótica sujeito-objeto, então é um interpretante, responsável por levar este àquele, que se posiciona no mundo jurídico; isso, de qualquer forma, ocorre com a transformação do objeto, que é semiótico, por juridicização, de modo que seu espaço de permanência é a situação jurídica, fazendo-a seu representamen (Peirce[4]) ou significante (Sausssure[5]), em um processo fenomênico semiótico (por conta da norma), lógico (por sua incidência) e jurídico (pela natureza do fenômeno que expressa).
Torquato percebeu a existência de uma função sígnica[6] entre “sujeito posicionado”, “norma” e “objeto”, estes podem ser reduzidos a três categorias semióticas: representamen (situação jurídica), norma jurídica (interpretante) e objeto (condutas e eventos); tanto sua norma-pensada (plano lógico), quanto sua norma-situacional (plano concreto) estabelecem uma relação diádica com a situação jurídica ou triádica com o seu objeto por uma função sígnica.
Pode-se representar uma função sígnica como a relação entre expressão (significante, representamen) e conteúdo (significado, interpretante), formalmente, ERC[7], que indica o sentido, uma semiótica, um signo. Uma metassemiótica, ilustrativamente, seria ER(ERC)[8]. Sem deslembrar que o texto pode ser tomado como expressão e o discurso como seu conteúdo; a estratos textuais seguem níveis de discursos et coetera.
Em breve parêntese, de outro mestre pernambucano, Lourival Vilanova[9], amigo e contemporâneo de Torquato na Faculdade de Direito do Recife, é-lhe corriqueiro reportar-se formalmente à relação jurídica usando a expressão S’RS’’, sendo S’ e S’’ sujeitos de direito numa R-relação. O mesmo acontece com a fórmula lógica da norma dos sancionistas tradicionais, D(A→B) ⱱ (não-B→C), também expressa como D((F→R’ (S’, S’’) ⱱ (não-F→R’’ (S’, S’’)) para a representação do direito material; e ((F→R’ (S’, S’’) ⱱ (não-F→R’’ (S’, S’’, S’’’)) para o direito processual, sendo S’’’ o sujeito judicante e F (fato jurídico).
Sustentam os que a defendem que além de “D” (modalizador externo genérico, que tem como submodais O, obrigatório; P, permitido; V, proibido), deve-se ainda considerar outro modal, agora relacional interno, também genérico, “R”, para o qual há a mesma tríplice submodalidade, contido na endonorma e na perinorma, que vai configurar as relações jurídicas internalizadas, F→R’ (S’, S’’), dando caráter de validade à proposição descritiva e à prescritiva[10].
No campo de uma semiótica peirciana, o interpretante assegura a validade da relação triádica, não é necessariamente um intérprete; no da lógica apofântica, (A→B), como expressão dessa lógica, representa uma relação de verdade/falsidade, porém, se se colocar o modalizador “D”, passa a caracterizar uma expressão de validade deôntica: D (A→B). O fenômeno jurídico acontece nessa dupla dimensão lógico-semiótica. Na estrutura semiótica da norma[11], existe o nível da linguagem-objeto mantido por aquela relação triádica, que a valida; naquela estrutura, também há o da metalinguagem, regida por uma lógica alética. Quando essa relação de validade triádica do texto sofre disfunção (ou se rompe), a metalinguagem ocupa o espaço da linguagem-objeto, ocorrendo o erro judiciário; se este tem seus efeitos irremovíveis, a metalinguagem é validada como linguagem-objeto no sistema.
Torquato levanta forte crítica ao “idealismo filosófico que faz do direito pura relação intersubjetiva”, secundarizando ou desprezando o objeto. O direito, entende o professor, ao adequar homem a homem o faz “acerca de atos humanos exteriores e de coisas”, logo “uma situação existencial homem-mundo”, mais concreta/situacional do que relacional; nessa linha, o agir humano é conduzido pelo critério de finalidade, e não pelo de verdade, não havendo o justo ideal no direito, nem toma justo por idealização, tampouco firma que não haja uma verdade propositalmente jurídica: aquele, assim, não há idealizado, eis que problematizado/circunstanciado no homem, em seus atos e nas coisas que eles envolvem. Se a sociedade manifesta ineludivelmente sua força normativa, pessoas tornam-se sujeitos posicionados e seus interesses equacionados em objetos: “sujeito e objeto de construção normativa (...), relação atributiva (...), normo-dispositiva”.
Essas posições (e as decorrentes relações) são conferidas por títulos jurídicos que as legitimam, instituídos pelas normas: para alguém ser herdeiro há de, antes, ser parente; nascer com vida antecede a personalidade jurídica e assim sucessivamente (não sendo questão de mera prova, nem condição secundária eficacial, “mas do problema central da existência da situação jurídica invocada”), ou seja, uma situação jurídica sempre precede e investe o sujeito que se posiciona e se situa no mundo jurídico com o objeto, ou com este e ainda perante outros sujeitos.
Existe, pois, a pessoa de direito, coincidente com o sujeito posicionado, que ocorre na figura 1, gerando a situação jurídica uniposicional de força erga omnes, posição que lhe foi conferida no título dado pela norma situacional ao nascer com vida; o fato-causa (suporte fático) nascer com vida permite-lhe entrar em um estado de personalidade jurídica, fazendo-o um sujeito posicionado com o objeto personalidade jurídica; aqui não há intersubjetividade, nem sujeito universal noutra posição; a imagem 3 da figura 2 revela uma situação jurídica relacional, vês que há dois sujeitos posicionados perante o mesmo objeto por conta, por exemplo, de fato jurídico antecedente.
A posição, eventualmente, pode ser título no confronto de outra situação (pré-titularidade), mas a causa ou razão que fez “A” posicionar-se perante seu objeto, assim como aquela que posicionou “A” e “B” também perante o mesmo objeto é o título jurídico: a posição é objeto do título (causalidade eficiente), relação entre fato e efeito; entre suporte fático, ou fato jurídico e a própria situação jurídica como solução dada pela norma ao suporte ou propriamente ao fato jurídico, configurando a relação de pertinência de uma posição de sujeito, situacionalmente atribuída pela norma jurídica, a uma pessoa de direito; inexistindo, portanto, legitimação de fato: tantos papéis jurídicos, tantos títulos. A posição no título se a investiga.
Torquato ensina que sobre cada posição não recai uma multiplicidade ou pluralidade de sujeitos, ela é única para cada um, sendo uno ou plural o sujeito em cada polo da relação, todos são sujeitos posicionados; no direito real essa unipolaridade se mantém intacta; podem ocorrer posições idênticas, mas não recíprocas, que as chamou de unitárias (que não coincide com unidade), como é caso de condôminos:
Figura 3. Condomínio: unitariedade de posições idênticas relativas ao mesmo objeto.
O insigne professor repugna a ideia de um sujeito passivo universal, fertilizado numa cepa viva que conteria todas as pessoas da terra, e diz tratar-se de certa filosofia, não de ciência jurídica; rejeita, assim, a lição carneluttiana, esquematizada na figura abaixo, sendo “A” sujeito determinado e “N” sujeito universal:
Figura 4. Situação jurídica relacional com sujeito indeterminado N.
Identificando uma série de contradições, leciona que “não é possível fixar, ou identificar, no mero plano do mundo físico, a esse ‘sujeito’, entre os milhões que a curtíssimos prazos – ou sem prazo – nascem e morrem”, firmando que tal coisa também não seria possível no mundo jurídico, não se podendo saber “que espécie de papel, de colaboração, ou de interesse a satisfazer, esperaria a norma realizar ao conferir subjetividade a um tão móvel, mudo e indiferente sujeito”, “que, nem ao menos, é um ‘universal concreto’ do sistema hegeliano”. Sujeito que a norma não o quis, mas que “foi contrabandeado para a Teoria Geral do Direito”.
Torquato, brilhantemente, distancia-se dos “excessos objetivistas e subjetivistas do sociologismo que deformaram realmente a imagem do fenômeno jurídico através de um longo passado de nominalismo e de solipsismo”. Não é difícil vincular seu pensamento como contraponto ao que se tem vivenciado no constitucionalismo distópico, termo cunhado por Adriano Soares da Costa, jurista e intelectual de escol, em repúdio ao irracionalismo jurídico, oriundo da justiça das ruas e das mídias, que se tem adotado nos Tribunais, cujo fervor parece coincidir com as experiências hierárquicas do medievo, tão característico das sociedades em decadência, como assinala Johan Huizinga em seu O declínio da Idade Média: “Os homens do século XV não podiam compreender que os motivos determinantes da evolução política e social pudessem ser vistos de outro ângulo que não fossem os feitos de uma nobreza belicosa e cortesã“[12], essa aberração cromática, de fato, logicamente atualizada, parece persistir com outros candidatos a protagonistas.
A vastidão do pensamento do grande mestre pernambucano Torquato Castro, por si mesma, já é um deslumbramento e este texto não mais que um convite à leitura de suas obras.
Notas e Referências:
[1] O professor Torquato foi Catedrático de Direito Civil, Professor Emérito, Titular da Cadeira de Direito Privado do Curso de Mestrado da Faculdade de Direito do Recife e autor de importantes livros, um dos maiores expoentes da Teoria Geral do Direito.
[2] TORQUATO CASTRO. Teoria da situação jurídica em direito privado nacional. São Paulo: Saraiva, 1985.
[3] PONTES DE MIRANDA. Tratado de Direito Privado. 3.ª ed., Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970.
[4] PEIRCE, Charles Sanders. Semiótica. Trad. José Teixeira Coelho Neto, 3.ª ed., São Paulo: Perspectiva, 2000.
[5] SAUSSURE, Ferdinand. Curso de lingüística geral. Trad. Chelini, Antônio; Paes, José Paulo; Blikstein, Izidoro. São Paulo: Cultrix, 2006.
[6] ECO, Humberto. Tratado geral de semiótica. Trad. Danese, Antônio de Pádua e César Cardozo de Souza, Gilson. São Paulo: Perspectiva, 2000.
[7] HJELMSLEV, Louis. Prolegômenos a uma teoria da linguagem. Trad. Coelho Netto, J. Teixeira. São Paulo: Perspectiva, 1975.
[8] BARTHES, Roland. Elementos de semiologia. Trad. Maria Margarida Barahona. São Paulo: Cultrix, s/d.
[9] LOURIVAL VILANOVA. Causalidade e relação no direito. 2.ª ed., São Paulo: Saraiva, 1989.
[10] LOURIVAL VILANOVA. Estruturas lógicas e o Sistema de Direito Positivo. 3.ª ed., São Paulo: Noeses, 2005.
[11] MARSEL BOTELHO. A estrutura semiótica da norma jurídica. No prelo.
[12] HUIZINGA, Johan. O declínio da Idade Média. 2.ª ed., Trad. Augusto Abelaira, Lisboa: Ulisseia, 1996.
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