ABDPRO #104 - O PROCESSO DEVE SER DOGMÁTICO E PONTO FINAL

25/09/2019

Coluna ABDPRO

Jorge Leal Amado de Faria, ou apenas Jorge Amado (como é conhecido), saudoso romancista baiano, apesar de ter obtido o grau de bacharel em Direito no ano de 1935, optou por dedicar a sua vida a literatura; o que fez muito bem, afinal, caso assim não tivesse ocorrido, nunca teríamos conhecido os anseios de um distanciamento cultural passados por Rigger quando retornou ao Brasil após uma temporada de alguns anos estudando Direito em Paris, em “O país do carnaval”[1]; nunca teríamos conhecido o romance entre Nacib e a apaixonante Gabriela, em “Gabriela, cravo e canela”[2]; ou ainda, nunca teríamos conhecido Flor e o seu “dilema” amoroso entre Dr. Teodoro e Vadinho, em “Dona Flor e seus dois maridos”[3]. Verdade seja dita, falar sobre Jorge Amado e suas inúmeras obras é sempre um prazer, no entanto, como esta coluna conta com uma limitação de caracteres, infelizmente a análise que se quer deverá ser restringida.

O ponto que se quer com o recorte inicial desta reflexão em Jorge Amado está justamente no último livro citado no parágrafo anterior, notadamente em “Dona Flor e seus dois maridos” – aos que ainda não leram a referida obra, importante citar que este texto contém diversos spoilers, portanto, depois não venham reclamar que não foram avisados. Na referida obra, originalmente publicada no ano de 1966 e tendo sido adaptada, posteriormente, ao cinema, ao teatro e à televisão, Jorge Amado narra a história amorosa vivida por Flor juntamente aos seus dois maridos, Vadinho e Dr. Teodoro, respectivamente. Veja-se, de um lado está Vadinho, sujeito malandro, descompromissado, cafajeste, mas que, mesmo contando com todas essas qualidades negativas, desperta e concretiza os mais variados desejos (sexuais) de Flor; no lado completamente oposto, por sua vez, está Dr. Teodoro, respeitado farmaceuta baiano, organizado, estável, com uma rotina bem definida, possibilita com que Flor tenha estabilidade (especialmente emocional) em sua vida. Da breve exposição de ambos os maridos, longe de oferecer uma resenha completa sobre a obra, o ponto que se quer destacar está justamente no protagonismo feminino dado por Jorge Amado à Flor: a sua relação “simultânea” para com os seus dois maridos. 

O ponto em questão – e já se estabelecendo a ligação do direito e literatura que se quer para este texto – é que, após um intenso carnaval na cidade de Salvador, Vadinho acaba falecendo; Flor, agora viúva, começa a relacionar-se com Dr. Teodoro, no entanto, a monotonicidade deste, atrelada à abstinência que Flor estava sentindo ainda no luto por Vadinho, fez com que ela projetasse um Vadinho “imaginário” tão somente para realizar os seus desejos. Aqui está o sentido das aspas utilizadas em simultânea no parágrafo anterior. Como é possível observar ao final do romance de Jorge Amado, Flor consegue admitir e gerenciar essa dupla relação, afinal, a completude de sua felicidade e de sua boa vida estava justamente naquilo que ambos os maridos possuíam de forma exclusiva: a loucura e a sanidade. Da reflexão observada acerca do final feliz que houve em “Dona Flor e seus dois maridos” suscita o seguinte questionamento: será que para tudo nesta vida não é possível, de forma simultânea, um Vadinho e um Dr. Teodoro? Para o Direito, como diz o saudoso professor argentino Luís Alberto Warat em “A ciência jurídica e seus dois maridos”[4], é igualmente possível. Explica-se.

Luís Alberto Warat, falecido professor argentino de Direito, tendo sido um dos responsáveis pela implementação dos programas de Mestrado e Doutorado em Direito no Brasil, teórico do direito, especialmente na área de teoria do direito, associado e militante nas propostas da corrente contradogmática que se instaurara na América Latina no início dos anos 70, em certa altura de sua trajetória acadêmica, em uma etapa mais madura, após ler a referida obra de Jorge Amado, traz justamente a reflexão proposta ao final do parágrafo anterior: a possibilidade de um Direito, ou melhor, de uma ciência jurídica relacionada aos espíritos de Vadinho e de Dr. Teodoro. Sobre as figuras de linguagem, veja-se que enquanto a ciência jurídica assume o papel central de Flor da narrativa de Jorge Amado, ambos os seus maridos estão para as formas como ela pode ser enfocada: dogmaticamente e zeteticamente. A grande crítica de Luís Alberto Warat neste ponto está no fato de que ela, ciência jurídica, deverá conviver harmonicamente e em mesmo grau com uma perspectiva dogmática e com uma perspectiva zetética, afinal, enquanto Dr. Teodoro (dogmática) permite com que a ciência jurídica tenha estabilidade e equilíbrio, Vadinho (zetética) permite suprir a carência deixada pelo outro marido: a não estagnação antropológica da ciência jurídica. O ponto que Luís Alberto Warat deixa a desejar com a sua teoria está justamente em concebê-la em uma perspectiva lato, afinal, o professor argentino deixa à limiar toda a finita gama de ramificações existentes na ciência jurídica; melhor dizendo, Warat não especifica (e acreditamos que esta nem era a sua proposta) se todas as ramificações da ciência jurídica devem contar com essa leitura binária entre a dogmática e a zetética. A partir de agora, queremos demonstrar, levando-se em conta o sentido da dogmática e o da zetética, a impossibilidade de termos um processo que não visto a partir da dogmática.

Há uma passagem histórica, demasiadamente oportuna para a proposta deste texto, que nos remete à antiga Atenas livre: certo dia, ao anoitecer, Sócrates está caminhado pelas ruas da cidade e depara-se com uma pessoa correndo em alta velocidade de uma tropa de guardas civis; enquanto continuava a caminhar, Sócrates ouve o chefe da guarda gritando: PEGUEM O LADRÃO! De pronto, Sócrates contesta a autoridade: o que é, em sua concepção, um “ladrão”? O exemplo ora invocado retrata perfeitamente a distinção entre a dogmática e a zetética. Uma leitura dogmática (dokein = doutrinar) das coisas caracteriza-se pela sua finidade e seu sentido explícito, cuja preocupação reside no deve-ser das coisas; por sua vez, o enfoque zetético (zetein = perquirir) está preocupado em não limitar especulações, de modo que a toda problemática observada nesta perspectiva preocupa-se como o sentido da configuração de seu ser. Justamente por isso é que Tércio Sampaio Ferraz Junior[5] sustenta que “o enfoque dogmático releva o ato de opinar e ressalvar algumas das opiniões”, enquanto “o zetético, ao contrário, desintegra, dissolve as opiniões, pondo-as em dúvida”.

Falando em Tércio Sampaio Ferraz Junior, nada melhor do que demonstrar o porquê de o processo não poder ser lido zeteticamente senão a partir da própria exploração da Magnum opus de seu orientador, a “Tópica” de Theodor Viehweg[6]. A história da referida obra é peculiarmente interessante; com o fim da Segunda Guerra Mundial no ano de 1945, Theodor Viehweg esconde-se em um monastério situado próximo a Munique; isolado na localidade, Viehweg descobre uma biblioteca escolástica intacta; sob uma forte influência aristotélica, Theodor Viehweg inicia o desenvolvimento de um trabalho que viria a se tornar a sua “Tópica”: uma tentativa de reaproximação do Direito à zetética – aqui uma pequena observação, afinal, não se pode esquecer que se está fazendo o recorte de um momento histórico cuja principal característica jurídica da localidade em que Theodor Viehweg estava inserido era àquele positivismo autoritário do regime nazista. Viehweg, outrossim, queria estabelecer um sentido indutivo para o Direito; queria-se, portanto, a partir de uma dialética, uma postura de questionamentos para o Direito que muito se aproximava daquela metafísica da zetética. Paginando-se a “Tópica”, o que se percebe nas entrelinhas é justamente a preocupação do autor para uma postura, de certo modo, reflexiva do julgador; a proposta, outrossim, nada mais é do que se estabelecer uma nova ótica para o Direito após os terrores presenciados com o nazismo na Segunda Guerra Mundial. Assim, a partir da breve exploração proposta acima e a levando em conta, visando demonstrar a nossa opinião acerca da temática, para o sentido epistemológico do processo, poderia ele, afinal, contar com esse caráter reflexivo-perquiridor da zetética?

Para que possamos responder ao questionado e demonstrar o nosso ponto de vista acerca da questão, precisamos recorrer ao próprio sentido do processo. Outrossim, em Ovídio A. Baptista da Silva, podemos observar a conceituação do processo como sendo a “atividade que se desenvolve perante os tribunais para obtenção da tutela jurídica estatal, tendente ao reconhecimento e realização da ordem jurídica e dos direitos”[7]; particularmente, caminhamos em mesmo sentido ao do saudoso professor gaúcho de processo, no entanto, com um demasiado aprofundamento, e entendemos que o processo se trata de “um espaço discursivo intersubjetivo de feições públicas e políticas, na busca de valores socialmente relevantes e que somente pode ser compreendido numa perspectiva constitucionalmente dialógica entre os vários sujeitos envolvidos”[8]. Eis o ponto, então. Colacionando a nossa posição acerca do sentido do processo para com a exposição da função social do processo de J. J. Calmon de Passos[9], para os fins desta reflexão, começamos a perceber que, em verdade, o processo atua em um campo de respostas aos anseios sociais. Melhor dizendo, e parafraseando-se o professor baiano, ao falar sobre processo, não se pode esquecer que a sua função social está em resguardar a harmonia coletiva dos indivíduos de um determinado grupo. Longe de estabelecermos remissões históricas e a correta evolução da noção de processo nessa perspectiva, cabe destacar exclusivamente que o processo surge no momento do surgimento das próprias formas primitivas de sociedades. A função do processo é, senão, resolver e prevenir conflitos sociais; outrossim, veja-se o caso do jurisdicionado: ao propor o processo, a parte não espera outra função do julgador que não a de resolver o seu conflito. A partir da inibição da prática da autotutela com o monopólio do exercício da justiça pelo Estado, as pessoas passaram a dirigirem-se ao Estado para buscar respostas, e não mais questionamentos aos seus próprios questionamentos.

Portanto, dos dois maridos de Flor, mesmo que não se duvide que Vadinho e o processo poderiam formar um casal peculiarmente interessante (e muito perigoso no sentido da segurança do ordenamento jurídico), apenas com Dr. Teodoro é que poderia cumprir a função que dele, socialmente falando, se espera: finidade, segurança – dos infinitos exemplos que aqui poderiam ser trabalhados, peguemos apenas o caso do ativismo judicial; pensando-se em um processo lido zeteticamente, o juiz, ao deparar-se com uma inicial de 200 páginas, ao invés de conceder os quinze dias para o oferecimento da contestação previsto no art. 335 do CPC, poderia questionar o grau de “dificuldade” da peça inicial e conceder um prazo aleatoriamente superior; ou ainda, um juiz que, absolutamente incompetente, entenda que, inobstante ao fato de a competência não concorrer à ele, mas, pelo fato de ter mais tempo de carreira na magistratura do que aquele juiz competente, ignorar qualquer disposição do CPC e manter a competência para si – e, principalmente, respostas aos questionamentos advindos dos conflitos sociais. O processo ter que ser exclusivamente dogmático não significa dizer que ele será afastado de qualquer dialética, afinal, seguindo-se em Piero Calamandrei[10], e como já destacamos quando demonstramos a nossa posição acerca do sentido do processo, “o processo não é um monólogo: é um diálogo, uma conversação, uma troca de proposições, de respostas, de réplicas; um cruzamento de ações e de reações, de estímulos e de contraestímulos, de ataques e de contra-ataques”. Aqui está, portanto, o único sentido de dialética dentro do processo: evitar-se a arbitrariedade que poderia surgir de uma dogmática-positivista (como àquela enfrentada por Theodor Viehweg) – aliás, quando citamos que Luís Alberto Warat fazia parte da corrente contradogmática existente na América Latina, sua crítica à leitura dogmática está justamente no mesmo caminhar de Viehweg, e não de uma função socialmente vista como a “constituição de doutrinas entendidas como sistemas teóricos, voltados para a solução de conflitos com um mínimo de perturbação social”[11]. Assim, se pudéssemos rebater àquilo que Luís Alberto Warat sustentou acerca do duplo relacionamento da ciência jurídica com a dogmática e com a zetética, arguiríamos que se a sua concepção for realmente lato (e assim pensamos que ela é), não haveriam óbices, entretanto, o processo, enquanto uma ramificação da ciência jurídica, ao assumir o papel central de Flor no romance de Jorge Amado, teria que se desprender de Vadinho e, para manter a segurança de seu sistema e cumprir o papel socialmente esperado, relacionar-se exclusivamente com Dr. Teodoro. Não é ruim que o processo seja exclusivamente dogmático, o que seria ruim é um processo que mais deixe dúvidas do que as ceife. Por mais que seja tentador, o modelo processo-Vadinho não garantiria qualquer espécie de segurança para os seus operadores.

 

Notas e Referências

[1] AMADO, Jorge. O país do carnaval. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

[2] AMADO, Jorge. Gabriela, cravo e canela. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[3] AMADO, Jorge. Dona Flor e seus dois maridos. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

[4] WARAT, Luis Alberto. A ciência jurídica e seus dois maridos. 2. ed. Santa Cruz do. Sul: EDUNISC, 1985.

[5] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Introdução ao estudo do Direito: técnica, decisão, dominação. 10. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Atlas, 2018. p. 19.

[6] VIEHWEG, Theodor. Tópica e Jurisprudência: uma contribuição à investigação dos fundamentos jurídico-científicos. 5. ed. Trad. Kelly Susane Alflen da Silva. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 2008.

[7] BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Curso de Processo Civil. 6. ed. rev. e atual. de acordo com as Leis 10.352, 10.358/2001 e 10.444/2002. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2003. v. 1: Processo de conhecimento. p. 13.

[8] RIBEIRO, Darci Guimarães. A dimensão constitucional do contraditório e seus reflexos no projeto do Novo CPC. Revista de Processo, São Paulo, nº 232, Ano 39, 2014, p. 13-35. p. 23.

[9] CALMON DE PASSOS, J. J. A função social do processo. p. 415-432. In: ______. Ensaios e artigos. Salvador: Editora Jus Podivm, 2016. v. 2.

[10] CALAMANDREI, Piero. Processo e Democracia: conferências realizadas na Faculdade de Direito da Universidade Nacional Autônoma do México. 2. ed. rev. Trad. Mauro Fonseca Andrade. Porto Alegre: Editora Livraria do Advogado, 2018. p. 85.

[11] FERRAZ JUNIOR, Tercio Sampaio. Função social da dogmática jurídica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015. p. 7.

 

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